sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Barrados no Baile


O meu amigo DJ, personagem do último post, teve mesmo uma passagem memorável por Paris.

Depois do episódio da bomba na FNAC, ele só queria saber de se divertir um pouco para esquecer os contratempos em terras napoleônicas. E me chamou pra ir a uma festa.

O nome "The Grand Summer Party Funk" (assim mesmo, em inglês), o cartaz em cores berrantes e a promessa de se escutar Jackson 5 e Stevie Wonder, entre outros, não deixava dúvida: era uma festança para todos que curtissem o estilo. Tipo uma Criolina francesa.

Escolhemos nossos melhores All Stars e as adequadas camisetas de bandas e partimos para o La Scene Bastille.

No meio do caminho, pausa pra comprar cerveja.

A impressão que dá é que em Paris essa coisa de beber na rua é a maior paranóia. Ninguém faz isso. Aliás, tem quem faça, mas sob o olhar reprovador dos outros. É uma falta de finesse imperdoável por aqui.

Sem nos preocuparmos muito com isso, entramos na única loja que vende cerveja em lata por perto. É de um chinês completamente louco. Apesar de fornecer bebida alcóolica até altas horas da madrugada, ele só tem permissão pra comercializá-la de dia.

- Duas cervejas, por favor.
- Não temos,
responde com um olhar de lamento.
- Mas e aquelas todas ali atrás?

O sujeito olha pros dois lados e consulta a mulher, que está na porta vendo o movimento da rua. Ela responde algo, provavelmente dando um sinal positivo. Ele corre no freezer, busca duas cervejas e tenta enfiar dentro do casaco do meu amigo DJ, que recusa a investida. Tento ajudar.

- Me dá aqui que eu levo na mão.
- Não pode, não pode. Coloca cerveja casaco. Casaco, casaco.


A esposa, que a essa altura berrava com dois outros clientes que provavelmente também não queriam esfriar a barriga com uma lata, chega perto.

- Tem que ser mais rápido. Mais rápido. Coloca cerveja casaco rápido.

Pra escaparmos daquela situação maluca, pagamos, guardamos as duas nos bolsos da calça e saímos. O casal continuava falando.

- Assim não bom. Cerveja casaco melhor.


Com a bebida - quente - em mãos, nos dirigimos para a festa, perto dali.

A fila tava grande. Ficamos do lado de fora, encostados em um carro, bebericando. Ao contrário do que a gente previa, nenhum negão com cabelo black power por perto. Todos os que chegavam estavam invariavelmente de pullover, calça escura e sapato social. Parecia mais convenção da Amway do que festa funk.

Depois de um tempo resolvemos entrar. Uma mulher e dois gigantes controlavam o acesso.

- Boa noite.
- Boa noite.
- Vocês têm uma lixeira aí pra gente jogar essas latas? Não tem nenhuma na rua.
- Lixeira tem sim. Só não tem ingresso pra vocês.
- Como?
- Vocês não vão entrar.
- Por quê?
- Porque já tem muito homem aqui dentro.


Aceitamos meio contrariados e ficamos um pouco de lado. Logo atrás da gente vinham 8 homens. Esperei para vê-los sendo barrados também. Para minha surpresa, todos entraram e ainda ganharam sorrisos dela. Cheguei perto.

- Por que eles entraram e a gente não?


Os gigantes se aproximaram e formaram uma Muralha da China entre a moça e nós, os brasileiros barrados.

- Os senhores não vão entrar. Agora afastem-se, por favor.


Esse "por favor", traduzindo, não significava um pedido. E sim "ou os senhores saem ou vou esquentar a orelha dos dois com uma mãozada só". Ele era capaz, acreditem.

A verdade é que estávamos totalmente em desacordo com aquele ambiente, estética e eticamente. Inconformado, meu amigo lamentava não saber falar francês para dizer umas boas. Trocamos umas idéias e ele aprendeu rapidamente o necessário para se fazer entender. Começou um discurso em português e, quando o Trio Parada Dura da porta prestava total atenção, provavelmente achando bizarro, deu de ombros e evocou ironicamente o slogan da Revolução Francesa.

- Liberté? Egalité? Fraternité?

A comissão de entrada arregalarou conjuntamente os olhos, antes do grand finale.

- Sarkozistes!

Sarkozy é o presidente francês. Um mini-Hitler segregacionista, apesar de filho de imigrantes. Chamar alguém de Sarkoziste é como dizer que ele é racista, malufista e collorido. Tudo ao mesmo tempo.

Os guardiões da esbórnia calaram-se simultaneamente. Saímos rápido, antes que um daqueles brutamontes ficasse realmente furioso, o que provavelmente não seria muito engraçado.

Como Christopher Lambert, meu amigo sentiu-se um highlander cortando a cabeça de outro. Troco dado na mesma moeda, propus uma esticada.

- Outra cerveja?
- Melhor irmos pra casa. Chineses estranhos, festas francesas de funk com nome inglês e cara de Amway, os três patetas na porta. Acho que já tivemos muita diversão por hoje.


Concordei na hora.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Detonando em Paris


Um amigo meu, viajando pela Europa, ficou uns dias aqui em casa. Saiu pra andar pela cidade e entrou num restaurante que lhe indicaram.

- Bonjour.

O bonjour dele é ótimo, sempre acompanhado de um sorriso. Mas é tudo o que sabe de francês.

- Bonjour, respondeu a garçonete, também sorridente.
- Você fala inglês?

A moça, que no início mostrava todos os dentes, fechou a boca como um bico de pato. E a cara também.

- Não.

Respondeu e ficou olhando séria pra ele. E ele pra ela. E ela pra ele. E ele pra ela. E nenhum dos dois desviava o olhar.

- Que-ro co-mer, falou devagar o meu amigo, fazendo mímica com a mão perto da boca, num esforço para ser entendido.
- Comida, food, fome, hungry!

Ela nem ligou.

Enfezado, o sujeito apontou no cardápio qualquer coisa e esperou. Comeu e pagou o que devia, sem deixar gorjeta para a garçonete.

De cabeça quente, foi visitar umas lojas. Como ele é DJ, aproveitou para comprar uma moderníssima aparelhagem de discotecagem. Com medo de ser assaltado, pediu pro atendente embrulhar. O vendedor podia ter toda a boa vontade do mundo, mas revelou-se um péssimo empacotador. E fez uma gambiarra com pedaços de papel e fita crepe que deixaram o pacote muitíssimo mais suspeito do que antes.

Depois andou até a FNAC para comprar uns discos. Encantado com o tamanho da loja, foi se metendo pelas seções, bisbilhotando aqui e ali, olhando os lançamentos, escutando trechos de músicas. E esqueceu o embrulho num canto.

Na França, como em toda a Europa, há um verdadeiro pavor de pacotes abandonados. Eles já foram vítimas de atentados com bombas deixadas em mochilas e latas de lixo, então destroem tudo o que é potencialmente perigoso.

O meu amigo, cabeludo, barbudo e longe de ser o cara mais bem vestido do mundo, passaria como terrorista até no Afeganistão. Bin Laden mudaria de lado na rua se o visse passar. Na França, então, devia ser suspeito desde que chegou ao aeroporto.

De repente ele percebe uma movimentação estranha na loja. Atendentes apressados, pessoas tensas, um clima esquisito no ar.

- Que pessoal estressado.

Súbito, uma das atendentes passa correndo por ele. Mas o reconheceu e soltou uma mistura de inglês com mímica e alguns saltitos semi-histéricos.

- É seu o pacote abandonado lá atrás? É seu? É seu?
- Vixe!!! É meu.


A moça o pegou pela mão e saiu atravessando as seções de clássicos, jazz, blues, soul, reggae... Um longo caminho até chegar no rock, seu ponto de partida.

- É dele! É dele. Deixa aí.
- É mine. It's meu!
Meu pobre amigo já confundia até os idiomas.

O embrulho estava sendo encaminhado para uma sala isolada, mas eles chegaram a tempo. Um dos caixas pegou o pacote e entregou pra ele, sem esboçar o menor sorriso.

À noite eu o encontrei em casa.

- Como foi seu dia? Tá se virando bem no francês?
- Olha, posso dizer que eu tô quase detonando.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Como falar francês sem falar francês


Quando cheguei a Paris meu francês não era grandes coisas. E mesmo quando não entendia o que falavam, sempre mantive a pose de totalmente fluente, fruto de algumas técnicas que desenvolvi.

É verdade que existem livrinhos de consulta rápida com frases prontas em diversas línguas. Normalmente divididos por temas, como 'chegando na cidade', 'saindo pra jantar' ou 'pedindo informações', são ótima opção para garantir ao menos uma comunicação básica.

Mas se o que você quer é fazer todos acreditarem que você aprendeu francês na Sorbonne, anote as dicas a seguir. Para ser tão didático quanto o Monsieur Gérard, dividi os ensinamentos em capítulos.


Cinq minutes de merde

O que é

A primeira técnica, batizada de "Cinq Minutes de Merde", foi criada por causa de um fato estranho que acontecia comigo. Mesmo que o assunto fosse fácil e as pessoas não falassem muito rápido, eu demorava cinco minutos pra dar um boot no meu sistema operacional interno e ajustar o cérebro à conversa. Era como um rádio meio fora da estação, onde você pesca algumas palavras mas não consegue entender o contexto.

O que fazer

Primeiro, fique com um leve sorriso na cara o tempo todo. Dá um ar de quem está por dentro do assunto. Mas não exagere, pra não ter expressão de idiota. Olhe para quem está falando, mas não muito, pois ele pode te pedir uma opinião. O ideal é balançar um pouco a cabeça e ficar atento às outras pessoas da roda. Se elas rirem, ria também. Se fizerem cara de espanto, coçe o queixo.

Quando entender um pouco, solte um "je vois" ou um "oui" de tempos em tempos. São os equivalentes ao nosso "sei, sei...", que não quer dizer nada, mas diz tudo.

Mas quanto boiar completamente, marque um ponto no horizonte e fixe o olhar. Se te perguntarem alguma coisa, arregale os olhos e repita a seguinte frase: "pardon, j'ai été inattentif". Em bom português, "desculpa, estava desatento". Mas NUNCA peça pra repetir. É o momento ideal de procurar o banheiro.


Faisant des ronds dans l'espace

O que é

É o tradicional circular pelo ambiente. Técnica fundamental, pois ninguém te pega no canto pra tentar desenvolver uma conversa. Se for uma festa é mais fácil. Mas se for uma mesa de bar o problema é maior.

O que fazer

Há duas possibilidades para essa situação: ambientes onde você pode e onde você não pode se locomover.

Na primeira categoria encaixam-se festas, aperitivos, recepções e afins. É moleza se livrar. Basta circular com um copo quase vazio na mão. Quando alguém se aproximar, antecipe o passo e pergunte se ainda tem vinho. A frase-chave é "il y a encore du vin?". Sirva-se e depois dê o sumiço. Claro que você pode trocar pela sua bebida preferida. Um rápido guia de referência: cerveja é bière, água é eau e coca é coca mesmo.

A segunda possibilidade é mais complicada, e ocorre em jantares, mesas de bar e ocasiões onde todo mundo fica sentado. Torça para ninguém te perguntar nada. E quando houver uma pausa na conversa, lance você um assunto. Aliás, lance e em seguida vá ao banheiro. O banheiro é fundamental em todas as situações descritas aqui. É lá que você vai se refugiar por alguns preciosos minutos. O tempo suficiente para que se esqueçam um pouco da sua presença. Mais detalhes sobre lançar um assunto no capítulo seguinte.


En disant des courgettes

O que é

Conhecida em português como "falando abobrinhas", é uma técnica avançada, para aqueles que já têm ao menos uma pequena noção de francês. Consiste em preparar alguns tópicos para usar no momento certo.

O que fazer

Se você souber que vai sair, separe 30 minutos do seu dia para buscar umas palavras no dicionário e organizar um ou dois temas com os quais você tenha familiaridade. Uma boa dica é falar de futebol, pois eles não perdem a chance de se vangloriar em cima dos brasileiros, e você não precisará dizer muita coisa. Frases fundamentais: "C'est vrai, mais le Brésil est cinq fois champion du monde" (é verdade, mas o Brasil é cinco vezes campeão do mundo) e "Pelé a marqué plus de mille buts. Et Zidane?" (Pelé marcou mais de mil gols. E o Zidane?). Solte na hora em que você desconfiar que todo mundo está falando das derrotas de 1998 e 2006.

Um outro tema interessante é caipirinha. Os franceses adoram a bebida. Se algum deles não provou ainda, certamente conhece alguém que já o fez e contou maravilhas a respeito. Boa pra soltar ali pelo meio da noite, quando o nível alcóolico das pessoas deverá estar mais elevado. Frases fundamentais: "J'aime bien boire de la caipirinha sur la plage d'Ipanema" (eu adoro tomar caipirinha na praia de Ipanema) e, se você for do tipo polêmico, solte uma "la caipirinha c'est mieux que le vin" (a caipirinha é melhor do que o vinho). Mas aí você vai precisar estar preparado pra responder.


Com essas técnicas, aplicadas nas horas certas, posso garantir que seu francês será elogiado por todos. Quando isso acontecer, faça um ar meio blasé e tenha outra frase na ponta da língua: "merci beaucoup, mais j'espere que la prochaine fois on parlera en portugais" (muito obrigado, mas tomara que da próxima vez a gente converse em português). E saia.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Táxi! Táxi!


Quando morei no Rio de Janeiro, era comum pegar táxi. Além de ser barato, ainda havia uma diversão gratuita inclusa: o taxista.

Taxista no Rio sabe tudo sobre qualquer assunto. E, se não sabe, fala assim mesmo, com toda a propriedade, como um profundo conhecedor. Do tempo à situação econômica do país, não há tema que não possa ser abordado. Teve um que jurou ter levado o Parreira para o aeroporto.

- Eu dei uma bronca nele, por ter perdido a Copa do Mundo. Fiz isso em nome de todos os brasileiros. O Parreira precisava escutar umas verdades.

Da parte que me cabia, agradeci, mesmo duvidando da veracidade do fato. Mas quem é que procura a verdade numa conversa que dura apenas alguns quilômetros?

Em Paris peguei táxi poucas vezes. O suficiente para perceber que taxista é igual em qualquer lugar. Voltando de Montmartre, fiz sinal para um que passava. Parou.

- Bonsoir.
- Bonsoir. O senhor teve sorte de me encontrar. Normalmente não há muitos táxis a essa hora da noite.
- C'est vrai. Foi sorte mesmo.
- Desculpe perguntar, mas seu sotaque é diferente. De onde você é?
- Sou brasileiro.

O sujeito abriu um sorriso do tamanho do retrovisor.

- Eu amo a seleção brasileira. Adoro o time de 58, com Garrincha, Vavá, Zagallo, Nilton Santos...
- O de 70 foi o melhor de todos os tempos. Jairzinho era matador!
- E o de 82, que pena terem perdido. O Zico merecia ganhar uma copa.

O cidadão foi desfilando seu conhecimento enciclopédico sobre o futebol canarinho. Mesmo quando tínhamos chegado, ele não parava de falar.

- Ah, e fiquei sabendo que o Romário chegou aos mil gols. Só ele e o Pelé têm isso. A propósito, a corrida deu 10 euros.
- Merci monsieur.
- Merci à vous. E boa sorte pra sua seleção da próxima vez que enfrentar a França.

Em cinco meses na cidade, já perdi a conta de quantas vezes escutei essa brincadeira. Acabei desenvolvendo uma técnica para lidar com ela e encerrar o assunto.

- Cuidado que eu posso te dar uma cabeçada, viu?

O motorista recuou. Um segundo de silêncio, interrompido por uma gargalhada.

- Os brasileiros são mesmo muito divertidos.

Eu também ri, mas no fundo ele não imagina o risco que correu.

E se existe o chofer de praça que sabe tudo, existe também aquele que cria teorias mirabolantes. Conheci um desses ao voltar de uma festa de madrugada. Pra puxar assunto, ofereci um chiclete.

- Aceita?
- Não, obrigado. Não como açúcar e nem sal.
- Nada?
- Nada. Essas coisas fazem mal pro organismo.
- Mas você come os alimentos sem salgar?
- Sim. E vou te contar um segredo que poucas pessoas sabem: se você coloca um frango pra assar, sem água, sem sal, sem nada, no final ele sai de lá salgadinho.


Fiquei espantado.

- Como assim?
- É verdade, a carne do frango forma seu próprio sal.


Pensei em telefonar pra Sadia pra propor que abrissem uma fábrica de sal, sabor galinha. Queria mais detalhes.

- Quer dizer que você não tempera? Coloca no forno e pronto?
- Isso. Fica delicioso.

Resolvi dar corda pro sujeito. E o papo, que já era surreal, entrou em uma esfera quase mística.

- Aposto que o mesmo acontece com os peixes do mar.
- Aí que todo mundo se engana. Os peixes têm uma proteção que impede que o sal entre.
- Mas como os frangos formam sal e os peixes do mar não?
- Esse é o grande mistério...


Ele esticou a mão e me passou um cartão.

- Me liga se você solucionar essa questão. Podemos ganhar muito dinheiro juntos.

Eu não sei se achei mais estranha a teoria do cidadão ou o fato de ele pensar que pode ganhar dinheiro com isso. Mas de uma coisa eu sei: em matéria de taxistas, Paris não tá devendo nada ao Rio de Janeiro.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Mexilhões e mexidas latinas


Fui a Bruxelas com o pessoal da Brazuca. A revista é distribuída também por lá, e isso acaba gerando uma rotina mensal de reuniões e afazeres diversos na cidade, capital ao mesmo tempo da Bélgica e da União Européia.

E eu descobri que há três coisas que todo visitante precisa provar: a cerveja, o chocolate e as moules frites. As cervejas e os chocolates belgas estão certamente entre os melhores do mundo, e é possível encontrá-los em qualquer lugar na cidade.

Já as moules frites são um caso à parte.

Também fáceis de achar, pois estão em todos os restaurantes do centro, a questão é simplesmente de escolher onde comê-las. Pra ter certeza de que estava tendo uma razoável amostra e, principalmente, para saciar minha porção Homer Simpson, pedi o prato duas vezes. Um em cada dia, claro.

Moules frites é uma modalidade de orgia culinária. Trata-se de uma panela enorme com mexilhões cozidos, acompanhados de uma nababesca porção de batatas fritas.

Sem precisar consultar o cardápio, todos pedimos esse prato. Pouco depois, a garçonete chegou com a monstruosidade em uma bandeja e a colocou sobre a mesa. "É muito!", pensei. Logo ela trouxe outros dois. Chocado, descobri que a porção tamanho gorila, que eu jurava ser coletiva, era individual.

Respirei fundo e encarei a tarefa. Comecei a traçar, um por um, aquele genocídio de mexilhões. Tenho certeza de que famílias inteiras foram dizimadas para um homo sapiens - eu - satisfazer a gula. E a verdade é que é muito bom.

Mas algo estava incomodando. Não era comida, claro, e sim a música. Das caixas de som do restaurante, Julio Iglesias sussurrava com sua voz de eterno latin lover. Tava duro aguentar aquilo. Tão duro que, olhando de relance, tive a impressão de ver uns dois ou três mexilhões fechando suas conchas. Eles iam ser comidos, mas escutar Julio Iglesias era certamente pior do que ir pro inferno dos frutos do mar.

- Senhora, seria possível trocar a música?
- Mas vocês não gostam dele?


A atendente fez bico e, contrariada, colocou numa rádio qualquer. Tempos depois, após uma verdadeira batalha, terminamos a refeição.

No dia seguinte, andando sozinho pelo centro, a fome bateu. Parei em um simpático (leia-se barato) restaurante e repeti a pedida.

- Moules frites, s'il vous plaît.


Assim que o prato pousou na mesa, como em um filme, alguém ligou a música ambiente. Entre uma mordida em mexilhão-avô e uma dentada numa batata, reconheci a voz que embalaria a minha refeição. E era ele, o mela-cueca mor, o pai espiritual do Wando, a trilha sonora da fabricação de bebês por todo mundo. Ele, Julio Iglesias.

Quase engoli a concha do mexilhão por engano. Por que cargas d'água aquilo acontecia de novo? Chamei o garçom marroquino.

- Senhor, seria possível trocar a música?
- Sinto muito, mas não dá.
- Por quê?
- Porque todo mundo aqui adora Julio Iglesias.
- E eu posso saber por quê?
- Você não entende? É que ele canta com uma mão aqui em cima, segurando o microfone, e outra aqui embaixo, segurando os bagos.


Nisso, o outro garçom, também marroquino, repetiu o gesto. Súbito me vi ali, sentado, com um mexilhão-primo na boca, enquanto os dois sujeitos seguravam seus próprios sacos e faziam um bizarro karaokê do cantor espanhol. Um deles utilizou uma faca como um falso microfone. Fiquei tão constrangido que enfiaria minha cabeça na panela de moules, se ela não estivesse tão quente.

Acabei de comer, pedi a conta e saí. No meu caderno de anotações escrevi em letras grandes: "Bruxelas - cerveja Leffe, chocolate Godiva e moules frites. Lembrar de pedir a última SEM Julio Iglesias acompanhando".