Tia SophieA tia Sophie estava atrasada, mas todos sabiam que não tardaria a chegar. Ela era como o Papai Noel: só aparecia nas noites de Natal. E sempre trazia um peru para a ceia. No resto do ano, enfiava-se na sua casa, que ninguém sabia muito bem onde era, e não dava notícias.
Esperaram até um pouco mais tarde para começar o jantar e nada da tia Sophie.
- Melhor. Assim não tenho que aguentá-la me contar todas as doenças que teve no ano, como ela sempre faz - Falou Michelle, a dona da casa.
- E a velha nunca traz presentes - Disparou alguém.
- Pior é aquele peru seco que ela prepara.
- Horrível, horrível. Não desce nem com muito vinho.
- E a gente é obrigado a comer, para agradá-la.
Passaram para a sobremesa, e a tia Sophie não chegava. Decidiram abrir os presentes (na casa da família Collin, os presentes só eram entregues depois do jantar, pra "manter as crianças na mesa", como dizia Julien, o patriarca). No fim da distribuição, notou-se um pacote abandonado embaixo da árvore. Sem etiqueta, sem nome, sem nada. Como ninguém reclamou sua propriedade, Julien tomou a iniciativa de abri-lo.
Dentro, apenas um envelope com uma carta, que Julien tratou de ler.
"Minha família amada, aqui é a tia Sophie. E se vocês receberam essa carta é porque já não faço mais parte desse mundo."
Consternação geral. Todos se olham assustados.
"Quero dizer que vocês foram a maior alegria dos meus últimos anos de vida. Esperava ansiosamente pela noite de Natal, para poder dividir a ceia e os bons momentos com aqueles que mais amava."
Michelle deixa escapar uma lágrima e sente-se culpada por ter falado mal dela momentos antes. O mesmo sentimento é compartilhado por todos na sala, que baixam a cabeça numa auto-penitência. A voz de Julien fica embargada.
"Sempre vivi muito discretamente e escolhi morrer assim. Meu corpo foi cremado e todos os meus bens foram doados. Mas não poderia partir sem deixar um pouco de mim com vocês."
A família se olha e se abraça mutuamente, formando uma grande roda na sala. Philippe, sempre o mais emotivo, não contém o choro compulsivo.
"Por isso, junto a essa carta, deixo a receita do meu tradicional peru de Natal, que cozinhei com muito gosto por mais de 60 anos. A cada vez que vocês o fizerem, saibam que estarei por perto. Com amor, tia Sophie"
Nessa hora, Alain, o primo bêbado, pega a carta da mão de Julien e a queima com seu isqueiro.
- Acho que ela não tem que se aborrecer em ficar voltando aqui todo ano. Deixa a velha descansar em paz.
A roda desfez-se rapidamente e nunca mais falou-se no peru de Natal da tia Sophie.
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Qualquer coisa- Pierre, o que você quer ganhar de Natal?
- Ah, qualquer coisa tá bom.
- Qualquer coisa?
- É.
- Uma caixa de bombons, por exemplo?
- Uma caixa de bombons não, Danielle. A gente tá falando de presente de verdade. Caixa de bombons não é presente de verdade, porque você come todos os bombons e depois fica sem nada. O máximo que você guarda pra depois é a barriga, que vai ficar maior.
- Então não é qualquer coisa o que você quer.
- Tá bom. Qualquer coisa menos uma caixa de bombons.
- E uma calça nova?
- O que tem de errado com as minhas calças?
- Não tem nada de errado, mas uma calça nova e bonita é um bom presente.
- Eu só compro minhas calças em liqüidação*. Não vou gastar meu presente de Natal assim, com uma calça nova. Seria um desperdício. Coloca na lista aí: qualquer coisa menos caixa de bombons e uma calça nova.
- Uma viagem à Côte d'Azur! Ça te dit?
- Você ainda não sabe que eu detesto viajar? Sair de Paris pra quê? Aqui tem tudo o que eu mais gosto na França: croissant e mau humor.
- Mas você é difícil, hein?
- Eu gosto de qualquer coisa. Só não quero caixa de bombons, calça nova ou viagem.
- Esse seu qualquer coisa está ficando é bem restrito.
- É só pensar melhor.
- Já sei: um perfume.
- Perfume? E homem usa perfume, Danielle? Perfume é coisa de mulher.
- Quer saber? Vai ficar sem presente. Você é muito chato. Enquanto você pensa no que quer, eu vou pra cozinha fazer um chá.
Pierre chega na cozinha.
- Faz um pra mim também?
- Você não tá merecendo, mas eu faço. Quer de quê?
- Qualquer um.
- Erva cidreira tá bom?
- Ah, não. Erva cidreira?
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* Pobre trema, em breve morto.
ps: outra crônica natalina minha bem aqui.