sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Resoluções e revoluções

Os dois estavam na cama. Ele abaixou o cacho de uvas, para que ela pudesse alcançá-lo. Com a boca meio cheia, foi ela quem começou o diálogo.

- Paul, tomei uma resolução de ano novo.
- Já sei, Virginie. Fazer regime.
- Não, essa foi a do ano passado, chéri.
- Então vai terminar de pintar aquele quadro que você começou há séculos.
- Também não. Essa tinha sido a de dois anos atrás.
- E não cumpriu nenhuma das duas, né?
- Eu sei, eu sei. Mas dessa vez é pra valer.
- Vai juntar dinheiro pra uma viagem pra América do Sul?
- Não.
- E o que é?
- Vou trocar de marido.
- Cuméquié? Endoideceu?
- Decidi arrumar um outro homem.
- Um amante?
- Não, não. Apenas trocar você por outro.
- Mas... tem algo de errado comigo?
- Nada.
- Tô feio? Barrigudo?
- Você continua um gatão selvagem. Faz miau.
- Miau.
- Viu? O mesmo de sempre.
- Mas o que é, então? A gente se dá mal?
- Não, Paul. Você sabe que a gente se entende perfeitamente. Você até chorou assistindo Titanic comigo. Coisa mais linda.
- É meu ronco? É isso?
- Nada a ver. Eu gosto do seu ronco. Me faz sonhar que tô na selva.
- Então é por causa daquela minha cueca furada.
- A cueca furada te dá um charme especial, meio rústico.
- E é o quê, então?
- Não é nada. Só achei que precisava de uma troca na minha vida.
- E por que não foi aprender a trocar pneu de carro?
- Não dá pra exagerar, né? Trocar de marido é mais fácil.
- Mas, Virginie, de onde veio essa idéia? Ficou maluca?
- Foi a Marie que começou tudo, ano passado. Tava meio entediada e trocou o marido por um garotão 10 anos mais novo. Hoje está ó-ti-ma, super feliz, com pele e unhas lindas.
- E aí você resolveu embarcar nessa...
- Não só eu, mas todas as nossas amigas. Sabe, Paul, acho que você também está precisando de tomar resoluções arrojadas. Vão te fazer bem.
- Olha, acho que você tem razão, Virginie.
- Claro que tenho. Você vai ver como vai se sentir mais leve.
- Pois é. E acabei de decidir qual será minha resolução de ano novo.
- E qual é?
- Vou trocar hoje mesmo a senha do cartão de crédito.
- Do nosso cartão de crédito ilimitado?
- Do meu, você quer dizer.
- Credo, Paul. Por que você é sempre assim tão radical?

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Duas historinhas de Natal

Tia Sophie

A tia Sophie estava atrasada, mas todos sabiam que não tardaria a chegar. Ela era como o Papai Noel: só aparecia nas noites de Natal. E sempre trazia um peru para a ceia. No resto do ano, enfiava-se na sua casa, que ninguém sabia muito bem onde era, e não dava notícias.

Esperaram até um pouco mais tarde para começar o jantar e nada da tia Sophie.

- Melhor. Assim não tenho que aguentá-la me contar todas as doenças que teve no ano, como ela sempre faz - Falou Michelle, a dona da casa.
- E a velha nunca traz presentes - Disparou alguém.
- Pior é aquele peru seco que ela prepara.
- Horrível, horrível. Não desce nem com muito vinho.
- E a gente é obrigado a comer, para agradá-la.

Passaram para a sobremesa, e a tia Sophie não chegava. Decidiram abrir os presentes (na casa da família Collin, os presentes só eram entregues depois do jantar, pra "manter as crianças na mesa", como dizia Julien, o patriarca). No fim da distribuição, notou-se um pacote abandonado embaixo da árvore. Sem etiqueta, sem nome, sem nada. Como ninguém reclamou sua propriedade, Julien tomou a iniciativa de abri-lo.

Dentro, apenas um envelope com uma carta, que Julien tratou de ler.

"Minha família amada, aqui é a tia Sophie. E se vocês receberam essa carta é porque já não faço mais parte desse mundo."

Consternação geral. Todos se olham assustados.

"Quero dizer que vocês foram a maior alegria dos meus últimos anos de vida. Esperava ansiosamente pela noite de Natal, para poder dividir a ceia e os bons momentos com aqueles que mais amava."

Michelle deixa escapar uma lágrima e sente-se culpada por ter falado mal dela momentos antes. O mesmo sentimento é compartilhado por todos na sala, que baixam a cabeça numa auto-penitência. A voz de Julien fica embargada.

"Sempre vivi muito discretamente e escolhi morrer assim. Meu corpo foi cremado e todos os meus bens foram doados. Mas não poderia partir sem deixar um pouco de mim com vocês."

A família se olha e se abraça mutuamente, formando uma grande roda na sala. Philippe, sempre o mais emotivo, não contém o choro compulsivo.

"Por isso, junto a essa carta, deixo a receita do meu tradicional peru de Natal, que cozinhei com muito gosto por mais de 60 anos. A cada vez que vocês o fizerem, saibam que estarei por perto. Com amor, tia Sophie"

Nessa hora, Alain, o primo bêbado, pega a carta da mão de Julien e a queima com seu isqueiro.

- Acho que ela não tem que se aborrecer em ficar voltando aqui todo ano. Deixa a velha descansar em paz.

A roda desfez-se rapidamente e nunca mais falou-se no peru de Natal da tia Sophie.

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Qualquer coisa

- Pierre, o que você quer ganhar de Natal?
- Ah, qualquer coisa tá bom.
- Qualquer coisa?
- É.
- Uma caixa de bombons, por exemplo?
- Uma caixa de bombons não, Danielle. A gente tá falando de presente de verdade. Caixa de bombons não é presente de verdade, porque você come todos os bombons e depois fica sem nada. O máximo que você guarda pra depois é a barriga, que vai ficar maior.
- Então não é qualquer coisa o que você quer.
- Tá bom. Qualquer coisa menos uma caixa de bombons.
- E uma calça nova?
- O que tem de errado com as minhas calças?
- Não tem nada de errado, mas uma calça nova e bonita é um bom presente.
- Eu só compro minhas calças em liqüidação*. Não vou gastar meu presente de Natal assim, com uma calça nova. Seria um desperdício. Coloca na lista aí: qualquer coisa menos caixa de bombons e uma calça nova.
- Uma viagem à Côte d'Azur! Ça te dit?
- Você ainda não sabe que eu detesto viajar? Sair de Paris pra quê? Aqui tem tudo o que eu mais gosto na França: croissant e mau humor.
- Mas você é difícil, hein?
- Eu gosto de qualquer coisa. Só não quero caixa de bombons, calça nova ou viagem.
- Esse seu qualquer coisa está ficando é bem restrito.
- É só pensar melhor.
- Já sei: um perfume.
- Perfume? E homem usa perfume, Danielle? Perfume é coisa de mulher.
- Quer saber? Vai ficar sem presente. Você é muito chato. Enquanto você pensa no que quer, eu vou pra cozinha fazer um chá.

Pierre chega na cozinha.

- Faz um pra mim também?
- Você não tá merecendo, mas eu faço. Quer de quê?
- Qualquer um.
- Erva cidreira tá bom?
- Ah, não. Erva cidreira?

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* Pobre trema, em breve morto.

ps: outra crônica natalina minha bem aqui.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Paris para crianças II

Outro dia nevou em Paris. Aí eu perguntei pro meu pai o que que era a neve. Ele disse que era o gelo bem fino que caía do céu. E eu perguntei se tinha congelador nas nuvens, pra poder fabricar o gelo. Meu pai disse que não era preciso, pois ficava tão frio lá em cima que a água congelava sozinha. Aí eu me lembrei que na nossa geladeira a água congelada vira uma pedrona de gelo e perguntei se no céu tinha uma máquina pra quebrar esse gelo em um montão de pedacinhos, pra virar neve fininha. Ele disse que queria ver o jornal e que falava sobre isso depois.

Percebi que o meu pai não sabia nada sobre neve e fui perguntar pro meu irmão mais velho, que é tão grande que consegue encostar o pé no chão quando senta na cadeira. Ele falou que a neve era um fenômeno meteorológico que fazia cair cristais de gelo. Aí eu perguntei pra ele o que era meteorológico e ele disse que eu era burra. Então eu chorei bem alto e forte e minha mãe veio perguntar o que tinha acontecido. Eu disse que o João tinha me chamado de burra e minha mãe falou pra ele ir pro quarto. Mas aí eu fiquei sem saber o que é meteorológico.

E quando minha mãe fazia um café com leite bem quentinho pra mim eu perguntei também pra ela o que era a neve. Ela me explicou que eram os vapores de água que se congelavam, lá em cimão, nas nuvens bem altas. Aí é que eu não entendi nada mesmo, pois pra mim o vapor é quente. Pelo menos é o que a minha mãe sempre me diz quando eu chego perto do fogão pra ver a chaleira soltando aquela fumaça. Ela diz "sai daí, Gabriela, esse vapor vai acabar te queimando". Eu também começo a achar que a minha mãe não entende muito das coisas. Se o vapor é quente, como é que ele não derrete a neve?

Sabe, eu nunca desisto de uma pergunta. A professora da escola diz que eu tenho espírito de cientista, porque eu gosto de saber tudo em detalhes. Mas não é nada disso. É que os adultos falam bobagens para as crianças, talvez com medo de que a gente não entenda a explicação de verdade. Mas o que eu acho mesmo é que eles nunca sabem as respostas, então inventam uma história qualquer. Ou então dizem "olha, é complicado explicar isso", "você ainda não tem idade pra saber", "depois da novela a gente conversa", "pergunta pro seu pai", "pergunta pra sua mãe" e esse tipo de coisa.

Por isso eu fui perguntar pro Mathieu, que é meu amiguinho da escola. O Mathieu é muito inteligente. Ele já consegue até amarrar o cadarço do tênis sozinho. Outro dia eu consegui também, mas depois minha mãe ficou reclamando comigo, dizendo que eu tinha dado tantos nós que mais parecia uma teia de aranha aquele cadarço e que ela ia ter que cortar tudo com a tesoura e comprar um novo. Pra mim estava bem bonito.

E o Mathieu falou que a neve era o que os adultos usavam para fazer o sorvete. Mas que eles guardavam esse segredo bem guardado que era pras crianças não tomarem sorvete o tempo todo. Aí eu perguntei pra ele como é que o sorvete chegava em um país quente como o Brasil sem derreter. E ele disse que todo o sorvete do mundo era feito nos países frios e depois era transportado em geladeiras muito grandes dentro de navios muito grandes.

Aí eu tive uma idéia muito muito boa. Falei pro Mathieu que quando a gente for grande pode pegar um avião, voar bem lá no alto e jogar sabores diferentes em cima das nuvens. Aí não vai nunca mais cair neve. Vai cair sempre sorvete, já prontinho. O Mathieu adorou a idéia e até já falou que vai ser piloto de avião pra gente poder fazer isso sem pedir a ajuda de ninguém. Aí eu falei que já que a gente ia ficar rico podia se casar e ter muitos filhos. E nessa hora ele saiu correndo pro parquinho. O Mathieu pode ser muito inteligente, mas às vezes ele ainda é um pouco imaturo.

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Leia também: Paris para crianças

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Questão cavalar

- Bonjour.
- Bonjour. O que vai querer hoje?
- 300 gramas de carne moída.
- Très bien, du steak haché! De boi ou de cavalo?
- Comment?
- Perguntei se o senhor quer carne de boi ou de cavalo.
- Como assim, de cavalo?
- Cavalo. Aquele animal que relincha e mostra os dentes. Muito visto nos filmes de bangue-bangue americanos, quase sempre com um índio em cima.
- Que por sinal acaba sempre morrendo.
- O cavalo?
- O índio, no caso. Ainda mais se o John Wayne estiver no filme.
- Pois bem. O senhor conhece o animal.
- Que animal, o John Wayne?
- Não, céus, o cavalo.
- Pessoalmente, de freqüentar a casa, telefonar, dividir uma cerveja, não. Mas sei do que você está falando.
- Então, qual carne moída você quer?
- Como vocês conseguem fazer isso?
- Não é difícil. Tem uma máquina bem ali que mói.
- Não é disso que eu falo.
- E do que é?
- Como vocês têm coragem de comer carne de cavalo?
- Ué. Os chineses não comem cachorro?
- Nesse caso é compreensível. Eles têm os olhos fechados. Devem achar que é filé mignon.
- E a Lapônia? Um amigo meu mora lá e me contou que eles adoram fígado de rena.
- Deve ser por isso que tantas crianças não recebem presentes de Natal, com tamanho desfalque na equipe do bom velhinho.
- E ainda tem a Venezuela, onde eles se estapeiam por um prato cheio de tarântulas.
- E palitam os dentes com as pernas delas depois da refeição?
- Tudo isso pra você ver que é normal que a gente coma carne de cavalo. Uma questão puramente cultural.
- Não me convenceu.
- Mas por quê?
- Porque não dá pra comer. Simples assim.
- Já provou?
- Tá doido?
- Devia. Você vai adorar.
- Eu não. Vai que acordo trotando.
- Você é que sabe.
- Bom, obrigado assim mesmo. Vou pra casa me virar com os restos do ensopado de coração de galinha de ontem.
- Coração de galinha?
- É.
- Eca.
- Qual o problema?
- Eca, eca!
- Não, qual o problema? Já provou?

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O abajur africano

Ça y est. Estamos de mudança. Vamos continuar na rue d'Aligre, mas agora habitaremos em um apartamento colossal, uma verdadeira extravagância, quase um château para os padrões parisienses. O palácio em questão é o que por aqui se chama de deux pièces. Nada mais do que um quarto e sala, com menos de 50m2. Mas, acreditem, é um luxo. Ainda mais quando alguns dos seus amigos moram em 15m2.

O apê pertence ao Monsieur Thésée, o fiel escudeiro da Edith. Aliás, foi ela própria quem intermediou toda a negociação financeira, assegurando de forma justa o interesse das duas partes. Acredito que muito em breve a diplomacia precisará ser reinventada, seguindo o "padrão Edith". Talvez possamos chamá-la de edithocracia. Ou talvez eu deixe a escolha do nome para depois, pois a primeira tentativa é das mais infelizes.

Numa primeira vistoria do apartamento, e já sem a Edith por perto, Monsieur Thésée foi bastante flexível em relação às obras que gostaríamos de fazer. Mesmo que porventura doesse ver a antiga morada de sua tia desmantelada.

- Podemos tirar esse papel de parede verde musgo da sala?
- Oui.
- E esse outro, cheio de corações, do quarto?
- Oui.
- Podemos arrancar esse carpete de mais de 30 anos?
- Oui.
- E jogar fora essas cadeiras quebradas?
- Oui.
- E o que fazemos desse abajur horroroso?

Não dava pra saber, mas esse assunto mexia um pouco com os brios do Monsieur Thésée. E era compreensível. Afinal, aquele abajur, que eu sumariamente classifiquei de "horroroso", era uma lembrança de família. Tratava-se de um treco de quase dois metros de altura, com o corpo em madeira esculpido de cabeças e motivos africanos, e uma tela tribal, de cor indefinida, próxima ao marrom. Enfim, uma coisa medonha. Mas ainda assim parte das recordações de sua tia, que havia feito uma grande viagem à África.

- Vocês podem ficar com o que quiserem. Com o sofá, com as cadeiras, com o microondas. Com tudo, menos com o abajur africano. Esse eu quero de volta.

Separamos então o que não iríamos manter conosco. Umas coisas iríamos dar. De outras teríamos que nos livrar. E o (pavoroso) abajur africano seria devolvido gloriosamente ao Monsieur Thésée. Colocamos tudo na varanda, do lado de fora do apartamento, e fomos ao marché d'Aligre.

O tempo estava feio, e ventava muito. Por isso não demoramos na feira. Além do mais, queríamos acabar logo a triagem.

O vento continuava forte. E, ao voltar para o apartamento, ainda tive tempo de ver o (assustador) abajur africano balançar, e balançar, e balançar. Até cair de uma só vez. Cair, não. Despencar. Como um rei congolês decapitado (desculpem-me pela comparação, mas não dava pra perder a chance).

Como se diz em francês, tínhamos acabado de fracassar o (aterrador) abajur africano. Poderíamos ter picotado o sofá, alagado a sala, tocado fogo na casa. Mas não podíamos devolver a peça de estimação do Monsieur Thésée naquele estado.

Sacudi o abajur, numa tentativa de reanimá-lo. Mas foi em vão. O corpo ainda estava inteiro, mas a sua cabeça, ou a tela, tinha voado longe. Um fim digno, é verdade. Mas difícil de explicar ao proprietário do apartamento.

- Putain! Que vamos fazer?
- Encaixa.
- Não dá.
- Cola.
- Não vai funcionar.
- Esconde.
- Hã?
- Esconde, até a gente pensar em alguma coisa.
- Mas onde?
- No fundo do armário da sala. Lá no fundão mesmo.

Dias depois, o Monsieur Thésée passou para buscar o (horrendo) abajur africano. E nos ligou mais tarde.

- Daniel.
- Oui.
- Passei lá na casa pra buscar o abajur.
- Ah bon?
- Estranho. Só achei o corpo dele. Onde está o resto?
- Estava meio solto. Guardei.
- Depois você me passa, tá?
- Bien sûr.

Daqui a alguns dias ele vem pegar o que sobrou do (tenebroso) abajur africano. E eu não tenho idéia do que vou dizer. Alguém aí tem uma sugestão?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Tire o cotovelo daí

Não sei porque ainda não inventaram uma poltrona de cinema com dois braços, um para cada espectador. É sempre uma batalha para saber quem vai conseguir apoiar o cotovelo. Na França, país habituado a guerras, a disputa pode ganhar ares estratégicos mais interessantes do que o próprio filme.

(Sujeito 1 - Vamos chamá-lo de Pierre) - "Putz, cheguei tarde. Última poltrona, colada na tela. E a pior catástrofe de todas: o braço dela já está tomado pelo cotovelo desse bigodudo aí."
(Sujeito 2 - Que chamamos de Marc) - "Esse cara não vai sentar não? O filme já começou e ele ainda está em pé."

(Pierre) - Você poderia tirar seu casaco da cadeira, para que eu possa sentar?
(Marc) - Buf!

(Pierre) - "Ele está dobrando o casaco. O encosto do cotovelo está livre. É agora ou nunca... Peguei!"
(Marc) - "Gordinho maldito. Roubou o encosto."
(Pierre) - "Me dei bem! Me dei bem!"
(Marc) - "Vou fatiar esse safado na saída do cinema."
(Pierre) - "Me dei bem! Me dei bem!"
(Marc) - "Preciso recuperar meu território. Vou encostar o cotovelo de leve, e ir empurrando aos poucos."
(Pierre) - "Ele está tentando encostar o cotovelo de leve, pra empurrar aos poucos. O golpe mais velho do mundo."
(Marc) - "Acho que ele não percebeu."
(Pierre) - "Meu cotovelo está colado aqui. Não sai nem puxado por um trem."
(Marc) - "Droga. Não move. Parece que está colado."
(Pierre) - "Agora posso assistir ao filme tranqüilamente, com o braço da cadeira só pra mim."
(Marc) - "Não vou conseguir ver o filme. Tenho que pegar de volta o que é meu."
(Pierre) - "Nossa, o Harrison Ford conseguiu pular no caminhão em chamas! Ele é demais."
(Marc) - "Do que esse idiota está rindo?"
(Pierre) - "Vai, Harrison! Estrangula o jacaré. Sem pena."
(Marc) - "Vou fingir que estou me espreguiçando e aproveitar pra esmagar o pé desse gordo."

(Pierre) - Putain! Você esmagou meu pé!
(Marc) - Désolé. Foi sem querer. Tava me espreguiçando.
(Pierre) - Ça fait mal.

(Marc) - "Ele está massageando o pé. O caminho está livre. O encosto é meu de novo!"
(Pierre) - "Maldito. Triturou meu pé e ainda pegou o braço da poltrona."
(Marc) - "Quem é o rei sentado no trono? Quem é? Marc! Marc!"
(Pierre) - "Isso não vai ficar assim. Esse encosto me pertence. Eu roubei primeiro."
(Marc) - "Indiana Jones e Marc, os maiores de todos os tempos."
(Pierre) - "E ainda por cima tem esse bigode horroroso. Quem é que usa bigode ainda, meu Deus?"
(Marc) - "Isso, Indy. Com o chicote, com o chicote."
(Pierre) - "Talvez dê pra dividir o encosto."
(Marc) - "Que audácia. Ele está colocando o cotovelo por trás do meu. Deve estar pensando em dividir o encosto."
(Pierre) - "Já consegui colocar a pontinha."
(Marc) - "Se esse cidadão não tirar o cotovelo, vou mandá-lo em pedacinhos para a mãe dele. Pelo correio."
(Pierre) - "Ele está recuando o cotovelo com força. Ai, dói, ai."
(Marc) - "Achou que fosse fácil, né? Assim ele aprende que Indiana Jones e Marc são imbatíveis."
(Pierre) - "Tenho que pensar em algo. Tenho que pensar em algo."
(Marc) - "Como é que o Harrison Ford vai sair dessa?"

(Pierre) - Fogo! Fogo! Corre! Salve sua vida!
(Marc levanta, assustado) - Onde? Onde?
(Pierre) - Hã? Tava falando do filme.
(Marc) - E precisava gritar no meu ouvido?

(Pierre) - "Funcionou. Funcionou. Peguei o braço da poltrona de novo. Não solto mais."
(Marc) - "O pilantra conseguiu me enganar."
(Pierre) - "Consegui enganar o pilantra."
(Marc) - "Vou ter que resolver essa história de uma vez por todas, como homem."
(Pierre) - "Por que ele está me olhando assim?"

Marc pega Pierre pelo pescoço. Pierre dá um joelhaço em Marc. Os dois saem rolando no chão, e a confusão é geral. Metade dos espectadores da sessão vai parar no hospital. No dia seguinte, Marc e Pierre acordam ao mesmo tempo, e descobrem que estão dividindo o leito.

(Marc) - "Como vim parar aqui? Ah, agora me lembro. Estava no cinema e começou uma confusão."
(Pierre) - "Aquele bigodudo também está aqui."
(Marc) - "Tenho que ocupar o meio do leito, antes que ele o faça."
(Pierre) - "Diacho, ele já tomou conta do espaço. Vou esticar a perna de mansinho, sem ele perceber."

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Mão amarela

Entrei no elevador. O japinha infernal, filho de um casal do 7º, já estava lá, junto com o odor azedo que tomava conta do ambiente. Achei que alguém acabara de descer com o lixo. E, como um francês, pensei em fazer uma reclamação ao síndico do prédio, ou à Edith, exigindo que os moradores tivessem o cuidado de embalar bem os sacos das lixeiras, para evitar o mau cheiro.

Acontece que não era isso.

O elevador parou no 4º. E a senhora esticada de tanta plástica, que nunca foi vista sem o cachorro ao lado, entrou. Acompanhada de seu animal, bien sûr. A porta fechou-se novamente, e o futum piorou. O japinha, no canto e calado, nem tentava disfarçar o sorriso amarelo, mesma cor que suas mãos deviam apresentar. Pois aquela fragrância, se é que podemos utilizar a palavra nesse caso, vinha dele. E agora sua obra estava ali, no cubículo, como passageiro adicional.

A senhora sentiu o impacto, levou a mão ao nariz e olhou para o cachorro. Mas logo percebeu que não se tratava dos gases habitualmente produzidos pelo seu companheiro. Então levantou o rosto em minha direção. Eu olhei pro japinha que, por sua vez, soltou um "c'est pas moi". Não tinha sido ele, dizia. Não tive nem tempo de desmenti-lo, pois o elevador parou novamente, no 2º.

A porta abriu. Em frente, um senhor de cabelos grisalhos, com uma certa dificuldade pra andar. Ele ainda hesitou, ao sentir o que o aguardava naquela verdadeira caixa de horrores que já tinha virado o ambiente. Entrou assim mesmo, provavelmente imaginando que uma viagem de dois andares passaria rápido. Enganou-se.

Mais uma vez a porta fechou. Mas, ao contrário do que se esperava, o elevador não saiu do lugar. Ficou bloqueado. O petardo do japinha, eu apostava, tinha danificado permanentemente a estrutura do elevador. E o mais certo é que morreríamos envenenados pela bomba de gás desse kamikaze do terceiro milênio.

Todos viraram na minha direção. Senti que o senhor do 2º queria me dar uma bengalada. E a plastificada tinha uma expressão estranha, de náusea, raiva ou medo. Não dava pra identificar bem, só sei que não era muito amigável. Tentei explicar, apontando pro garoto, dizendo que "o cheiro já estava aqui, junto com ele, quando entrei". Mas "acusar uma criança não é coisa que se faça", disseram.

Para a salvação de todos, principalmente a minha, o elevador logo voltou a funcionar, e chegamos ao térreo. Depois desse dia, tenho a impressão de que o senhor do 2º andar manca mais do que antes. E o cachorro da esticada late quando passa por mim. Só o japinha é que ri. Sempre amarelo.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Espinha de peixe (ou a arte de rir da desgraça alheia)

Anteontem, uma espinha de peixe entalou na minha garganta (pausa para tranquilizar a família: mãe, pai, não se preocupem, tá tudo bem. Aproveitem e mandem um abraço pra vovó e pro vovô e um beijo na Paty. Fim da pausa. Obrigado a todos pela paciência).

Nunca na vida tinha preparado um prato à base de peixe. E inventei de fazer uma moqueca para 60 pessoas no La Commune, o restaurante associativo da rue d'Aligre. Não tenho certeza se a maioria dos que a comeram saberia distinguir uma moqueca capixaba de uma gororoba marítima qualquer, e nesse caso eu poderia soltar um "la cuisine brésilienne est exotique, non?". Mas achei melhor testar a receita em casa antes.

Segui meticulosamente os passos e, voilà, deu muito mais certo do que eu poderia imaginar. Fiquei orgulhoso diante da minha legítima moqueca, com direito a pirão e tudo.

Pra experimentar, servi-me um prato de pedreiro português - porque em Paris tá cheio de pedreiro português, e é preciso se adaptar - e fui ser cobaia da minha própria criação. "Tá boa. Só lembrar de colocar menos coentro e mais sal". Repeti, cometendo de forma consciente o pecado capital da gula. E o castigo foi imediato: uma espinha entalou na garganta. A única espinha daquele peixe foi inventar de espetar minha laringe.

Isso já havia me acontecido anos atrás, em Brasília, num almoço preparado pela mãe de uma namorada. Na fila da emergência do hospital, a atendente me perguntou o que eu tinha. "Espinha de peixe na garganta", disse. Todos os outros que ali esperavam, moribundos ou não, gargalharam sem disfarçar. Tinha um velhinho sem uma perna que chorava de rir, sacudindo-se nas suas bengalas. Uma pinça e uma médica atenciosa resolveram o problema rapidamente, para a minha alegria e talvez a tristeza da minha sogra.

Aqui a coisa não funcionou da mesma forma. Como o sistema de saúde francês é diferente, fui ao clínico geral mais perto. Na sala de espera, na disputa pra ver quem era o mais doente, perguntaram-me o que eu tinha.

- Espinha de peixe na garganta.

Uma senhora deixou sair pelo nariz o chá que bebia, enquanto um sujeito ao meu lado colocou a mão na frente da boca, na tentativa de não deixar o riso escapar. Existe algo de tragicômico nessa situação, pois a médica que me atendeu também não conseguiu disfarçar a ironia enquanto ligava para um otorrinolaringologista (olha só, nunca achei que fosse possível usar essa palavra em um texto).

- Você pode receber hoje um paciente que está aqui e diz que tem uma... uma espinha de peixe na garganta?

Eu tenho certeza de que escutei o outro médico dar uma risada, só não sei se pelo meu infortúnio ou pelo valor que ele queria cobrar pela consulta: "ele disse que vai custar pelo menos 50 euros".

Deixei o médico pra lá e apelei pra receita caseira mesmo. Com dois euros no bolso, passei no supermercado e comprei três bananas e uma baguete. Comi tudo, e a espinha se foi. Ter uma dessas na garganta é mais engraçado no Brasil do que na França. E mais barato.


P.S.: Acabei de voltar do La Commune, onde preparamos a moqueca. Até onde eu sei, todos parecem ter sobrevivido. Às espinhas e ao prato.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Copa de 98? Que copa?

Volta e meia pinta um francês fazendo questão de me lembrar dos três fracassos consecutivos da seleção canarinho frente a "les bleus", em 1986, 1998 e 2006. Eu tento contra-atacar, trazendo à tona a copa de 1958, quando vencemos por 5 x 2. Mas não adianta. Os 3 x 0 na final de 98 ainda fazem a alegria dos compatriotas de Zidane.

Cansado de escutar o bordão "Et un! Et deux! Et trois zero!", bolei diversas respostas para esse momento.

. Não vi o jogo. Na época eu era monge, e estava em meditação no Tibete.
. Exatamente em 1998 o esporte nacional brasileiro passou a ser o dominó, e nosso ídolo maior era o João Duplo Seis, sujeito imbatível. Ninguém falou em Ronaldo ou futebol.
. O problema é que o Romário não foi.
. A culpa foi do Roberto Carlos, que ficou arrumando a meia. Ah, isso foi em 2006? Bom, a culpa deve ter sido dele, de qualquer maneira.
. A CBF vendeu o jogo pra FIFA, que vendeu pra Nike, que vendeu pra Adidas, que vendeu pra Havaianas. Esta foi obrigada a comprar, se quisesse entrar em território francês.
. A televisão lá de casa explodiu no dia. E depois esqueci de perguntar o resultado. Aliás, quem ganhou?
. Antes da partida, o Ronaldo teve uma convulsão causada por foie gras envenenado.
. O problema é que o Pelé não foi.
. Você não sabe? Antes de o time entrar em campo, o Ronaldo foi trocado por um ET. O Zagallo comandou pessoalmente toda a operação.
. A CBF vendeu o jogo para um consórcio formado pelo Olivier Anquier e o Manu Chao.
. A culpa foi do Barbosa, que levou aquele gol do Ghigia.
. A derrota de 98 foi providenciada para abafar a imprensa, que estava prestes a divulgar as provas de que o homem não tinha ido à lua.
. Antes da partida, o Ronaldo comeu 27 croissants envenenados.
. O problema é que o Alexandre Pato não foi.
. Copa de 98? Teve?
. A culpa foi do Júnior Baiano, que passou o torneio inteiro agindo como Júnior Baiano.
. A CBF vendeu o jogo para a CIA, que colocou a culpa no Lee Oswald. Ou no Oswald de Souza. Não lembro bem agora.
. Não acompanhei. Em 1998, eu trabalhava em uma mina na Mauritânia. Claro que lá não tinha TV, né?
. Antes da partida, o Ronaldo comeu 4 quilos de escargots envenenados.
. O problema é que o Zidane foi.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Adivinhe quem não vem para o jantar?

Fazer um jantar na França é uma arte por vezes complicada. Há uma lista enorme de coisas a se cuidar, como entrada, prato, sobremesa, vinho, pão, queijo, lista de convidados e até a posição deles na mesa. Mas há um outro item que muitas vezes ocupa mais tempo do que todos os outros juntos: é a lista dos não convidados.

- Então, Émilie, vamos chamar quem?
- Começamos pela Julie. E o Jean também, o novo namorado dela.
- Não tá sabendo? A Julie e o Jean terminaram. Ela tá deprimida, e nem sai de casa.
- Sendo assim, o Jean também está cortado.
- E o Alex?
- Bem lembrado, o Alex é legal.
- Podemos chamar a Marie, que o paquerava
- A Marie não, Greg. Outro dia, discutindo Sartre e Beauvoir, ela brigou feio com o Marc. E o Marc, com raiva ou ciúmes, descontou no Alex, que ficou achando que tudo era culpa da Marie.
- Não sei se entendi muito bem, mas acho melhor deixarmos esses três de lado.
- Melhor.
- E se a gente chamasse a Sylvie, o Pierre, a Sonia e o Anthony, o quarteto inseparável da sua época de faculdade?
- Não dá mais. A Sonia fofocou do Pierre pra Sylvie. E o Pierre contou umas mentiras sobre o Anthony para a Sonia. No fim, a Sylvie também falou mal de todo mundo. O quarteto inseparável está hoje separadíssimo. Nem sei por onde andam.
- E a Lola?
- A Lola? Não lembra? A gente quase se matou ano passado. Ela me disse aquela coisa horrível, que não dá pra esquecer.
- E o que ela te disse?
- Esqueci agora. Mas não quero que ela venha assim mesmo. Prefiro convidar o Bernard.
- Bernard mudou pro campo. E a Léa?
- Aquela que te paquera? De jeito nenhum.
- O Raoul.
- Perdi o contato.
- A Sophie?
- Pirou no meio do ano passado. Tá internada.
- A Hélène e a Brigitte?
- A Hélène parou de falar com a Brigitte depois do episódio do casamento do Henry, quando a Brigitte derrubou vinho nela.
- Só por isso?
- Pois é. E a garrafa nem estava tão cheia quando a Brigitte, bêbada, a despejou na cabeça da Hélène.
- Liga pro seu irmão.
- Anos que não nos falamos. Mas com o primo Paul ainda falo.
- Ah, não. O Paul é um chato de galochas.
- Podemos convidar a Beth.
- A vizinha depressiva? Da última vez ela chorou a noite inteira.
- Coitada, o gato dela tinha morrido.
- É, mas tinha morrido 6 anos antes, e ela continuava de luto.
- Greg, não sobrou ninguém.
- Ninguém?
- Ninguém.
- Sabe de uma coisa, Émilie? Cancela o jantar. Vamos comer um crepe ali na esquina.
- Não, vamos em outro. Aquele da esquina eu não gosto.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A Edith não existe

Fui juntando as peças dos meus longos e repentinos encontros com a Edith, e comecei a desconfiar fortemente que ela é fruto da minha imaginação. Só existe dentro da minha cabeça. Antes de me dirigir a um psiquiatra (aproveitando que em Paris eles são mais numerosos do que pombos e cachorros), compartilho as evidências que me levaram à conclusão.

Ela está em todo lugar ao mesmo tempo

Eu descobri que é só mentalizar e, voilà, a Edith aparece. Dia desses fiz um teste, e pensei nela ao sair do prédio. Foi só virar a esquina e ela surgiu. Estava com muita pressa, disse. Mesmo assim lascou uns 30 minutos de conversa, só terminada quando falei que precisava ir ao marché d'Aligre, comprar coisas pro almoço.

Logo depois, já no mercado, havia uma manifestação de imigrantes sem documentos. Senti uma mão no meu ombro. Era ela, e me entregava um panfleto, enquanto contava detalhadamente todos os motivos daquele protesto.

- Daniel, tem uma passeata hoje, às 15h. Vou estar lá. - Não duvidei.

De noite, fui ao restaurante associativo da rua, e pensei de novo na minha vizinha. Ao entrar, ela já estava lá, ajudando um casal de italianos a preparar o jantar.

- Oi, Daniel. Não posso conversar agora.
- Não se preocupe. De verdade.

A vantagem dessa onipresença é que, quando necessário, ela..

...resolve todos os problemas da redondeza

Precisa de pintor de paredes? A Edith tem um pra indicar. Quer comprar uma mesa? Ela conhece as lojas em promoção. O aquecimento central está com defeito? Fale com ela, e no dia seguinte está perfeito de novo. A Edith tem sempre uma resposta e uma solução pra tudo. Além de onipresente, é também onisciente.

Mas apesar de estar por perto quando eu penso nela, o que me intriga é o fato de que...

...meus amigos nunca a viram

Vários já vieram me visitar em Paris. Todos perguntam por ela. Da minha sacada, mostro o jardim do seu apartamento, conto o caso do pé de mesa que caiu e digo que certamente irão vê-la, uma hora ou outra. Nenhum conseguiu. Houve uma que fez plantão em frente ao prédio, com máquina fotográfica em mãos, esperando alguém "de sessenta e poucos anos e cabelo vermelho". Fotografou até uma velha punk, com cara de quem havia acabado de chegar de Woodstock, a pé. Mas a Edith, que é bom, necas.

Mesmo insistindo em não se mostrar para os meus amigos, ela continua aparecendo pra mim. E de uns tempos pra cá, vem acompanhada do...

...monsieur Thésée

A Edith tem um amigo inseparável e complementar. Enquanto ela fala pelas tamancas, ele nunca abre a boca. Seu nome é Monsieur Thésée (pronuncia-se têzê). Estranhamente, é a mesma pronúncia para "taisait", que significa "calava-se". E também o nome de um personagem mítico grego, Teseu, em português. São muitas coincidências estranhas.

Monsieur Thésée e Edith fazem uma dupla perfeita, apesar de não serem marido e mulher, pois ela...

...é casada com uma lenda

As dúvidas sobre a suposta existência da minha vizinha acabaram-se quando ela me apresentou seu marido. Aí eu percebi que estava mesmo delirando. Pois, vejam só, ele é um finlandês gorducho, de barba e cabelos brancos, sorridente e bonachão. A Edith, afinal, é casada com o Papai Noel.

As peças desse meu possível delírio encaixam-se tão bem que talvez seja mesmo caso pra psiquiatra. Vou perguntar pra Edith se ela não tem um bom pra me indicar.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Pequeno dicionário prático de francês

Palavras e expressões fundamentais para se fazer entender em Paris, e exemplos de utilizações práticas.

Embêter (Encher o saco) - Muito usado no dia-a-dia, por todo mundo: de jovens mães a cunhados, de sanitaristas a datilógrafos. É mais polido, e serve para demonstrar uma ligeira irritação.

. Monsieur, ça vous dérange de me dire pourquoi vous m'emb
êtez comme ça?
(O senhor se incomoda em me dizer por que me enche o saco dessa maneira?)


Emmerder (Encher muito o saco) - Também bastante utilizado, mas por um público mais restrito. Crianças, senhoras de mais de 70 anos e padres franciscanos não a usam, devido à raiz da palavra, "merde".

. Il m'a emmerdé toute la nuit avec ses b
êtises de Julio Iglesias
(Ele me encheu muito o saco a noite inteira com suas bobagens de Julio Iglesias)


Faire chier (Encher o saco de verdade) - Apesar do sentido escatológico e não-publicável, é a expressão campeã nacional na França. E a preferida de adolescentes rebeldes, roqueiros rebeldes e visitantes da EuroDisney, rebeldes ou não.

. Elle veut faire la queue deux heures pour voir ce con de Mickey? Ça me fait chier.
(Ela quer fazer a fila de duas horas pra ver o idiota do Mickey? Isso me enche o saco de verdade.)


Uh la la (Enfatizar ligeiramente) - Outro hit francês. Pode ser dito de todas as formas, com todos os sotaques, em todos os lugares. Não há quem não entenda. Ganha força extra se utilizado ao lado de "embêter".

. T'es en train de me dire que c'étaient les travestis qui embêtaient le joueur de foot? Uh la la, tu rigoles?
(Você está me dizendo que eram os travestis que enchiam o saco do jogador de futebol? Uh la la, tá brincando?)


Uh la la la la (Enfatizar mais) - Bom para ser usado com "emmerder". Para alcançar o resultado desejado, os "la las" devem ser ditos de maneira bem espaçada.

. Uh la la la la. Ça suffit. T'as déjà emmerdé la moitié de la planète avec ton tambourin.
(Ô, inferno. Chega, né? Você já encheu o saco da metade do planeta com esse seu pandeiro)


Uh la la la la la la (Enfatizar muito) - Nesse caso, os "la las", que são seis, devem ser ditos ainda mais lentamente, de preferência desacelerando no final. Perfeito para acompanhar um "faire chier" bem colocado.

. Elle voulait absolument aller chez Ikea. Uh la la la la la la, que ça m'a fait chier, bordel.
(Ela queria de todas as maneiras ir à Ikea. Putaquepariu, como isso me encheu o saco)


Bof - Se ninguém entender quando você utilizar essas expressões acima, então apele para a bufada. Diga qualquer coisa, mesmo em português, e bufe no final. Mas com vontade. Pode ter certeza: você será compreendido na mesma hora.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Explicando o verão francês

Levou-me um ano e meio, mas esses dias tive o insight de que a questão do verão, ou da sua ausência, na França é muito mais do que uma simples consequência da posição do país no globo terrestre. É uma consequência semântica.

A explicação é simples.

Como se sabe, o vocábulo "verão" em francês é "été" (pronuncia-se êtê). Mas a mesma palavra é também o particípio passado do verbo "être", que é o equivalente aos nossos verbos "ser" e "estar". Portanto, "été" também significa "sido" ou "estado".

Percebe-se, pois, que já no vernáculo o conceito de verão na França é completamente ligado ao passado. A estação parece nunca vir. Já foi. E não tem perspectivas de volta.

Para ilustrar a teoria, escolhi completamente ao acaso uma frase juntando os dois sentidos de "été":

. L'été a été pourri. (O verão foi uma tragédia).

Já em português, a palavra "verão" soa semelhante à 3ª pessoa do plural do verbo "vir", conjugado no futuro: "virão". Ou seja, dá a sensação de algo que vai chegar sempre. E chegar de galera.

Para não parecer injusto, também selecionei aleatoriamente uma frase em português, contendo os dois termos citados.

. No verão, virão gatas bronzeadas de todos os lados.

Entenderam? É uma questão de perspectivas diferentes, causada pela gramática.

E já que tem passeata pra tudo em Paris, vou ver se junto alguns brasileiros para irmos às ruas exigir a troca do vocábulo que denomina a estação quente. Talvez por "veron", que parece "verão", com pronúncia e grafia afrancesadas.

Não sei se vai resolver. Mas vale a pena tentar.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Meu vizinho Chico Buarque

Gosto de dizer que o Chico Buarque é meu vizinho em Paris.

Essa é uma história boa para se contar em mesa de bar. E é claro que não é verdadeira. Mas como eu conheço uma pessoa que realmente tem um apê no mesmo prédio que ele - ou diz que tem, vai saber -, resolvi apropriar-me do fato. Causa um certo frisson dizer que tem o Chico Buarque como vizinho, mesmo fictício. Ainda mais se lançar a conversa na hora certa, bem sutilmente.

- ...e aí tava tocando aquela música que o Chico Buarque fez na época...
- Ele é meu vizinho.
- Hã?
- O Chico Buarque. Meu vizinho.
- O Chico Buarque?
- Isso.
- Vizinho de porta?
- De porta não. Mora perto.
- Perto como? Pertinho, pertinho?
- Perto, bem perto.
- E você já encontrou com ele?
- Nem te conto.

Não conto porque não tenho nada pra contar. O apartamento dele fica a uns bons 30 minutos de caminhada a partir do meu. E nunca cruzei com ele na rua. Mas esses detalhes não preciso revelar.

- E como é que ele é?
- Nem alto, nem baixo. Cabelo curto, olhos azuis, seus sessenta e poucos anos...
- Mas isso todo mundo sabe. Quero saber da vida dele. Como ele é pessoalmente?
- Aí tá exagerando, né? Nunca falei que era conhecido meu. Falei que era vizinho. Apesar de...

Esse recuo estratégico, dizer que não é conhecido, é importante para manter o ar de veracidade. Os mentirosos contumazes entrariam com os dois pés, já evocando uma falsa intimidade com o compositor, ou com o "Chiquinho", como eles diriam. Eu prefiro sugerir e deixar a pessoa imaginar a continuação da história. Esse é o papel do "apesar de..." na frase. E a conversa depois vai mais ou menos pra esse lado.

- Apesar de quê?
- Deixa pra lá. Você não vai acreditar mesmo.
- Acredito, claro.
- Muita gente acha que é mentira.
- Eu não.
- Mas eu nem falei ainda.
- E eu já acho que é verdade, olha só.
- Acha nada.
- Acho, juro.
- Tem aquele documentário.
- Qual?
- Em Paris. Ele fala que anda pelas ruas da cidade pra se inspirar.
- Eu vi.
- Então...
- Agora você vai dizer que viu o Chico Buarque compondo enquanto andava por Paris?
- Eu não disse nada.
- O cara rabiscando uma letra embaixo da torre Eiffel, assoviando no Champs-Elysées, batucando uma baguete?
- Por isso que eu prefiro não falar nada. Você não vai acreditar.
- Você é um tremendo de loroteiro. E eu caindo no seu papo-furado.
- Bom, já que você não acredita então nem vou contar onde o Veríssimo fica quando vem à cidade
- Vai dizer que é na sua casa?
- Não conto, já disse. Você não vai acreditar mesmo.
- Mas eu acredito. Conta.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Paisagem da janela

Antes de começarmos, olhem bem para esta letra: û.

Essa é mais ou menos a visão aérea da disposição dos prédios vizinhos ao meu, considerando que eu moro ali em cima, no acento circunflexo. Tenho vista para toda a vizinhança. E toda a vizinhança tem vista para mim.

No começo, essa exposição me incomodava. Mas agora já me acostumei. A questão de se viver em Paris é que a sua privacidade é tão real quanto a popularidade do presidente Sarkozy: dizem que existe, mas ninguém prova.

Com tantos apartamentos à mostra, se eu fosse o James Stewart, em Janela Indiscreta, teria um prato cheio à disposição. Mas mesmo não bisbilhotando (muito) a vida da vizinhança, existem coisas que não dá pra deixar de notar.

. O solitário da sacada
No prédio da frente, tem um sujeito que fica o dia inteiro encostado na sacada, paradão, fumando e olhando a rua. Não sei o que ele faz da vida, mas desconfio se tratar de uma versão francesa do Seu Rafael, está ali para garantir que nada vai mudar. A diferença é que o equivalente brasiliense só se preocupa com a temperatura do dia. Já o meu vizinho parece se importar com a sucessão, pois agora passou a contar com a companhia - estática também - de uma criança, que eventualmente passa algumas horas ali, talvez aprendendo os segredos do ofício.

. Os festeiros do 7º andar
É um absurdo! Todo sábado, sem exceção, eles se reúnem no prédio à esquerda do meu. São trinta, quarenta, sei lá. Bebem, escutam música em volume alto, dançam, riem e ficam nessa até tarde. Já decidi reclamar com eles, aprontar um barraco, essas coisas de vizinho, sabe? Afinal, é um absurdo nunca terem me convidado.

. O casal atômico
Nunca os vi, mas já os escutei diversas vezes. E sempre que eles têm uma discussão braba (e eles sempre têm uma discussão braba) a vizinhança logo aparece nas respectivas janelas. É a chance de ver o velho barbudo do prédio da direita, a gorda da frente com lenço na cabeça, e o seu vizinho de baixo, que está sempre com um poodle nos braços. Vida besta? Quem disse?

. A vizinha de porta
Também não mostra a cara, só a voz. Fico tanto tempo sem ouvir qualquer barulho vindo da sua casa que chego a pensar que ela morreu ou se mudou. Mas há um processo infalível para saber se continua por lá: basta tocar violão na sacada. Não importa a hora do dia. Não importa quem toque. O violão soou, ela pintou! Pra reclamar, é claro.

. Os cozinheiros do 2º andar
Ao contrário do casal atômico, eles não fazem barulho. Mas o cheiro do que preparam se espalha pelos arredores. Outro dia quase gritei pra avisar que o bolo de chocolate estava queimando. Achei melhor deixar quieto.

. A mocinha de baby doll
Mora bem em frente à minha janela. Em frente mesmo. Mas ela, diabos, só apareceu uma vez.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Sartre em si

Uma coisa que me intriga nas teorias de Jean-Paul Sarte é essa classificação de seres em Em-si e Para-si. Se bem entendi, o Em-si é um objeto qualquer que possui uma essência definida, criado para suprir uma necessidade, tipo um sanduíche de mortadela, uma calça capri ou uma bandeira do Vasco.

Já o Para-si cria as relações funcionais e temporais entre os seres Em-si. Por exemplo, é um sujeito que acorda, dá uma bocada no seu sanduíche de mortadela, veste a calça capri e pendura a bandeira do Vasco na janela.

Até aí, tudo bem.

Sartre continua dizendo que o Para-si é um ser que tem conhecimento a respeito de si mesmo e do mundo. Já o Em-si, em se tratando de consciência, ele não tem nenhuma. Não sabe nem mesmo que existe.

Eu concordo que o Em-si não tenha consciência. Afinal, não costumamos ver sanduíches de mortadela reclamando. "Ei, caramba, morde com menos força". E calças capri, até onde se sabe, ainda não saem andando sozinhas pelas ruas.

Já dizer que o Para-si tenha consciência, é questionável. Discute-se nos meios filosóficos se um cidadão que pendura a bandeira do Vasco na janela pode ou não ser enquadrado como um grande conhecedor do mundo.

Entendam que eu não tomo partido. Apenas tento compreender Sartre.

Bem, ele ainda dizia que os objetos do mundo - os seres Em-si - apresentam-se à consciência humana por meio de suas manifestações físicas. E os Para-si não têm uma essência definida. Ou seja, determinam sua existência a cada momento, e têm a liberdade de mudar de vida desse segundo em diante.

Disso tudo, pode-se concluir que o sanduíche de mortadela é a manifestação física da idéia do sanduíche de mortadela, o que faz um grande sentido quando se vai ao mercado municipal de São Paulo e se depara com o baita sandubão que eles preparam. Ali entende-se a existência do sanduíche como algo sólido. Bem sólido.

A calça capri, um ser Em-si, não tem consciência de sua existência. Sartre, se ainda estivesse vivo e utilizasse esse exemplo, provavelmente reformularia sua teoria. Diria algo como "no caso da calça capri, ela não tem a consciência de sua própria existência. Parece que quem veste uma também não a tem".

E a bandeira do vasco, também um ser Em-si, para existir depende de um ser Para-si, que é o sujeito que a pendura na janela. Como esse mesmo ser Para-si tem a liberdade de mudar o rumo de sua vida a cada instante, pode ser que ele deixe de torcer pelo Vasco. Seguindo o raciocínio, se todos os torcedores do Vasco mudassem de idéia e passassem a apoiar, por exemplo, o XV de Piracicaba ou o Itabaiana, a bandeira do Vasco deixaria de representar a idéia de torcedor do Vasco. Portanto, deixaria de fazer sentido a sua existência. O que, para alguns, faria muito sentido.

Não sou eu quem diz, é Sartre.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Bigodeado

Josivaldo foi passar férias em Paris, e voltou ostentando um fino bigode, daqueles com as extremidades apontando para cima, sabe?

- Bigode, Josivaldo?
- Dá um ar francês, Filomena, tipo Napoleão.
- Napoleão não tinha bigode.
- Não?
- Não.

- Ué, ele não tinha alguma coisa marcante? Bigode, aparelho nos dentes
, mullets?
- Tinha, mas era a mão dele. Que ficava sempre dentro da camisa.

- Droga, como eu posso ter me confundido?
- É o que me pergunto.

- Tenho certeza de que vi na tevê um francês conhecido com um bigode igual ao meu. Alain Prost, acho.
- A cara do Prost é tomada pelo nariz mastodôntico, e não por pêlos.
- Jacques Chirac?
- Careca, Josivaldo.
- Le Corbusier?
- Tinha óculos redondos.
- Piaf?
- Era
Edith Piaf. E, por acaso, era mulher.
- E não tinha bigode?
- A não ser que trabalhasse como mulher barbada, o que não era bem o caso.

- Lembrei, Filomena! Eu copiei daquele
famoso pintor francês, o Salvador Dali.
- Josivaldo, o Dali era espanhol.
- Não era francês de forma alguma?
- Era completamente espanhol, desses nascidos na Espanha. Apesar de que se achava o máximo, como um bom francês.

- Diacho.
- Josivaldo, se eu fosse você eu raspava esse bando de pêlos aí.
- E demorou tanto pra crescer... Ainda bem que me resta a boina.
- Boina?
- É, a que eu comprei na França.
- Hã?
- Igual à daquele revolucionário parisiense.
- Qual?
- O Chê.
- Ô, Josivaldo...

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Joue-nous Raoul!

Tem coisas que não dá pra traduzir. Por melhor que você chegue a falar uma segunda língua, existem expressões que necessitariam de tanto tempo para serem explicadas que é melhor nem tentar.

Isso não sai da minha cabeça desde que estava em um festival em Paris e, meio da muvuca, alguém deu um grito. Uma espécie de senha-para-se-reconhecer-brasileiro-em-show-de-rock-em-qualquer-parte-do-mundo. O "toca Raul!" saiu esganiçado, quase desafinado. Mas era um "toca Raul!" legítimo, bem audível.

Como explicar para um francês todo o significado sócio-anárquico-místico-irônico-contracultural da expressão?

- Não dá pra explicar.
- Tenta.
- O Raul Seixas é um músico baiano, um pioneiro do rock brasileiro.
- Então as pessoas querem escutar as músicas dele no show?
- Não é isso.
- E por que pedem para tocá-las?
- Elas não estão pedindo para tocá-las. Só estão gritando "toca Raul!".
- Não entendo.
- Eu disse que era complicado.
- Continua.
- O Raul Seixas fez muito sucesso nos anos 70, principalmente pelas músicas em parceria com o Paulo Coelho.
- Paulo Coelho, o bruxo adorado aqui na França?
- O próprio.
- Já até imagino. Eram músicas de meditação, de elevação espiritual, né?
- Na verdade, muitas eram de adoração ao coisa ruim.
- Coisa ruim?
- O canhestro.
- Hein?
- O príncipe das trevas.
- Paulo Coelho adorando o capeta? Agora embolou tudo.
- Avisei...
- Deixa eu tentar compreender: as pessoas pedem músicas do Raul Seixas, mas não querem escutá-las. E muitas dessas músicas foram feitas juntas com o diabo, mas adoravam o Paulo Coelho.
- Na verdade, é o contrário.
- É confuso.
- Ele também era confuso. Tanto que ficou conhecido como maluco beleza.
- Era doido?
- Era. Quer dizer, não era. Bom, talvez fosse. Sei lá. E o mais curioso é que existe até hoje uma legião de fanáticos que se vestem exatamente como ele.
- Então são esses os malucos beleza que gritam "toca Raul!"?
- Nem sempre.
- Eu acho que nunca vou entender o que isso significa.
- É complicado mesmo. "Toca Raul!" é uma expressão muito brasileira. Tão brasileira quanto a Gisele Bündchen.
- Gisele Bündchen? Ela não é alemã?
- Ah, não enche.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Praias, pandeiros e limoncelos

Paris fica a centenas de quilômetros do oceano. Mas no verão, ou no que eles chamam de verão, tem sua própria praia, a Paris Plage, nas margens do rio Sena. E tem tudo a que se tem direito: areia, corpos bronzeados, espreguiçadeiras, cerveja gelada e uma grande programação de espetáculos e eventos. Só falta mesmo o mar, esse pequeno detalhe.

Fui lá um dia desses, à noite, pra um show. Cheio pacas. Não dava pra chegar perto do palco. E nem pra ouvir de longe, pois não havia caixas de som espalhadas pelo lugar. Ou pagava uma de sardinha e me enlatava lá na frente ou desistia. Fiquei com a segunda opção. Assim como os amigos com quem estava.

Yasir, um desses amigos, carrega um pandeiro aonde vai. Ele pode esquecer os documentos, o dinheiro e até o próprio nome, o que já vi acontecer algumas vezes. Mas o pandeiro ele não esquece jamais.

Sem ter o que fazer, sentamos à beira do rio. Rapidamente, o a partir de agora chamado psicopata do pandeiro sacou seu instrumento, numa velocidade digna de pistoleiro. E antes que eu pudesse impedir, passou a tocar e cantar seu repertório repleto de hits. O cara é animado. Se começar, não pára. É do tipo que, se tivesse uma banda, só sairia do palco expulso. Se fizesse um filme, colocaria cenas depois dos créditos. Se escrevesse um livro, faria a enciclopédia Barsa parecer gibi.

Nesse dia, porém, ele disputou os holofotes com outro figura.

Entre uma pandeirada e um "la la iá", surge do nada um sujeito com um violão em uma das mãos e uma garrafa de limoncelo em outra. Bandana na cabeça, pose de roqueiro, bigode, era a cópia francesa do Santana. Sua chegada na roda foi impactante. Todos silenciaram e o encararam. "Deve tocar muito", era o pensamento comum. Sem dizer nada, posicionou o violão, levantou a palheta e mordeu a ponta da língua, preparando-se para atacar as seis cordas. Tensão geral. A palheta continuou levantada, agora refletindo a luz da lua. Estávamos ansiosos pelo desfecho daquilo, pela reencarnação de Hendrix. Sua mão começou a se mover. E a palheta lentamente escorregou pelos seus dedos e caiu, enquanto a língua continuava meio de fora, já com um pouco de baba. Nosso guitar hero ficou assim longos segundos, travadão da silva.

Sem titubear, o psicopata do pandeiro puxou logo uma versão de Mas Que Nada, acompanhado alegremente pelos diversos franceses que já tinham se enturmado, e batiam palmas e cantavam a plenos pulmões.

Santana cover, de volta da sua viagem tipo miojo, instantânea e pessoal, não encontrava a palheta desaparecida. Então sacou de um canivete que trazia no bolso e cortou uma garrafa pet, improvisando um novo artefato. Com isso, resgatou um pouco do respeito que havia conquistado e perdido tão rapidamente. Observando o movimento, o psicopata do pandeiro não parecia disposto a fazer outra concessão no seu set list, e continuou a surrar o couro.

Vendo que não dava pra competir, Santana cover esperou o fim da música, deu um gole do limoncelo e pediu a palavra.

- Vou tocar uma pra todo mundo. E você, com o pandeiro, pode acompanhar.

As primeiras notas foram facilmente reconhecidas. E todos entraram juntos no refrão de No Woman No Cry. Todos, menos o próprio violeiro, que ficou novamente pelo caminho, mais estático que a Vênus de Milo. Sem perder tempo, o psicopata do pandeiro fez um rápido medley, e passou de Bob Marley a Camille, para a alegria dos franceses.

Com a apresentação inevitavelmente comprometida, Santana cover, mais uma vez de volta, deu outro gole da garrafa e levantou-se, determinado. Foi em direção a Yasir, que aumentou a intensidade das pancadas no instrumento. O guitarrista continuou andando. O pandeirista, pandeirando. Um olhava pro outro, fixamente. Eis que, no meio do caminho, o viajante solitário mudou bruscamente de direção e foi rumo ao rio. Despencaria tal uma âncora, não fosse a pronta intervenção de um dos presentes, que e o aparou e ainda o convenceu a voltar pra casa.

- Tá bom, nós vamos.

Disse isso, pegou o violão, virou o resto do limoncelo e saiu conversando animadamente com alguém que só ele via. Aproveitei e fui também, mas pro outro lado. Só o psicopata do pandeiro ficou. Afinal, com ou sem Santana, Hendrix ou Bob, o show tinha que continuar.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Literatura de metrô

A Carol, uma grande (na qualidade, não no tamanho) amiga, tem uma teoria interessante: o seu itinerário no metrô parisiense depende do livro que você está carregando. Se for bom, você pega o caminho mais longo. Se for ruim, o caminho mais curto.

Pensando nisso, faço algumas sugestões - não de títulos, mas de assuntos - e os respectivos trajetos que eles merecem.

. Revolução Francesa

É importante conhecer bem. Mas, acredite, o que se aprende na escola no Brasil é mais do que a maioria dos franceses sabe sobre o episódio. Uma revisada básica já te deixa bem na fita. Vá de itinerário normal.

. Qualquer coisa do Victor Hugo

Para ler Victor Hugo bem lido são necessários silêncio e concentração. Melhor pegar o banco do fundo do penúltimo metrô, que parte por volta da meia-noite. É importante ser o penúltimo, porque o último carrega a leva final de bêbados, e eles não vão entender o seu esforço de fazer um ar superior ao ostentar a capa de Les Misérables. Além disso, se um deles passar mal e der umas golfadas no seu livro, toda a sua pose de intelectual vai por água(s) abaixo.

. Um livrinho de auto ajuda

Pra mim, auto ajuda é quando você socorre o carro em pane do seu amigo. Pode pegar o itinerário mais curto, que você se auto ajuda muito mais chegando cedo em casa.

. Qualquer livro com título em português e as cores do Brasil na capa

Se você quer fazer sucesso na França, deixe saberem que você é brasileiro. Não falo de vestir a camisa da seleção, uma peruca amarela e sair sambando de braços abertos no metrô, jogando confete pro alto. Esse mico pode causar incidentes diplomáticos permanentes. O segredo é ser sutil. E um sutil culto vale o dobro. Se quiser valorizar-se ainda mais, solte umas frases meio sussuradas, misturando português e francês, como "c'est pas possible! Ele vai mesmo matar cette femme". Nesse caso, planeje o caminho mais longo, com muitas trocas. Mas atenção: lembre-se de não sair com um livro que tenha o atacante Ronaldo na capa. Nem preciso explicar porquê, preciso?

. A biografia do presidente Sarkozy

Dê uma olhadinha ligeira no capítulo Carla Bruni, entregue o livro para os bêbados do último metrô (eles sabem o que fazer) e vá a pé.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

E pro jantar?

(Renoir - Déjeuner des Canotiers)

A comida é uma grande obsessão na pátria de Paul Bocuse. Tão grande que, enquanto se come, fala-se do que se irá comer mais tarde. Ou do que já se comeu antes.

- E pro jantar?
- Coq au vin.
- Amo frango ao vinho.
- Eu também. Mas nada se compara à maravilha que comi semana passada na casa do Gérôme.
- E o que foi?
- Pato com laranjas. Não existe melhor que o dele.
- Você diz isso porque ainda não provou o peru com castanhas que a Julie prepara.
- Já me disseram que é divino.
- Divino, divino.
- A Julie uma vez me convidou para uma tarde de crepes.
- Que inveja...
- Tinha de queijo e presunto, de champignons, de ratatouille e, pra sobremesa, crepe Suzette.
- Crepe Suzette da Julie?
- O mitológico crepe Suzette da Julie.
- Inimitável.
- Incomparável.
- Semana passada sonhei com ele cinco dias seguidos.
- Me deu tanta vontade que vou até fazer crepe amanhã para a sobremesa, depois do steak tartare.
- Tem steak tartare pro almoço?
- Tem sim. E foie gras de entrada.
- Já estou com água na boca.
- Foie gras é o manjar dos deuses. No casamento da Heloïse eu comi frito. Já provou?
- Nunca. É bom?
- Ô.
- Não foi nesse mesmo casamento que serviram blanquette de veau?
- Não, não. A blanquette foi no casamento do Fabrice. Antes daquelas batatas gratinadas divinas.
- Divinas, divinas.
- Você estava lá?
- Claro. Não lembra? Fomos juntos, depois de tomarmos o aperô na casa do Patrick.
- Patrick Florian?
- Ele mesmo. Grande anfitrião. Serviu-nos um delicioso fondue bourguignonne.
- Agora lembro. Foi nesse dia que a Marguerite Ducrois queimou feio os dedos.
- Coitada. Deixou a carne cair no óleo quente e tentou pegá-la.
- Eu ainda gritei: "Marguerite, atenção!".
- E a pobre entendeu "com a mão!".
- Queimou tanto que precisou largar o emprego de digitadora.
- A vantagem é que passou a ter mais tempo para cozinhar para os amigos.
- Isso é mesmo uma grande vantagem. As quiches da Marguerite são realmente...
- Divinas.
- Divinas, divinas.
- Combinam perfeitamente com o crème brûlée do La Grille, o restaurante lá perto de casa.
- O deles tem aquela casquinha bem crocante?
- Bem crocante.
- Nem me diga. Crème brûlée é a minha perdição.
- Nossa, conversamos tanto que esquecemos do coq ao vin. Qual pedaço você quer?
- Nenhum.
- Nenhum?
- Depois de falar tanto de comida? Quer que eu engorde?

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Como era verde o meu coentro

Ele não imaginava que o único conhecimento culinário que adquiriu em sua temporada francesa fosse lhe render tanto.

- E aí você coloca coentro.
- Coentro?
- Isso. Mas não pode pôr muito. Só salpicar um pouquinho assim, ó.

A dica gastronômica ganhou ares de grande revelação, impulsionada pelo fato de João Pedro - que agora só aceitava ser chamado de Jean Pierre - ter trabalhado em um restaurante parisiense. Lá, fez as vezes de garçom e lavador de louça. Nunca fritou nem um ovo. Mas é claro que ninguém precisava saber do detalhe.

- Sabe, no Au Canard Heureux a gente sempre tinha coentro fresco.
- E é tão diferente assim?
- Uh la la, nem te falo.

Acontece que um famoso chef de cozinha, em uma dessas coincidências mirabolantes da vida, disse na TV em horário nobre que coentro fresco era o segredo da boa culinária francesa. No dia seguinte, todo o bairro comentou o fato.

- Você viu aquele chef no jornal de ontem, antes da novela?
- Vi sim. Ele falou do coentro.
- E João Pedro já dizia isso bem antes.
- João Pedro, nada. Jean Pierre!

Jean Pierre virou celebridade instantânea e passou a ser tido como uma referência, não apenas culinária. Em qualquer assunto, de moda a mecânica de automóveis, todo mundo passou a consultá-lo antes de tomar decisões.

- Esse vestido está bom, Jean?
- Tá muito rouge. Tenta algo mais bleu.
- Qual vinho combina com carne vermelha?
- Nada nesse mundo é melhor do que um bom Côtes du Rhône, safra 2001.
- Jean, meu carro tá engasgando há tempos.
- Vende e compra um Peugeot.

Com a fama repentina, decidiu criar o próprio negócio. Alugou um cafofo, comprou um par de cadeiras, uma mesa e um sofá e mandou colocar na entrada da rua uma placa em letras garrafais: “Jean Pierre, consulteur professionel. Você não sabe o que quer? Chame Jean Pierre.” E passou a vender dicas a preço de ouro.

- Tô pensando em plantar tomates. O que você acha?
- Tomate é démodé. Planta abacaxi. Abacaxi é a nova sensação.
- Muito obrigado!
- De rien. E passa ali no caixa, na saída.
- Jean, minha mulher quer me deixar. Parece que ela se engraçou com um garotão mais novo. O que eu faço?
- Deixa a mocra sumir. Compra uma passagem pra Paris, veste uma camisa da seleção brasileira e vai pra perto da Torre Eiffel. Você vai descolar uma francesa em meia hora.
- Nossa, nem sei como agradecer...
- Pode começar fazendo um cheque.

Jean Pierre passou a ser o cara do momento. O mais cool de todos. Se usasse calça cor de abacate, no dia seguinte todo mundo estava com uma igual. Se cortasse as madeixas em forma de rabo de poodle, não demorava pra haver fila nos cabeleireiros do bairro. Se falasse uma expressão em francês – “je suis désolé”, por exemplo -, até as criancinhas começavam a repeti-la. Era a fama que ele nunca imaginou. Tinha até que sair disfarçado de casa, para não ser atacado por admiradores histéricos.

Mas o sucesso, no galope que veio, foi-se também.

Um dia, ao chegar ao escritório, Jean estranhou: não havia a habitual fila, de dobrar quarteirão, lotada de gente esperando a vez de ser atendida. Na verdade, não havia ninguém. Nenhuma alma, viva ou penada.

Achando que fosse uma espécie de brincadeira, abriu a porta da sala, esperando encontrar uma multidão enfurecida lá dentro. Mas estava vazia. Desorientado, saiu às ruas, tentando entender o que tinha acontecido. Não demorou, deu de encontro com uma fila babilônica, ainda maior do que a que havia habitualmente em frente ao seu escritório. Entrou nela, como quem não quer nada. E puxou papo com uma senhora de idade já avançada.

- Que fila é essa, madame?
- É para ver o Mathäus Kaninchen.
- Mathäus Kaninchen?
- É o novo guru alemão. Sabe tudo. Dizem até que cura unha encravada só de olhar pra ela.
- Como é que nunca ouvi falar?
- Ele era conhecido como Mateus Coelho.
- O Mateus limpador de privada, casado com a Úrsula, a mulher barbada do circo?
- Esse mesmo. E ele é ex-limpador de privada. Aliás, ex-bombeiro hidráulico. Mais respeito, viu?

Aflito, e ainda disfarçado, Jean quis saber mais.

- E o Jean Pierre?
- Quem?
- O guru francês.
- Coisa do passado.
- E como isso aconteceu de um dia pro outro?
- Você não viu? Ontem o homem da TV falou que o segredo do bom chucrute é colocar um pouquinho de suco de maçã em cima do repolho. E o nosso Mathäus já dizia isso há muito tempo.
- Mas o Mateus...
- Mathäus!
- Mas o Mathäus é um charlatão. Nunca cozinhou na vida.
- Que coisa mais feia, moço. Isso não passa de Missgunst.
-
Missgunst?
- Inveja, em alemão.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Seu Rafael

Seu Rafael é uma das mais enigmáticas figuras que já conheci. Trabalha – ou algo parecido – na rua em que eu morava, ainda endereço dos meus pais, em Brasília. A sua rotina consiste em permanecer o dia inteiro sentado, observando o vai-e-vem de carros, bicicletas e pessoas. Parece que ele é pago para fazer isso.

- Bom dia, Seu Rafael.
- Tá queeente hoje.

Você pode puxar qualquer assunto com o Seu Rafael, qualquer um, e ele sempre vai falar do tempo, carregando nas vogais da palavra que deseja enfatizar.

- Tem horas, Seu Rafael?
- Hoje de manhã tava muito friiio.

Do seu posto de trabalho, Seu Rafael sabe tudo o que acontece na rua. Mas as pessoas não sabem nada sobre ele.

- O nome dele é Rafael de quê, hein?
- Não sei, mas parece que ele não sabe também. Ouvi dizer que perdeu a memória e veio parar aqui.
- Coitado.
- Pobrezinho mesmo.

No dia em que fui morar na França, já no carro a caminho do aeroporto, eu o vi com seu então inseparável chapéu de vaqueiro, acessório que sempre contribuiu para aumentar as lendas em torno dele.

- De onde ele é?
- A vizinha do fim da rua outro dia falou que ele era um pistoleiro em Goiás. Por isso usa o chapéu até hoje.
- Deus me guarde!

A verdade é que o Seu Rafael tornou-se um ponto de referência não apenas na minha vida, mas na de todo mundo que mora naquela rua. Um ponto de referência na vida de alguém é algo com uma carga sentimental única. Pode ser um amigo de longa data, um fato inesquecível, um lugar singelo ou uma cueca furada da infância guardada no fundo de uma gaveta. Bom, talvez nem todo mundo guarde uma cueca da infância no fundo da gaveta. E o Seu Rafael, com sua rotina e conversa monotemática, tornou-se uma certeza de que as coisas não mudam em Brasília. Pelo menos não mudam na rua dos meus pais. E isso sempre nos tranqüilizou.

Durante sete anos, habituei-me a vê-lo quase diariamente, sentado, chapéu na cabeça, comentando sobre o tempo. Por isso o susto quando cheguei de férias no Brasil.

- Quem é aquele ali sentado?
- Não reconhece o Seu Rafael?
- De boné?
- Modernizou o visual.

Fiquei preocupado. Ele era a prova viva de que o Dia da Marmota existe. De que alguém pode viver a mesma rotina indefinidamente. Se ele, o último bastião da imutabilidade, havia mudado, o mundo estava perdido. A partir dali, tudo começaria a se transformar. O judiciário brasileiro tornaria-se sério. O dinheiro dos impostos passaria a ser revertido em nosso benefício. E até o Botafogo perigaria ser campeão. Uma situação completamente fora do controle.

Olhei ressabiado. Ele me viu. Acenei de longe, timido. Ele correspondeu, como sempre. Fui chegando perto, devagarzinho. Ele sentado, quase estático. “O boné não combina, está totalmente deslocado”, pensei. Parei a alguns metros dele e ensaiei uma meia-volta, interrompida por uma palavra vinda de sua direção.

- Bão?
- Tudo bem, Seu Rafael?
- Hoje tá queeente, hein?

Voltei pra casa tranqüilo. Liguei a TV, que noticiava mais uma derrota do Botafogo. Tudo, enfim, continuava como antes. Graças ao Seu Rafael.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Recortes de classificados

Como seriam os anúncios de classificados dos jornais parisienses, caso eles fossem obrigados a dizer a verdade.

. Apartamento - 12 m²
É quase o que você precisa

Tem uma quase cozinha, um quase banheiro e espaço para uma cama (ou quase). Não tem um quase elevador, porque não tem elevador nenhum. Está quase em bom estado. Mude-se hoje mesmo com o seu cônjuge para você se sentir quase dentro de uma caixa de fósforos.

Preço: seu salário quase inteiro.

. Motocicleta semi-nova
Voe pelas ruas e dê asas aos pedestres

Compre essa linda moto e saia cortando todo mundo no trânsito de Paris. Feche ciclistas, fure sinais e levante um ou dois pedestres que se meterem na sua frente, com todo o conforto e a potência de um motor de 500 cc.

Preço: depende se é com ou sem emoção.

. Bretanha – Férias de verão
Se você não vier, outros virão

Dizem que é verão na Bretanha. Bom, você acredita se quiser. Lá vai chover? Vai. Vai fazer frio? Vai. A cerveja da região inteira vai estar quente? Vai. Mas vá assim mesmo. A gente vai adorar vender esse pacote caro pra você.

Promoção: você paga um e não leva nenhum.

. Vendo filhote de cachorro
Parisiense que é parisiense tem

Ele late o tempo todo. Ele faz as necessidades pela casa. Ele é cheio de pulgas. Ele detesta tomar banho. Ele solta pêlos por toda parte. Ele é tudo o que você precisava para se sentir um verdadeiro parisiense.

Preço: só custa a tranqüilidade dos seus vizinhos.

. Procura-se garçom
O mau humor é nossa única cortesia

Precisa-se urgentemente de alguém de péssimo humor para trabalhar de garçom. Não pode ser simpático. Não pode se esforçar para entender o pedido de um cliente estrangeiro. Não pode trocar o tomate por mais batatas. Não pode dar desconto.

E atenção: sorriu, a gente demitiu.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Paris, 2155

Em 2155, pai e filho passeiam pelas margens do rio Sunny, antes chamado Sena.

- Logo ali ficava a torre Eiffel, meu filho. Um dos símbolos da antiga França.
- Nunca ouvi falar.
- Era enorme.
- Servia pra quê?
- Não se sabe bem. Acho que foi construída para uma exposição.
- E cabia dentro de uma sala de exposição?
- Não ficava em sala nenhuma, filho. Ficava ao ar livre. Era um ponto turístico muito famoso, as pessoas vinham visitá-la. Mas isso foi antes de o McDonalds transformar o lugar num drive thru, que logo depois virou o maior fly thru do mundo.
- Então faz tempo, né?
- Faz sim. Seu avô tem umas fotos holográficas. Você nunca viu?
- Acho que vi. São aquelas em que a vovó está segurando um pão gigante e alongado de hambúrguer?
- Eles chamavam de baguete, e não era pra hambúrguer.
- Se não era pra hambúrguer, era pra quê?
- Ah, meu filho, naquela época os franceses comiam essa baguete com outras coisas, como queijos, patês e frios.
- Quem eram os franceses, pai?
- Eram os habitantes da antiga França. Eles bebiam muito vinho e falavam uma língua estranha, chamada francês.
- Que coisa mais bárbara.
- Nem me diga. Por isso, logo que assumiu o poder, Ronald McDonald II tratou de acabar com os resquícios dessa civilização. Seu primeiro ato foi trocar o hino nacional.
- Eu conheço o hino da República das Batatas Francesas, pai. É aquele que começa assim: “dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial...”
- Muito bem, filho. E depois dessa linda introdução ainda tem a segunda parte, que descreve as maravilhas da terra prometida de Mickey, o sábio.
- Sabe, papai, outro dia os professores-andróides falaram do Napolimão.
- É Napoleão, o famoso imperador.
- Os andróides contaram que foi ele quem mandou construir aquele arco que serve de porta de entrada do museu da paz George Bush.
- Isso mesmo. Fico muito contente de ver que você tem aprendido coisas tão importantes na escola.
- Mas pai, tem uma coisa que não entendo. Na escola disseram que essa cidade que a gente mora, New Hollywood of Europe, chamava-se Paris.
- É mesmo.
- É por causa da Paris Hilton, aquela modelo polêmica do século passado?
- Claro que não, filho. Quando Paris Hilton nasceu, a cidade de Paris já existia havia bem mais de 10 anos.
- Outra coisa que me contaram é que os franceses eram super mal humorados.
- Dizem que sim, filho, mas ninguém tem muita certeza. O que se sabe é que o IPF, o Índice Pateta de Felicidade, aumentou bastante desde que Ronald McDonald IV instituiu o Uncle Sam’s Day.
- Eu gosto do Uncle Sam’s Day. É bonito ver todo mundo colocar sapato social, meia, bermuda e boné e depois sair pra fazer hambúrgueres na churrasqueira comunitária da praça da Bastilha.
- É uma data nacional muito importante, filho.
- Pai, essa conversa me deu sede.
- Vamos ao Pizza Hut Notre-Dame. Você toma uma Coca Espacial e eu tomo um café.
- O que é café, pai?
- É a palavra francesa para a nossa bebida mais importante.
- A Kofi Annan?
- Isso mesmo.
- E por que eles a chamavam de café?
- Sei lá, filho. Esses franceses eram muito estranhos.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Lá tem. E aqui também.

. Na França tem Zidane e suas cabeçadas. No Brasil tem Roberto Carlos e suas meias.

. No Brasil tem Ronaldo, que operou o joelho duas vezes na França. E em Paris tá cheio de travesti brasileiro.

. Os franceses adoram sandálias havaianas. E sempre nos dão uma chinelada nas copas do mundo.

. O Brasil teve Fittipaldi, Senna e Piquet. A França teve Prost. Se em termos de talento eles estavam próximos, em tamanho de nariz o francês chega muito na frente.

. O general De Gaulle também era narigudo.

. Assim como o ator Gérard Depardieu.

. Não dá pra esquecer que o nasal do presidente Sarkozy é igualmente avantajado.

. Guto Goffi, baterista do Barão Vermelho, tem um nariz quilométrico, mas não é francês. O músico Manu Chao morou no Rio de Janeiro, mas não é brasileiro.

. O Brasil tem Chico Buarque, que cantou para as mulheres como ninguém. E a França tem Serge Gainsbourg, que cantou as mulheres como ninguém.

. Na França, a Brigitte Bardot embarangou legal. No Brasil, a Garota de Ipanema continua bonita.

. Uma modelo brasileira arrumou um filho com o Mick Jagger. O presidente francês arrumou uma modelo italiana só pra ele.

. Em Paris existe a praça Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro tem a praça Paris.

. O planejamento urbano de Brasília foi feito por Lúcio Costa, nascido em Toulon, na França. A sede do partido comunista francês foi desenhada por Oscar Niemeyer.

. No Brasil, o inverno pode ser quente. Na França, o verão pode ser frio.

. A Berthillon, principal sorveteria de Paris, fecha as portas no verão. E as praias do Rio de Janeiro continuam cheias no inverno.

. Na França tem um tipo de queijo para cada dia do ano. Mas não existe requeijão, queijo minas e catupiry.

. Tem dezenas de pães diferentes, mas não existe pão francês.

. Tem escargot, mas não existe buchada de bode.

. No Brasil tem feijoada, com feijão preto. Na França tem cassoulet, com feijão branco. Apesar da diferença de cores, em termos flatulentos a devastação é igual.

. Os franceses adoram carne moída de cavalo. Eu conheço brasileiros que comem testículos de boi.

. Na França, os cachorros estão em todos os lugares. No Brasil, as cachorras estão nos bailes funk.

. A polícia brasileira não prendeu os anões do orçamento. Já a polícia francesa acabou de capturar o maior ladrão de anões de jardim do mundo.

. Na França, dizem que os brasileiros falam cantando. No Brasil, dizemos que francês faz biquinho pra falar.

. No Brasil tem o pessoal do telemarketing. Mas na França tem a Edith.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

En route pour le Brésil

Viagem de férias. Tudo separado. Roupas de um lado, encomendas de outro, presentes no meio e as dezenas de revistas Brazuca num canto. Agora é só botar na mala. Peguei uma pequena. Não coube. Troquei por uma grande. Não coube também. A grande e a pequena. Ainda não deu. Separei então duas malas tamanho mamute, coisa que eu me prometi não fazer de novo. Com muito esforço, tudo entrou.

Eu posso ter uma semana de prazo para preparar as minhas coisas, mas sei que vou sempre fazê-las no último minuto. Dessa vez não foi diferente, claro.

Hora de sair. Com uma mochila nas costas e puxando as duas valises mastodônticas, demoro eras geológicas para chegar à Gare de Lyon, de onde sai o ônibus para o aeroporto. No ponto, um funcionário da Air France e um ciclista com sua bicicleta desmontável discutem animadamente sobre a Eurocopa. Entro no papo. Perguntam se sou espanhol. “Brasileiro”, respondo. “Brasileiro? E você pode me dizer o que o Ronaldo foi fazer com aqueles travestis?”. “Ronaldo? Nunca vi mais gordo”, digo. Eles não entenderam a piada, que também nem era tão boa assim.

Entro no ônibus e ligo o iPod no modo shuffle. Where the streets have no name, do U2, começa a tocar. Em Paris, as ruas têm nome. Em Brasília, para onde vou, não. São siglas. L2, W3, N1 e outras, que mais parecem códigos da NASA.

Pelo Boulevard du Temple, uma rua que tem nome, chegamos à Place de La Republique. O trânsito estava lento, mas a faixa exclusiva de ônibus facilita bem as coisas.

Paramos no sinal. Entra Sleep the clock around, do Belle & Sebastian. Lembro que nunca a escutei em uma festa. Na praça, uma espécie de sopa coletiva está sendo distribuída. Tudo muito organizado. Até um bêbado, que mal consegue ficar em pé, aguarda cambaleante sua vez de ser servido. Tenho a impressão de que ele bamboleia no ritmo da música.

Passamos por um ponto de vélib. Depois, por um Carrefour. Quando era criança, jurava que Carrefour era brasileiro. Esse supermercado sofreu horrores com o tanto de chocolate que meu irmão e eu comíamos de graça quando a família ia fazer compras mensais. Não sei como não quebraram. Só quem se deu bem com isso foi o nosso dentista carniceiro, que sempre teve renda garantida a cada visita que fazíamos ao seu consultório.

Um caminhão verde, amarelo, azul e branco passa ao lado. Depois, passa um conversível, com o motorista dando um trato nas coxas da passageira. É a vez de tocar Mala Vida, do Mano Negra, antiga banda francesa da qual fazia parte o Manu Chao, talvez mais amado no Brasil do que no próprio país.

À direita, um outro Carrefour. Apesar do supracitado desfalque na filial brasileira, parece que eles conseguiram sobreviver bem. Mais à frente, uma Ikea. Sinto náuseas. Uma ida à Ikea é pior do que tortura chinesa. É pior do que ressaca de tequila. Só não é pior do que ouvir Seu Jorge.

Estamos quase chegando ao aeroporto, e a música troca de novo. Agora são os Strokes, com Hard to explain. Vou pro inverno brasileiro, mas em Paris o dia tá quente. Ontem fez 33ºC. A cidade é muito melhor no verão, quando podemos sair sem aqueles 12 casacos que somos obrigados a vestir na época de frio, e que nos fazem parecer ursos polares ambulantes. No verão, os parisienses até sorriem nas ruas. Bom, quase sorriem. Também não dá pra exagerar, né?