sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A guilhotina de Lisboa


Uma revisão histórica (tem coisa mais na moda do que revisão histórica?) atribui a invenção da guilhotina não aos franceses, mas sim aos portugueses. Os patrícios de Robespierre teriam-na apenas aperfeiçoado, ao descobrirem que ela dificilmente funcionaria em Portugal.

- Manoel!
- Ó pá, Joachim!
- Está cá?
- Não, estou lá.
- Então venha cá, ora pois.
- Pronto. Cá estou, Joachim.
- Pois diga-me o que é isto?
- Só digo se primeiro me disseres porque te chamas Joachim com ch.
- Não enches, Manoel. Estamos em Lisboa, no século dezoito. Queria que me chamasse como, José Sarney?
- Tens razão. Sempre pode ser pior.
- Sempre, ó pá.
- Mas afinal, o que é essa geringonça?
- Chama-se tomba lâmina, moderníssima invenção.
- Serve para quê, ó Joachim?
- Dizem que é para cortar o bacalhau mais rápido.
- E como funciona, ó pá?
- É simples, ó Manoel. Primeiro, rodas as pás dessa manivela até a lâmina suspender-se. Segundo, colocas o...
- Não entendi.
- O que foi agora, Manoel?
- Dissestes que devemos rodar as pás da manivela ou que devemos rodar, ó pá, a manivela?
- As pás, ó pá.
- Pois sim.
- Posso continuaire?
- Pois não.
- Segundo, colocas o bacalhau aqui. Terceiro, soltas as pás. Quarto, retiras o bacalhau já cortado e o levas para a Maria cozinhá-lo.
- E será que o tomba lâmina funciona também com cacetinhos, Joachim?
- Pois coloca o teu, Manoel.
- Estou a falaire de pão, ó pá.
- Ah bom. Vamos tentaire.

Zupt!

- Funciona! E com pastéis de nata?
- Vamos tentaire.

Zupt!

- Também funciona! E com pedras, ó pá?
- Vamos tentaire.

Zap...

- Não funciona, Joachim
- Manoel, roda as pás da manivela para levantar a lâmina. Vou tiraire a pedra.
- Está levantada.
- Pega aqui a pedra.
- Pronto. Está pega. E agora, Joachim?
- Agora solta, ó pá.

No dia seguinte, no velório do Joachim, o Manoel ainda tentava explicar como realizara a primeira decapitação com o novo aparelho e acidentalmente descobrira um novo uso para a máquina.

- Eu tinha entendido "solta a pá", eu juro.

Para transformar o tomba lâmina no grande hit da revolução, os franceses fizeram apenas uma mudança: tiraram a manivela e as pás. E para levantar a chapa cortante colocaram uma corda. Simples, n'est ce pas?

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Os renegados


É, já está acabando o ano da França no Brasil. E você provavelmente deve ter prestigiado diversos dos milhares de espetáculos que aconteceram por todo o país, mostrando um pouco da cultura francesa em suas mais variadas formas, como música, artes plásticas, circo ou cinema. Mas há muitos projetos que não passaram pelo crivo da comissão de seleção do evento. Para que não caiam de vez no buraco negro do esquecimento, fizemos uma lista com alguns dos principais excluídos que (in)felizmente você não poderá ver.

. Vive Agnaldo Timóteo! (musical)
A vida e a obra do cantor Agnaldo Timóteo são retratadas nesse musical estilo Broadway. Aquelas músicas inesquecíveis das quais ninguém se lembra são interpretadas em francês pelo próprio Agnaldo, um cantor do qual todo mundo se lembra mas adoraria esquecer.

. Oficina de biquinhos (workshop)
Pensada para os tupiniquins que ambicionam falar o idioma gálio, a ideia da oficina de biquinhos precisou ser abandonada logo nos primeiros testes. É bem verdade que após algumas horas de tentativas os alunos conseguiam fazer a famosa boca em forma de fiofó de galináceo. O problema é que ela permaneceu assim depois, e alguns voluntários precisaram de intervenção cirúrgica para resolver o concombre. Quer dizer, o pepino.

. Le retour de ceux qui sont pas partis (cinema)

Lenda urbana no Brasil, o célebre filme até então nunca realizado A volta dos que não foram foi finalmente levado às telas pelo coletivo parisiense NiQ, N'importe Quoi. A película de cinco horas e meia se passa em uma casa no campo e mostra uma mesa na varanda, um relógio de corda e um galo manco. "Não há atores, pois eles ainda não voltaram desse hipotético lugar para o qual não foram. E esse atraso no retorno significa que talvez os personagens sejam brasileiros, mas essa interpretação eu deixo para os espectadores", conta o diretor Tappas Naface. Na 3a hora de projeção, uma folha cai em cima da mesa, anunciando uma possibilidade de outono. E no minuto final o galo morre. O relógio, ao que parece, foi colocado apenas para compor o cenário. "Uma excentricidade minha, já que era absolutamente desnecessário para a compreensão da história", finaliza Naface.

. Equilibradores de baguete (circense)

Cento e vinte e dois palhaços tentam equilibrar doze mil e duzentas baguetes, uma em cima da outra, juntando-as apenas com geléia de ruibarbo. Espetáculo recusado pela impossibilidade de se comprar doze mil e duzentas baguetes de uma só vez, mas principalmente porque ninguém no Brasil sabia que diabos é ruibarbo.

. Merde (exposição)
Instalação dedicada à palavra preferida dos franceses, com vídeos, depoimentos, fotos, áudio, esculturas, quadros e toda uma panóplia dedicada ao assunto. Ao ler o projeto, um dos participantes da comissão de seleção foi taxativo: "trata-se definitivamente de uma grande bosta".

. O grande príncipe (teatro)
Nessa continuação da célebre história de Saint-Exupéry, o pequeno príncipe cresce e vira um mala sem alça: enche a lata, pisa na rosa que cultivava e faz churrasco da raposa. O ápice acontece quando ele está às 10 da manhã em um boteco de 5a categoria, já fedendo a Pitu, e uma criança que passava pela rua o reconhece, repetindo o singelo pedido "desenha um carneiro para mim?". O ex-pequeno príncipe e atual grande chato diz que abandonou o carneiro e agora só aposta no galo. A criança não entende. O monarca ri e arrota. A criança chora. Baixam as cortinas.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Agulhando


Você ainda não deve estar sabendo, mas o francês Jaques Darosca está sendo apontado como o novo berro da moda mundial. Super antenado que sou, tentei entrevistá-lo durante a Paris Fashion Week, que rolou esse mês. Chegar até o cara foi moleza: passei pelos seguranças distraindo-os com uma conversa sobre os benéficos efeitos da combinação gatas de Ipanema e cerveja gelada. A complicação veio depois. Como eu estava usando um casaco falsificado da Adidas e meias que não combinavam com o seu "espírito bleu dessa tarde fria de outubro", Darosca recusou-se a falar comigo, bufou e deu um gritinho de desprezo. Não necessariamente nessa ordem. Em um lance de astúcia, porém, consegui esconder um microfone no camarim onde o estilista dava os retoques finais na sua última criação, ao lado do fiel assistente Alfie Nette.

- Ce putain de brésilien, do que ele entende, hein, hein? Aquele casaco da Adidas patético e fal-si-fi-ca-dér-ri-mo, comprado na Feira do Paraguai em Brasília. Digo isso porque conheço, conheço tudo de moda, tudo, mesmo a moda fora de moda como a dele. Ha ha ha, a moda fora de moda. Eu daria pra ser humorista. Bem que minha saudosa mamãe dizia: "Darosca, você dá pra qualquer coisa que queira". Sábia mamãe. Agora aquele brasileiro, se quiser falar comigo, filhote, só vestindo Dior pra cima. Não, pra cima também não, porque acima de Dior só tem Deus e eu, e mesmo assim não sei quem vem primeiro. Vamos combinar, Deus não é propriamente o que se pode chamar de um estilista de sucesso. Tá certo que sua primeira coleção foi um ar-ra-so, aquela folhinha que tapava as vergonhas de Adão e Eva. Mas depois Ele dormiu sobre os louros, e tem bem uns 10 mil anos que não solta nada de original. Sinceramente, aquela roupa de pele dos homens das cavernas era muito cafona. Pele é out, outzérrimo. Aliás, ninguém até hoje conseguiu me explicar porque os homens da caverna vieram depois de Adão e Eva. Tá vendo?, mais uma incoerência de Deus. Certamente o criador tirou período sabático e esqueceu de voltar. Eu não, sou completamente coerente. Minha coleção 2007, com o enigmático tema Filé de borboleta ou..., abriu espaço para a de 2008, A magnificência da contradição do sei lá o quê (em laranja e lilás). Tudo a ver. E graças a isso pude enfim atingir meu ápice em 2009, com Pum. Simples e lindo. O pum é o resultado de tudo o que ingerimos, e na minha arte não poderia ser diferente. Como fui eu que criei, darling, o meu Pum é a soma final de toda a história do estilismo. E digo mais. A partir de agora, tudo deverá ser repensado. Ninguém mais poderá desenhar roupas da mesma maneira. De fim, o Pum será o novo começo, o ponto de partida. Em 15 minutos, 15 petites minutes, quando minhas modelos pisarem a passarela, até Deus terá que se curvar a mim. Até Ele vai descer pessoalmente pra me aplaudir e... Mas o que você quer, Alfie? Não tá vendo que estou em plena catarse criativa?

- Só pra avisar que a luz acabou e o desfile foi cancelado, chefe.

- Merde...

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Louça suja se lava em casa

Há fatos que nos marcam para todo o sempre, como o primeiro beijo, a aprovação no vestibular e a chegada de um... lava-louças. No caso do último, a vida já começa a mudar na antevéspera do prometido dia "D".

- O que você está fazendo?
- Vou lavar esses pratos e copos do jantar.
- Nem pense nisso! O lava-louças vai ser entregue depois de amanhã.
- Mas esse tanto de coisa acumulada não vai entrar.
- Faremos duas sessões, então. Temos que dar trabalho pra ele.

Nem pensei mais nisso. Deixei a louça suja na pia sem mesmo a organizar, já que em pouco tempo, impiedosamente, ela seria arremessada (a louça, não a pia) ao seu novo destino mecânico. A única dificuldade agora seria escolher o programa de lavagem mais adequado, entre as tantas opções possíveis.

Dois dias depois, quase todos os copos e pratos estavam devidamente sujos, esperando a grand premiére, o momento no qual eu apertaria o botão "on". O botão para ligar a máquina e me desligar definitivamente do mundo cíclico detergente-esponja-esfregação.

Profundamente imerso nesse pensamento, levei um susto quando o interfone tocou. Os entregadores incrivelmente chegaram na hora marcada, certamente um fato inédito em todo o mundo. E antes de abrir a porta lanço um olhar e um leve sorriso para a louça acumulada. Em breve você estará brilhando, pensei.

- Quer que instale?
- Não precisa. Ainda preciso trocar uma tomada para poder ligá-lo.
- Ok. Bonne journée.
- Bonne journée.

Acontece que as cozinhas em Paris são milimétricas. Aqui, para as coisas poderem caber, tudo precisa "être aux normes", estar nas normas. Só que as normas não são tão normativas assim, pois estão completamente diferente do que eram anos atrás.

Então o lava-louças obviamente não coube no espaço reservado para ele, por coisa de um centímetro na largura. E, como não havia onde colocá-lo, o trambolho ficou prostrado no meio da cozinha, reduzindo o espaço livre à área de um guardanapo (fechado) e obrigando-nos a uma ginástica para poder alcançar qualquer coisa nos armários. E a um semi-malabarismo se quiséssemos usar o fogão.

Ligamos na loja e eles prometeram passar para buscá-lo dali a alguns dias. Por não terem o modelo menor, com menos capacidade mas dessa vez nas dimensões adequadas ao nosso apertamento (é a última vez que uso a piada do apertamento, juro!), compramos um novo em outro lugar. Entrega prevista para uma semana depois. Uma semana! Deu quase pra sentir saudades das Casas Bahia e sua "dedicação total a você".

Nesse período, a cozinha virou a Faixa de Gaza. Entrada por conta e risco próprios. E sempre com a possibilidade de uma bomba em forma de tigela de vidro cair por perto. Os pratos estando todos sujos, passamos para os de sopa, que logo acabaram também. E começamos a analisar com muito carinho a hipótese de não comermos mais - jejum é bacana, saca? - pois a possibilidade de se lavar qualquer coisa ali era remota, muito remota. Aquilo parecia uma instalação, com panelas, copos e talheres se equilibrando de maneira mágica. E como toque extra ainda havia os restos de molho de tomate, de arroz e de outras coisas já indecifráveis. Marcel Duchamp, artista francês que apresentou um mictório como obra de arte, assinaria embaixo com orgulho.

No dia previsto para a chegada do salvador da pátria e da pia, como era previsível, ele não chegou. No dia seguinte também não. Na loja, disseram que "de amanhã de manhã não passa". Passou. E antes que a cozinha ficasse para todo o sempre impassável, impregnei-me de coragem e decidi enfrentar aquela montanha.

A batalha foi dura e longa. Uma vasilha cheia de restos de lasanha desafiou-me durante intermináveis minutos. Mas eu estava decidido a dar cabo daquela situação. Tempos e tubos de detergente depois, exausto mas satisfeito pela minha vitória, sentei no sofá para descansar, decidido a cancelar a compra desse objeto maligno de uma vez por todas. Nesse instante o interfone toca.

- Quem é?
- Os entregadores do lava-louças.

Mandei subir, com planos de testar o aparelho na mesma hora. Como não havia mais nada a lavar, a idéia era colocar os dois lá dentro, mesmo que não estivessem "aux normes".

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Para delírio das gerais

Amigos amantes do esporte (e amigas amantes dos olhos do Chico Buarque), voltei esta semana à famosa pelada relatada na semana anterior. Sei que a construção dessa frase ficou um pouco confusa, algo como "não perca o Jornal Hoje amanhã", mas o fato é que fui novamente bater uma bola com o Paristeama. Na verdade, contra o Paristeama.

Apesar de ainda me faltarem apetrechos como chuteira, caneleira, meião e talento, não refuguei o segundo chamado. Afinal, o recém-criado time, que já tem até hino, brasão e uniforme, precisa treinar. Ou arrumar um outro motivo para a cerveja de depois. Não chegará a Tóquio, é verdade, mas a proximidade com a torre Eiffel já nos é suficiente. Reparem que ao usar o pronome oblíquo "nos", incluo-me de maneira sorrateira na trupe. É a história do "se colar, colou".

Já na chegada, era impossível não reparar que o quórum havia aumentado de forma significativa de uma semana para a outra, tanto no número de jogadores quanto no de torcedores. De torcedoras, pra ser mais justo. Todas devidamente munidas de máquinas fotográficas. Não sei como descobriram o local do jogo, mas não era difícil adivinhar o motivo que as levou lá.

Impassível em relação ao público, 100% a favor da equipe que seria minha adversária, como um Coalhada moderno comecei o aquecimento com um pique no lugar. Um só, pra não me cansar muito antes do embate. Chutei ainda umas duas ou três bolas, mas achei de bom tom parar quando uma delas pegou uma direção completamente oposta à minha intenção e foi parar no meio da rua. Era melhor guardar meu famoso e inimitável chute com defeito, também conhecido como "perna seca", para o jogo.

Começada a peleja, os times se estudavam reciprocamente. Segundos depois, revelando apurado senso de percepção, um dos companheiros define nossa tática: "chuta a bola pra frente que eu vou me enfiar na banheira". Tá ok. Se o Paristeama mantém a invencibilidade em parte graças à habilidade do artilheiro Márcio Jacuzzi, ou à falta da mesma na nossa zaga, não temos porque nos intimidar. Chutão pra onde o nariz apontar ao menos afasta o perigo da área. Se bem que sempre há o risco de o nariz estar virado para nosso próprio gol, digo isso por experiência própria.

A partida seguia morna, até que ali pelos 15 minutos a bola sobrou pra mim. Saí num pique tresloucado, não sem antes me assegurar de que ia na direção correta. Agora eu arrebento, pensei. E arrebentei mesmo. A virilha. Com uma baita dor, precisei abandonar a arena, instalando-me perto da torcida feminina.

Durante um tempo as atenções voltaram-se para mim. Machucou?, perguntaram. Não, respondi, dando uma de durão. Mas aí alguém passou a bola pro Chico Buarque, uma dúzia de meninas gritou "ai", e meus 15 segundos de glória acabaram-se.

Das gerais, acompanhei o massacre: 6 x 2 pro Paristeama. Cinco gols de Márcio Jacuzzi e um do Chico, de calcanhar. E foi só acabar o jogo para ter início a invasão do campo. Logo formou-se uma fila para tirar fotos com o ídolo. Para minha surpresa, uma das meninas acenou pra mim, olhando pelo visor da câmera.

- Ei, você.
- Eu?
- Sim, você mesmo.
- Pois não? Quer uma foto minha, pensei. Dessa vez ele vai ter que dividir os holofotes.
- Dá pra sair da frente, pra eu poder enquadrar melhor o Chico?

Leia também "Para estufar esse filó" - Primeiro texto deste blog sobre o Paristeama