sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Uma dádiva de Natal


Já deve ter acontecido com você: comemoração de Natal na casa do primo distante da sua mãe, missa do Papa na TV, tâmaras em cima da mesa (o que seriam das tâmaras se não fosse o Natal?), crianças gritando pra lá e pra cá e de vez em quando gritando ainda mais alto pois uma delas acabou de ser atropelada por uma quina de parede, e, claro, o pinheiro cheio de bolas coloridas em cima e de presentes embaixo.

Você vai dar uma espiada nos pacotes e descobre um com o seu nome. Fica imaginando o conteúdo. Aquele vinho de uma safra especial que você viu em uma loja e comentou com a família inteira, na esperança de ganhá-lo? Um sapato novo, pois o seu atual e único tem bem mais quilômetros de uso do que deveria? A sonhada coleção de DVDs com todos os especiais de fim de ano do Robertão? A sua ansiedade é compreensível, afinal esse ano o combinado era não poupar. Certamente qualquer uma dessas escolhas te agradaria, ou até mesmo possíveis variações delas, como um champanhe barato, uma chuteira nova para a sua pelada semestral ou a 5ª temporada de Seinfeld.

Aí surge aquele contraparente do seu cunhado, o que sempre puxa o coro "Pre-sen-tes! Pre-sen-tes!", e faz o serviço esperado. As crianças correm na frente, mas alguém as segura e diz que precisam aguardar a vez, como todo mundo. O marido da sua tia, que você apelidou de primo Halley pois ele só dá as caras de longos em longos ciclos, anuncia o primeiro regalado no inevitável amigo oculto. Não por acaso a prima enxutona que todos desconfiam ser sua amante e que ele curiosamente sempre tira no sorteio. Ela o abraça de uma maneira caliente, dando uma mexidinha nos quadris, como uma pom-pom girl americana. O tio Alan, já bêbado, aproveita pra gritar "Essa aí vai comer mais de um peru no Natal". Só ele e o tio Geraldo riem.

Pouco a pouco, os mimos vão sendo distribuídos, mas o seu continua embaixo da árvore. O Thiaguinho, filho do Thiagão, já teve tempo de quebrar o carrinho de controle remoto que ganhou, tentando transformá-lo em um avião de controle remoto, levando junto um vaso de porcelana que estava pelo caminho. E depois de eras, finalmente chega a sua vez. Sendo o último, as atenções estão todas voltadas pra você. A tia Jojô te dá um beijo lambuzado de batom rosa e entrega uma caixa retangular embrulhada em papel dourado. O tio Alan, ainda mais mamado, solta a sua infalível piada anual "É uma bola de basquete". Dessa vez nem o tio Geraldo acha graça.

Como uma criança, você rasga a embalagem. Dentro do pacote, ao invés de um presente, um outro pacote. E dentro desse, outro. E mais outro. Até chegar em uma caixinha pequena. Você faz uma pausa. Todos gritam "A-bre! A-bre!". Você abre. E fecha. Mas a pedidos gerais precisa mostrar o mimo recebido.

- Um chaveiro em forma de avestruz...

A tia Jojô sorri banguelamente e te dá um outro beijo rosa na bochecha ainda imaculada, explicando que "Se você apertar o rabo do bicho, uma luz sai pelos olhos, virando uma prática lanterna". Sem alternativa, você testa a lanterna, mas ela não funciona. A tia Jojô tira duas pilhas do rádio da cozinha e as estende para você, ignorando que elas nunca vão entrar no chaveiro.

Depois das rabanadas de sobremesa, todos correm para ir embora. O tio Alan é o primeiro, abraçado com o tio Geraldo e puxado pela orelha pela tia Marília. Só você e o Thiaguinho não estão apressados. Você já o convenceu de que se desmontarem o chaveiro de avestruz terão as peças necessárias para consertar o carrinho de controle remoto dele. Enfim, coisas que acontecem a todo mundo.

Belle & Chico, os irmãos franco-brasileiros, também ganharam presentes que não queriam. Leia em www.bellechico.com.br

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pára tudo!


O direito à greve é uma religião na França, algo sagrado. Mesmo se a noção do sagrado seja um tanto quanto pitoresca em um país que chama todo mundo de vous (senhor), mas Deus de tu (você).

Eu, criado em um ambiente de esquerda, não discuto um só segundo a legitimidade desse tipo de movimento. Já participei de diversas greves e participarei de outras tantas. A questão é que as constantes paralizações na terra do escargot chegam quase a banalizar a coisa. Se você fizer uma busca pela palavra "grève" na Wikipedia francesa vai ver que existem doze categorias diferentes, entre a rotativa, a geral, a de fome, a política e até uma importada, a japonesa. Nesta os trabalhadores ostentam uma braçadeira com reivindicações e frases de protesto. Você meio que vira uma manifestação ambulante e individual.

Mas a minha modalidade preferida é a greve de cinquenta e nove minutos. Trata-se de uma pausa de exatos cinquenta e nove minutos no trabalho. A explicação: a partir de uma hora, o patrão tem direito a descontar o dia inteiro do salário. Então os funcionários retornam à labuta um minuto antes do dead line. Mais engenhoso e francês, impossível.

Falando nisso, lembrei de uma história que não aconteceu comigo, mas com um amigo de um brother de um chegado. Ou não. O cidadão estava lépido e faceiro no metrô, sorrindo como noivo em noite de núpcias. Aí o trem brecou entre duas estações. Depois de um bla bla bla aqui e outro acolá sobre as causas da repentina parada, o condutor avisou no sistema de som: "Senhores passageiros, a partir desse momento estamos em greve. Gostaríamos de contar com a colaboração de vocês".

Fiquei pensando no que seria exatamente esse "contar com a colaboração de vocês". Esperar que os passageiros passassem o tempo ali dentro brincando de adedonha ou fazendo uma aula coletiva de dança de salão? "Bem, vamos lá. Mulheres nos bancos do lado esquerdo, homens nos do lado direito. Cada um escolhe seu par e o brasileiro ali vai improvisar um sambinha pra gente". Ou então fazer todos descerem para empurrar o metrô até a próxima estação? Infelizmente eu não sei como a história se acabou, pois o sujeito não terminou seu relato.

Conto isso porque hoje de manhã escutei no rádio que a greve do RER, o trem de ligação de Paris com seus subúrbios, continua. Deve ser a terceira ou quarta dos funcionários da RATP, a empresa dos transportes públicos de Paris, só esse ano. Mas a notícia mais intrigante não era essa, e sim a de que os funcionários incumbidos de recarregar os caixas eletrônicos dos bancos poderiam também iniciar uma paralização a partir de amanhã. Caramba, eu nunca havia pensado que existiam pessoas responsáveis por isso. Para mim, o dinheiro brotava nas máquinas, simplesmente.

Matutando essas histórias enquanto andava pelas ruas cobertas de neve de Paris, achei que era um bom assunto para a crônica dessa semana. Entrei no prédio e cheio de ideias na cabeça peguei o elevador rumo ao 6º andar. Acontece que ele resolveu ficar bloqueado entre o 3º e o 4º. Logo entendi o recado: talvez por solidariedade, hoje ele também estava de greve.

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Eu pego o saca saca saca-rolhas


O utensílio doméstico mais importante na França não é um moderno microondas, um fogão de seis bocas ou um lava-louças de última geração. O item que não pode faltar nas casas na terra do vinho é o simples saca-rolhas. Contam até que o General De Gaulle, ao escapar para a Inglaterra durante a 2a Guerra Mundial, só levou consigo dois uniformes militares e duas dúzias de exemplares do singelo objeto. E ainda assim achando pouco (os saca-rolhas, não os uniformes).

Acontece que o nosso modelo, uma espécie de Mercedes Benz dos saca-rolhas - mas sem GPS ou air bags -, resolveu quebrar justo na hora de começar o jantar, antes de abrirmos a garrafa de vinho. Uma tragédia! Vinho é o novo suco de laranja. É a nova Coca-Cola.

Como todo brasileiro, quando a situação aperta tento resolvê-la na base do jeitinho. E como todo homem, detesto perguntar ou pedir favor aos outros. Bater na casa de um vizinho pra pegar algo emprestado é impensável.

De posse dessas duas qualidades (qualidades?), resolvi experimentar novos métodos para arrancar a rolha, que já estava pelo meio do caminho. Primeiro com um canivete, tentativa obviamente frustrada. Depois com os dentes, o que quase me custou um canino. Por fim, decidi cortar a danada com uma faca e socar o pedaço preso na garrafa com um hashi, as varinhas para comer sushi. Depois de aniquilar com a minha paciência e quase arrebentar o gargalo umas três vezes, rendi-me à poesia dos fatos: vinho, só perturbando o vizinho.

Saí cheio de coragem e com a garrafa nas mãos corredor afora, e bati à primeira porta que me apareceu pela frente, com o discurso na ponta da língua: "Desculpai-me vos perturbar a essa hora, mas vós teríeis um saca rolhas, s'il vous plaît?". Se você não disser vós, corre o risco de ganhar um desaforo de brinde. Mas de nada adiantou o ensaio, pois ninguém atendeu. Bati de novo e aguardei mais. Sem respostas. E o jantar esfriando.

Acontece que a teimosia é outra das minhas características. Quando coloco uma coisa na cabeça não tem quem me faça voltar atrás. E naquele momento eu decidira que havia uma missão a cumprir. A abertura da garrafa era prioridade. Era mais importante do que comer. Mais importante do que dormir. Como um cavalo que não enxerga nada além da cenoura à sua frente, eu só visualizava aquele maldito pedaço de cortiça extirpado.

Toquei a campainha do outro apartamento. Aguardei. Ninguém. Toquei de novo. Aguardei de novo. Ninguém de novo ou de velho. Tentei recorrer à vizinha de baixo. Ela haveria de colaborar, afinal temos - ou tínhamos - um pacto. Mas também não atendeu. Dirigi-me então ao apartamento do fundo do corredor. Uma voz salvadora.

- Quem é?
- É o homem da rolha, falei.
- O quê?
- Quer dizer, é o vizinho do 6º, queria saber se você poderia me emprestar o saca-rolhas um momento.
- Bien sûr.

Abriu a porta uma simpática velhinha que está sempre despenteada e com óculos de gatinha, apesar de já passar dos 70 anos. E já com o apetrecho na mão. Peguei-o, resolvi o problema rapidamente e agradeci. Ela despediu-se com um "já sei o que dar pra você de Natal", rindo alto.

Voltei pra casa sentindo-me vitorioso, fiz meu prato e servi uma boa taça daquele vinho. Eu merecia. Provei da sopa, que já virara sorvete de legumes. "Não tem problema", disse a mim mesmo, mantendo o bom humor. "O bom vinho vai compensar o jantar frustrado". Dei uma baita duma golada, mas ele era péssimo, intragável. Joguei o resto na pia, comi uma banana verde e fui dormir. Era o melhor a fazer naquela hora.

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Dos anais da medicina francesa


De férias em Paris, em pleno inverno, Leopoldo Rocha, gaúcho de Bento Gonçalves, passou mal subitamente e precisou consultar um médico.

- Alors, o que você tem?
- Tô tri doente, dotô.
- Très doente? Quais os sintomas?
- Bah, a temperatura sobe e todo o resto desce.
- Todo o resto?
- As carne amolece, entende?
- Entendo, entendo. Tá tomando alguma coisa pra melhorar?
- Chimarrão com arnica.
- Ximarao?
- Ão, chimarrão.
- C'est quoi?
- É uma erva que serve pra tudo. E cura de resfriado a dor de corno. Mas essa última propriedade só pôde ser comprovada fora do Rio Grande, porque lá não tem chifrudo e nem baitola.
- Tá se aquecendo bem?
- Tô tentando, mas não me deixam.
- Comment?
- Imagina que ôtro dia fui fazer um fogo de chão no hotel, pra me esquentar o côro e assar umas costela, e o gerente bateu na porta do quarto com dois ou três polícia. Só foram embora depois que apaguei a fogueira e dei pra eles um pedaço de carne mal passada.
- E na rua, usa o quê pra não sentir frio?
- Mas que pergunta. A camisa do Colorado.
- Do quê?
- Mas você não conhece nada, tchê. Do Colorado, o Internacional, o clube dos macho do Sul.
- Só usa isso?
- Uso também a Fátima, minha senhora.
- Ah, entendi, vocês andam juntinhos, abraçados.
- Não, mando ela me agarrar por trás e saio carregando pela cidade. Esquenta que é uma beleza. O inconveniente é que às vezes dói um pôco a lombar.
- Bom, vamos tirar sua temperatura. Vai ali na cama e baixa as calças.
- As calça? Tu tá tri maluco?
- É pra tomar a temperatura.
- E o que isso tem a ver com as calça?
- Tenho que colocar o termômetro no reto, oras.
- Pois em Bento Gonçalves a gente coloca o termômetro é debaixo do braço.
- Senhor, a temperatura retal é a única correta.
- No Brasil todo mundo mede a temperatura errada e até hoje não vi ninguém reclamando.
- Só que na França o método é outro.
- O que você chama de método na minha terra é baitolice. Ali ninguém toca, nem a Fátima. Minha santa mãe contava que quando eu nasci um médico foi me dar uma palmada no traseiro mas eu desci a mão na cara do sujeito antes.
- Aqui a gente trabalha assim. É pegar ou largar.
- Levar ou largar, você quer dizer. Olha, faz aí o que tem que fazer, mas não conta pra ninguém não, viu?
- Não se preocupe, sou um profissional.
- Mas que diabo...
- Pronto, acabou!
- Já?
- Viu? Nem sentiu. Tá com um pouco de febre, um resfriado leve. Toma esses comprimidos e logo você melhora.
- Merci, doutor.

Dois dias depois, Leopoldo bate novamente à porta do mesmo médico.

- Você de novo?
- Pois é.
- Ainda doente?
- Não, não, já melhorei.
- Viu como a medicina francesa resolve?
- Resolve, resolve. Só essa história do termômetro na porta de saída que ainda não me convenceu.
- Como não? Você viu como é eficaz!
- Vim tirar a prova, tchê. Vô colocar agora esse termômetro aqui embaixo do braço. E o senhor vai ver como nosso método é mais exato.
- Senhor, sem comparar não dá pra saber se ele realmente funciona.
- Tá bom, doutor. Mas é a última vez, viu? Tudo pela ciência. - Disse o Leopoldo, já baixando as calças.

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