sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Autour de Paris X - Strasbourg Saint-Denis


Raimundo Batista é mais conhecido como Raimundô Batistá, porque ninguém aqui consegue falar meu nome direito, ele diz. Ainda não encontrou em Paris um restaurante baiano que mate saudades da sua terra natal, então decidiu compensar com os indianos da rue du Faubourg Saint-Denis, que pelo menos na ardência não fazem feio.

Desce o prato do dia com uma porção dupla de curry forte, costuma pedir para contínuo espanto dos irmãos de Bangalore, donos daquela pocilga que chamam restaurante. Uma dose simples já é difícil encarar, duas só esse louco mesmo, os dois pensam quase em voz alta, enquanto se lembram que o curry deles é especialmente apimentado pra disfarçar a baixa qualidade do rango servido.

Para Raimundô não faz a menor diferença se a comida é boa ou ruim, o que importa é que a boca pegue fogo. Outro dia ele chegou falando que estava com a macaca e tal e queria um prato cheio daquela especiaria. Qual vai ser a refeição, perguntaram os indianos. Nenhuma, ele disse, só o curry mesmo e hoje vai ser puro.

Os irmãos nunca tinham visto uma coisa daquelas e chamaram tuodo mundo pra presenciar tão dessemelhante cena, cozinheiros, garçom, a moça feia do balcão e os clientes da casa, que vivia cheia porque era barata. Pára tudo porque um episódio desses merece platéia, disse o mais velho, contando com a instantânea aprovação do outro, que passou a chave no caixa e juntou-se aos demais.

O baiano sentou-se na mesa mais central do salão, pendurou um guardanapo na gola da camisa fazendo as vezes de babador e tomou dois copões d’água porque estava mais seco por dentro do que o sertão da Paraíba. Ninguém entendeu o comentário feito em português, mas mesmo que fosse em francês nenhum cidadão ali ouvira falar da Paraíba e muito menos do seu sertão. E depois todo mundo tava interessado era na capacidade do exótico magrela de bigode mandar pra dentro o pratão de l’enfer indien, o apelido do curry mais pungente das redondezas.

Raimundô nem ligou para o público e deu a primeira colherada. Sem piscar abocanhou logo a segunda. Um casal penteadinho começou a suar só de olhar aquilo, jogou 12 euros na mão de um dos indianos e foi embora sem terminar a refeição. Foi bom eles terem saído porque a notícia do brasileiro maluco já tinha corrido o bairro e tava assim de gente querendo entrar.

A terceira dose veio caprichada, com a colher transbordando, seguida da quarta, da quinta e da sexta. É o curry daqui que ele tá comendo, perguntou incrédulo um velho que havia perdido o começo da história. É sim, respondeu a senhora de vestido vermelho. Olha lá, os olhos dele tão inchando, gritou alguém do fundo. Nossa, disse um outro, seguido de vários oohh exclamados pelos presentes.

Os olhos estavam inchando mesmo e ficaram desse tamanho, as lágrimas escorrendo como rios. Ele chorava tanto que o prato ficou até molhado, e o pior é que começou a soluçar e uma hora até engasgou e cuspiu de volta o que tinha na boca. Vai morrer, esse doido vai morrer se continuar, isso é suicídio. Todo mundo estava horrorizado e fascinado com a cena.

Indiferente aos comentários, Raimundô foi até o fim da empreitada. Depois da última colherada, com os olhos a ponto de explodir, chamou um dos indianos, que veio estabanado.

Precisa de alguma coisa?

Sim. Traz outro desses.

E tirou da velha bolsa um saco de farinha de mandioca torrada, que guardara para ocasiões especiais, enquanto cantava ai que saudades eu tenho da Bahia e chorava copiosamente.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

Leia também o primeiro texto sobre Raimundo Batista, o mais louco motorista de táxi de Paris.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Autour de Paris IX - Les Galeries Lafayette


No 3º andar da megaloja Galeries Lafayette, um homem com seus 50 anos e barba por fazer passa por uma mulher da mesma idade, que passeia ao lado de um jovem adulto. Os dois param, se encaram e parecem não acreditar no que estão vendo.

- Nicolas?
- Leila?
- É você? Pensei que tivesse morrido. – Dizem ao mesmo tempo.
- Quanto tempo faz? Onze anos?

Nicolas olha a data no relógio. Deve ser a última pessoa na Terra a fazer isso.

- Faz onze anos amanhã, exatamente às 15h32.
- Seu safado, crápula, sem caráter. Me deixou esperando.
- Peraí, Leila. Você que fugiu. Eu fui ao banheiro e quando voltei você não estava mais aqui.
- Ao banheiro? Fiquei te esperando e você nunca mais voltou.
- Estamos nas Galeries Lafayette, Leila. Isso é um monstro que te engole e você nem percebe. Olha o tamanho da loja. Você já viu alguém encontrar qualquer coisa aqui em menos de quatro horas? Sabe quanto tempo demorei pra achar o banheiro? Dois dias. E depois mais três pra voltar ao nosso ponto de encontro.
- Isso é mentira, fiquei aqui plantada uma semana. Até porque nunca consegui achar a saída dessa loja.
- Você também?
- Como assim eu também?
- Você também não conseguiu? Passei onze anos procurando a saída desse lugar.
- Assim como você, também estou presa aqui desde o Natal de 1999, quando você teve a infeliz idéia de vir "comprar um presentinho" pra família Dupont, com quem íamos jantar.
- Não se preocupe com os Dupont, Leila. Eu avisei que chegaríamos atrasados.
- Teve uma vez que pensei ter encontrado a saída, mas era a despensa.
- A do 5º andar?
- Essa mesma. Fiz amizade com o controlador de estoque, que sempre me descola uns enlatados quase vencidos.
- Eu já eu tentei escapar seguindo um cliente.
- E aí?
- Ele se perdeu também.
- Pobre homem.
- Mas calma aí, Leila. Tem algo estranho nessa história. Como é que a gente nunca se encontrou?
- Você já viu o tamanho dessa loja, Nicolas? É um monstro que te engole e você nem percebe.
- Ei, essa frase é minha.
- Sua e de todo o pessoal do 3º subsolo.
- Você conhece o pessoal do 3º subsolo?
- Claro. Eles são os piores, coitados. Vieram pra inauguração e até hoje não conseguiram voltar pra casa. Acabaram locados por lá, fazendo serviços administrativos. Pelo menos pararam de morder os clientes.
- Ouvi falar desses casos.
- E você, Nicolas, trate de me explicar o que fez durante esses onze anos.
- Já que tava por aqui, arrumei uns bicos. Trabalhei um tempo na seção de gravatas e agora me instalei na divisão de bebidas. Área perigosa pra quem curte um copinho, como eu. Durante cinco anos cheguei até a ser o Papai Noel do 4º andar. Ou será que foi do 6º?
- Deve ser por isso que a gente não se esbarrou. Eu comecei nas lingeries e depois fui promovida pra seção de vestidos de noiva, aqui no 3º andar, onde tô até hoje.
- Carreira ascendente, a sua.
- Ô.
- Que orgulho de você, Leila.
- Você até também não se saiu mal. E eu pensando que tinha fugido com uma sirigaita qualquer...
- É claro que não. Mas você parece que se arranjou, né? Esse aí do seu lado tem idade pra ser seu filho.
- E é, Nicolas. Aliás, é seu também. Não o reconhece?
- Louis?
- Papai!

Emocionados, os três se abraçam e se beijam, enquanto o som ambiente da loja toca Love me Tender. A cena é interrompida por um cliente que os cutuca, pois eles estão atrapalhando o bom andamento da fila da seção de meias e cuecas.

- Vamos juntos procurar a saída? – Sugere Nicolas.
- Tenho uma idéia melhor: e se fôssemos à cobertura ver a mais linda vista de Paris? Conheço um ótimo atalho.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Autour de Paris VIII - A casa do Mubarak


O grande point do 8º arrondissement de Paris não é o Arco do Triunfo, com suas toneladas diárias de turistas e as 12 avenidas que ali se encontram e formam, segundo os parisienses, o balão mais complicado do mundo. Um balão que tive a ocasião de enfrentar a bordo do carro de Márcio Jacuzzi, atacante banheirista do Paristeama, que fez manobras em um espaço do tamanho de um guardanapo e demonstrou no volante uma habilidade em desviar de automóveis, ônibus, motos e velhinhas comparável à facilidade com a qual se desvencilha de defensores adversários. Talvez Jacuzzi possua mesmo o dom da escapada, mas o mais provável é que tamanha valentia se explique pelo fato de ser eu, e não ele, que estava no banco do carona, servindo de escudo no caso de acidente.

Não é tampouco o gigantesco obelisco de mais de 20 metros, que fazia parte do templo de Ramsés II e hoje está situado na place de la Concorde. Um monumento doado pelo Egito, segundo a França, e larapiado pela França, segundo o Egito. Tomando como verdadeira a segunda hipótese, há duas versões para o furto, ocorrido nos anos 1830. A primeira diz que os supostos ladrões se aproveitaram do exato momento em que entrou areia do Saara no olho do guarda da fronteira para embarcar o objeto em um navio. A segunda, mais crível, relata que um francês muito parecido com o Gérard Dépardieu (mas 150 anos mais jovem) passou carregando o obelisco nas costas, dizendo que estava ensaiando para as filmagens de Astérix e Obélix, que ainda nem haviam sido inventados mas fatalmente fariam grande sucesso no século XX.

A igreja de la Madeleine e suas grandes colunas de inspiração grego-romana também não são a principal atração do bairro. Impressionante construção que inicialmente seria um templo em honra às tropas de Napoleão, a Madeleine quase virou uma estação de trem e, por fim, acabou transformando-se em igreja católica. Fortes babados dão conta que o McDonald’s estaria prestes a adquirir o local. Mas o Papa Bento XVI teria negado o boato, alegando que o Pizza Hut chegou na frente e ainda ofereceu melhor cardápio infantil.

O grande point do 8º arrondissement de Paris é – prepare-se para uma grande tiração de onda – a casa de Hosni Mubarak, o presidente do Egito (olha o Egito aí de novo!). Pra ser mais preciso, todo o prédio de Hosni Mubarak, com sua escadaria de mármore e seus apartamentos gigantes e ultra luxuosos. Não, ele nunca me convidou pra ir lá, mas mesmo assim já fui incontáveis vezes, graças ao coletivo Jeudi Noir e à associação Macaq, que tomaram conta do lugar e ali fundaram o mais descolado squat de Paris. Além de abrigar pessoas que não têm onde morar, é palco das melhores festas da cidade. Graças a uma brecha nas leis francesas, os squats são completamente legais. O processo de expulsão dos moradores que se neles instalam leva cerca de 5 anos.

Na casa de Mubarak sempre tem algo acontecendo. Lá eu já assisti a shows de bandas tocando na sala, visitei uma instalação com um grande barraco montado na entrada do apartamento, acompanhei filmagens para o cinema e participei de uma roda de samba.

Também já passei um reveillon, quando fazia –5ºC do lado de fora e uns 35ºC do lado de dentro, de tanta gente que tinha. Em outra ocasião, fiz com um amigo um caldo de feijão para mais de 100 pessoas. E até fui DJ em uma festa afro-franco-brasileira, que só terminou porque o som era alugado e o dono da aparelhagem deu um piti e não quis prolongar a noitada.

É claro que um lugar desses só poderia estar na place Rio de Janeiro, localização que por si só explica muita coisa. Muita gente já participou dos sensacionais eventos que ali acontecem. Só quem ainda não apareceu foi o próprio Hosni Mubarak. Se ele ler esse texto, quero que saiba que está convidado a ir à próxima festa. Basta deixar uma colaboração na entrada. Afinal, é preciso manter a associação Macaq funcionando.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Autour de Paris VII - Les Invalides


No vasto gramado dos Invalides, um bêbado de rua abria sua 3a garrafa de vinho e filosofava consigo mesmo, embaixo de uma árvore.

- Foi daqui que o povo, pê da vida, partiu pra derrubar a Bastilha. Eu não estava, acho que tinha ido à festa de aniversário do meu primo Sylvain, mas me contaram que foi uma confusão dos diabos. O povo estava brabo com os privilégios de uma tal burguesia que, se não me engano, era uma rainha sueca que inventou de mandar por aqui. Aí saiu todo mundo em marcha cantando La Marseillaise, o hino do Olympique de Marseille, que havia acabado de conquistar o seu primeiro campeonato de futebol. Coisa bonita esse hino, fala nos pilares da democracia francesa, as divisas da pátria, a tríade liberdade, igualdade, paternidade. É legal saber que a França assegura o direito a cada um de ser pai. Eu não quis ser, ao contrário do meu primo Sylvain, que quis e muito, tanto que teve uns 4 ou 5, cada um de uma cor diferente, coisa mais linda. Falando em cor, aqui nessa esplanada muito sangue vermelho foi derrubado. Eu faço questão de dizer que era vermelho, porque sangue azul só quem tem é nobre e barata. Sabe qual a diferença entre a barata e o nobre? Em um a gente pisa em cima, o outro pisa em cima da gente. Posso ser bêbado, mas sei do que falo. E todo esse sangue foi derrubado porque a rainha da França, Maria Madalena, maior megera, disse pro povo comer no McDonalds. Pô, McDonalds é caro, minha rainha, se liga. Não é à toa que ela foi apedrejada. E agora essezinho que tá aí, o Carla Sarkozy, ainda quer cortar as ajudas que o governo dá, o que deve levar o preço do Big Mac lá pras alturas. Meu primo Sylvain conta que sem a ajuda do governo ele não seria capaz de manter os filhos na escola e muito menos de abastecer seu Porsche. Meu primo Sylvain sabe das coisas, inclusive como enganar o governo. Mas isso não é problema, ele diz, porque a gente vem sendo enganado há tanto tempo, né? Dizem que tudo começou com aquele ator que virou presidente, o Napoleão, que está enterrado bem naquele prédio bonitão bem ali. Napoleão teria prometido casa, comida e uma pontinha em Hollywood pra todo mundo, o que, é claro, ele não cumpriu. Sabe o que eu acho? Que são todos uns doidos. Ainda bem que tem alguém como eu pra manter a sanidade desse país. Aliás, vou ligar pro meu primo Sylvain.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.