sexta-feira, 26 de março de 2010

Cauby e o cara da foto


Nesse verão encontrei uma foto em Ipanema, na rua. Foi na Visconde de Pirajá, entre a Vinícius e a Farme. A coitada estava no chão e já tinha sido displicentemente pisoteada por cariocas, brasilienses, americanos, franceses, alemães, enfim, pelas hordas de locais e turistas que entopem o Rio de Janeiro durante o carnaval.

Era uma foto antiga, mas comum. Tão comum que todo mundo passou por cima sem nem reparar nela. Eu, talvez pelo meu hábito de olhar meio pra baixo, logo vi. Vi e peguei. Peguei e fiquei imaginando o itinerário dela até chegar ali e a quem pertencera. E criei uma história pra ela.

Epaminondas Chagas era um sujeito dos anos 50 e ganhava a vida como cobrador. Desses que existiam antigamente e batiam de porta em porta na esperança de reaver dívidas que os credores já julgavam perdidas. Perambulava a pé quase toda a Cidade Maravilhosa, da Tijuca à Gávea, tirando o dinheiro e o sono dos desafortunados que a profissão o obrigava a cruzar.

- Sinto muito, são ossos do ofício – Sempre dizia ao embolsar mais um pacote recheado de notas, das quais mantinha 5% a título de comissão.

A vida era amena e sincronizada feito um relógio. Trabalho das 9 às 17h, de segunda a sexta-feira. Chope com os amigos duas vezes por semana, às quartas e sextas, no Bar Luís, na rua da Carioca. Sessões de cinema na Cinelândia, “sempre no Odeon”, todas as quintas. Praia aos sábados, em frente ao Copacabana Palace, com a Turma do Bebê, um grupo de amigos solteirões assim chamados em auto ironia. E Maracanã aos domingos, na torcida frenética pelo América.

É verdade que essa rotina rígida não dava muito espaço para o imprevisto, mas era exatamente isso que aprazia nosso Epaminondas, um sujeito mais careta do que jogo de gamão com general do exército.

- Não dou sopa para o azar. Aliás, nem gosto de sopa – Era outra de suas frases famosas, repetidas quase como mantra.

Acontece que o Epaminondas era cara do Cauby Peixoto, principalmente quando deixava a cabeleira crescer um pouco mais. Semelhança que nem ele e nem ninguém ainda havia reparado, mas que pareceu evidente quando o Meleca da Turma do Bebê a notou. E não demorou para todo mundo passar a chamá-lo pela alcunha do cantor. Era Cauby pra lá, Peixotão pra cá.

Daí pra idéia que mudou tudo foi um pulo. Foi o próprio Meleca quem sugeriu fazer santinhos com a fotografia de Epaminondas e autografá-los com o nome do famoso sósia. Fizeram 500

- Você fica meio de longe enquanto eu faço a abordagem. Aí se aproxima rapidamente e assina “Com amor, do Cauby” atrás, pra não estragar a imagem. Nessa hora o pessoal da turma finge que faz a sua segurança e te leva embora. Ninguém vai notar. Vamos ganhar rios de dinheiro, pode confiar em mim.

Epaminondas confiou. E dançou. Na primeira tentativa de venda, para um policial à paisana, foi enjaulado por falsidade ideológica. O Meleca e o resto da Turma do Bebê deram no pé rapidinho e nunca mais se ouviu falar deles.

A foto foi parar na casa do policial, que mais tarde precisou de dinheiro e a vendeu para uma revista de fofoca, jurando ser uma original e inédita do artista. Uma jornalista da revista a roubou e presenteou a sua mãe, que deu para uma tia fã do cantor, que por sua vez decidiu dá-la a um amigo “muito parecido com o Cauby Peixoto”. Era o Epaminondas, que teve um ataque cardíaco em plena Ipanema ao receber o regalo.

Se você conhece o Epaminondas, quer dizer o cara da foto, deixe um comentário com a história real dele. A recompensa é uma fotografia original e autografada do Cauby Peixoto.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Vizinhanças musicais


Quando eu morava no Rio de Janeiro, no Largo do Machado, tinha um vizinho que tocava clarineta o dia inteiro. Começava de manhã cedinho e não era raro ir até a noite. De vez em quando ficava horas fazendo a mesma escala, subindo e descendo. Às vezes arriscava uma música inteira. Ocasionalmente praticava em duo com um flautista, provavelmente ensaiando para alguma apresentação.

Vizinhos de músicos não costumam ser as pessoas mais tolerantes do mundo, principalmente se os instrumentistas ainda forem debutantes. Na minha carreira de roqueiro adolescente amador, em Brasília, tive a sorte de contar com o apoio e a compreensão meus pais, que cediam a varanda e as tardes de sábado para os ensaios do Sendero Luminoso, glorioso grupo do qual fiz parte, batizado em homenagem à famosa organização revolucionária peruana. Os habitantes das casas da redondeza também compareciam. No começo olhavam meio feio, quando ainda não conseguíamos tocar uma música inteira. Mas depois passaram a participar dos encontros e de vez em quando até a arriscar um “ié ié” nos backing vocals.

Com poucos meses de vida e alguns shows na bagagem, dissidências internas, por mim denominadas de pelegas, pressionaram para que reduzíssemos o nome do grupo para apenas Sendero, ato que gerou reprovação de alguns amigos e principalmente dos vizinhos, em grande parte filiados a partidos comunistas. Depois de alguns anos de carreira e da criação de clássicos inesquecíveis dos quais ninguém se lembra, como Nostradamus e a A guerra e a vida, a banda acabou. Mas não sem antes explodir uma bomba. Ou melhor, quatro, no fatídico ano de 1990, quando quase todos os integrantes tomaram pau no colégio, ao priorizar os divertidos e longos ensaios e uma animada campanha política em detrimento de chatas fórmulas de química e entediantes nomenclaturas de biologia vegetal.

O Sendero Luminoso de Brasília não conseguiu revolucionar o rock, assim como a matriz peruana não foi bem sucedida na tarefa de tomar o poder naquele país. Mas por todo esse apoio que me foi dado, e principalmente por ser um amante da música, aprendi não apenas a respeitar os instrumentistas que moram ao lado, como também a prestar atenção no que eles fazem.

O clarinetista do Rio acabou virando amigo. Hoje ele toca com nomes de peso, como o violonista Maurício Carrilho e o Rancho Flor do Sereno, do carnaval carioca. E se a sua música invadia diariamente o meu quarto pela janela, descobri que os ensaios acústicos do Phonopop, outro grupo do qual fiz parte e que se reunia no meu apartamento, também ecoavam na sua sala de estar.

Dia desses, aqui em Paris, resolvi tirar o violão do armário e tocar de noite a altos volumes com o Nicolas, um amigo colombiano que é a cara do Marcelo D2. Na manhã seguinte, ao acordar, escutei ao longe um som doce de clarineta. Abri a porta da varanda e a melodia tomou conta da casa.
Trilha sonora desse texto: Ama teu vizinho como a ti mesmo (Sá, Rodrix & Guarabira)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Haikais pueris


Ventre
Em Paris, França,
Uma mulher
Engorda a pança

Fala
Do ventre dessa mulher
Um bebê
Parle à son père

Visage
O rosto desse bebê
Parece comigo
Ou será com você?

Mouvements
O ventre a criança aperta
Na cama a mamãe se move
Ao lado o papai desperta

Désirs
Abacaxi, café com leite, croissant
Foi a lista de ontem
Ou será a de amanhã?

Out
Olhando de fora:
Naquela barriga
Tem alguém que mora

In
Na parte de dentro
Não há, imagino,
Grande movimento

Belle & Chico, os irmãos franco-brasileiros, continuam às voltas com os bonecos de neve

sexta-feira, 5 de março de 2010

Flanando no Panis


Primeiro de março, primeiro dia do ano em que a temperatura atingiu os dois dígitos. Uma boa desculpa para uma caminhada descompromissada por Paris. Sem dúvida, uma das melhores coisas a se fazer na cidade.

Saio de casa sem a menor idéia do caminho a seguir. Na praça da Bastilha, hesito entre duas ruas. A primeira leva ao bairro do Marais, a segunda à Île St. Louis. Pego esta.

No iPod, para ritmar a andada, Friends, um dos melhores e mais desconhecidos discos dos Beach Boys. Passo pelo Boulevard Henri IV, que não é dos mais interessantes à primeira vista, mas revela alguns restaurantes e bares promissores a um olhar mais atento. Penso em parar para um café, mas decido que ainda não é a hora.

Chego à Île St. Louis e atravesso a pequena ponte que a une à Île de la Cité, onde fica a Notre Dame. Com um sentimento de satisfação e, confesso, blasé, vou em direção ao parque localizado atrás da catedral, sem dar a mínima bola para um dos mais famosos pontos turísticos de Paris. A calmaria do lugar contrasta com a enorme e constante aglomeração logo ali ao lado.

Escolho um banco virado para o Sena. Apesar desses bancos acomodarem tranquilamente três pessoas, há apenas uma nos que estão ocupados. Encontro um vazio, sento e abro um livro. O dia amanheceu bem azul, mas agora já está um pouco cinza. Não tem problema, ainda está agradável o suficiente para uma leitura ao ar livre.

A cavalaria municipal passa do outro lado do rio e pais e crianças correm para ver os animais. Levanto, observo e volto a sentar. Fecho o livro, levanto de novo e saio caminhando para a frente da igreja.

O relógio público marca 16h30 e acho que a hora do café enfim chegou. Já na rive gauche, o lado da cidade à esquerda do Sena, encontro um bom lugar. Fica perto da famosa livraria Shakespeare & Co, que vende apenas livros em inglês, tem um piano e uma máquina de escrever à disposição de quem quiser e, não raro, hospeda escritores sem abrigo, como fez com Allen Ginsberg e William Burroughs nos anos 50.

O Café Panis, pra onde me dirijo, está localizado exatamente em frente ao sinal de trânsito mais perto da Notre Dame. Escolho uma mesa com vista para a catedral e para os carros, pedestres, caminhões, bicicletas, pombos e motos que passam pela rua. Olho para eles e eles olham para mim, construindo suas crônicas mentais sobre aquele cara do lado de dentro, aparentemente contemplando o nada.

Decido então fazer minha própria crônica de flanêur, sobre o momento, começando de quando saí de casa algumas horas antes. Escrevo, risco, mudo de rumo, como no trajeto que tomei para chegar até aqui. Quando me dou conta, ela está pronta, no meu surrado moleskine. Quem foi mesmo que disse que o mais importante não era o fim, mas o caminho?

Obs 1: O título desse texto (e o próprio texto em si) é uma homenagem ao excelente livro Flanando em Paris, de José Carlos Oliveira.

Obs 2: Leiam as histórias em quadrinhos de Belle & Chico, os irmãos franco-brasileiros.