sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

E por falar em saudade

É clichê, mas irresistível. Ir ao Brasil é sinônimo de crônica de viagem. Crônica de trajeto de viagem, talvez. Cada detalhe tem um significado diferente quando o caminho tomado é o caminho da casa que você não vê há tempos. Da sobrinha que já fala mais do que a boneca Emília. Da cidade familiar para você, mas estranhamente diferente para quem não nasceu lá. Dos pais, irmãos, avós, tios, primos, amigos, cheiros, gostos, clima, cores e sons dos quais se passa muito tempo longe. Mas que permanecem todo tempo ao seu lado, não importa onde você esteja.

Para alguns, o brasileiro é demasiado saudosista. Não é culpa nossa se a língua portuguesa - ou brasileira, como a chamam na França - é a única a possuir a palavra "saudade". Não é como o "tu me manques", que fala de sentir falta. É saudade. Fácil de entender e difícil de explicar. Uma vez, no curso de francês, a professora pediu para cada um escolher um termo de sua língua e traduzi-lo para a classe. Escolhi "saudade". Não foi fácil. Tentei fazer jus à beleza da palavra, mas certamente diversos de seus sentidos me escaparam.

No avião, olho pela janela. Prefiro os vôos diurnos aos noturnos, mesmo que seja mais difícil descansar, pois adoro observar o céu e o tapete de nuvens. Nuvens que vão mudando de formato à medida que nos aproximamos do Brasil, onde parecem menos densas. Ainda mais quando se chega ao país exatamente no carnaval, época em que tudo está mais leve, mais solto e mais alegre. O carnaval talvez seja o auge da brasilidade. Sé é que podemos definir uma só brasilidade, em um país do tamanho de toda a Europa. Enfim, é esse espírito carnavalesco, feliz e descontraído, o que mais me faz falta do outro lado do Atlântico.

Olho mais uma vez pela janela e, ça y est, começamos a sobrevoar o Brasil. No iPod, coloco pra tocar Pavão Mysteriozo, do Ednardo. Minha primeira memória musical, de quando tinha 2 ou 3 anos. Música que guardo apenas para ocasiões muito especiais. Fico emocionado. Sempre fico quando volto, mas dessa vez é especial, e eu nem sei bem dizer o porquê. Mais uma vez, não dá pra explicar a saudade. Talvez seja realmente muito complexo. Ou talvez seja apenas isso mesmo.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Às vezes é cem. Às vezes é sem.

Para comemorar o centésimo texto nesse blog, uma pequena lista de coisas bem parisienses. Algumas vezes, a nota é cem. Mas outras, sem comentários.

. O transporte público aqui é cem.
. Você se sentir uma sardinha no metrô na hora do rush é sem.
. Os restaurantes são cem.
. A conta, muitas vezes sem, pode custar cem.
. A torre Eiffel tem 320 metros de altura, e é cem.
. A fila pra subir tem também uns 300 metros, e é sem.
. O Louvre, o maior museu do mundo, é cem.
. Na sala da Mona Lisa pode ter mais de cem pessoas. Então é sem.
. No verão, que é cem, a cidade é muito mais agradável, com todo mundo fazendo piqueniques nos parques.
. O inverno é sem. Simplesmente sem.
. Por fora, os imóveis parisienses são lindos. Uma arquitetura cem, sem dúvida.
. Por dentro são tão pequenos que a área muitas vezes deve ser medida em centímetros. Totalmente sem.
. Aperô, o famoso jantar sem ser jantar, é cem, e tipicamente parisiense.
. Cinco aperôs por semana, aí já é sem.
. Comunicar-se sem problemas em francês é cem.
. Conseguir fazer o maldito biquinho é sem.
. A Ikea tem lojas gigantes, onde você encontra tudo o que precisa para sua casa. A idéia é cem.
. Vai passar uma tarde de sábado lá com a metade de Paris pra você ver, vai... Coisa mais sem não há.
. É cem o fato de que na França há mais tipos de queijos do que dias do ano.
. Agora o futum de túmulo de alguns deles é totalmente sem.
. O TGV, train à grande vitesse (trem de grande velocidade) viaja a 300 km/h. É muito mais do que cem.
. Se a passagem é pras 10h13, significa que ele vai sair exatamente às 10h13. Chegar um mísero segundo atrasado é sem.
. É cem quando o francês fica bravo e vai pra rua manifestar.
. É sem quando ele fica bravo com você, e demonstra todo o mau humor que é capaz de ter.
. Foram muito mais de cem garrafas de vinho. Todos bons. Todos cem.
. Já umas duas ressacas foram completamente sem.
. O maché d'aligre, que é cem, é um dos mais baratos mercados de rua de Paris.
. Porém, inventar de comprar mamão papaya para uma sobremesa custa o equivalente a cem reais. Idéia mais sem não há.
. A Edith está sempre pronta a ajudar todo mundo. Ela é cem.
. Mas encontrá-la quando se está apressado é sem, e sinônimo de atraso.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O encontro marcado

Um dia desses tive um sonho bem estranho. Tomava uma taça de vinho na place de la République, com uma mulher que não conhecia. O papo era agradável, mas de repente surgiu uma contagem regressiva no alto da minha, digamos, tela mental. E indicava que aquele sonho terminaria em 5 segundos. Caramba, 5 segundos? No melhor da conversa? Quando já começávamos a virar fumaça como o gênio da lâmpada, tive a idéia.

- A gente se reencontra amanhã, aqui mesmo, às 14h.
- Mas onde?
- Na esquina em frente ao KFC.
- Combinado!

Nunca reparei se havia realmente um KFC em République. Fui conferir no dia seguinte, na internet, e para a minha surpresa havia mesmo um, exatamente em uma das esquinas. Nem preciso dizer que a minha manhã foi simplesmente a espera da hora do encontro. Até cheguei adiantado, como não é do meu costume.

Os termômetros marcavam 5 ºC. Moleza para quem já enfrentou -8 ºC. Tanto que fiquei sentado nas mesas do lado de fora, na esquina combinada, um pouco admirado da minha nova condição de imune ao frio. Aí lembrei que estava disfarçado de urso polar, com um grosso casaco de lã e um sobretudo. Bom, quase imune, digamos.

Eu não tinha muita certeza se ela viria mesmo. E além do mais, não seria muito fácil reconhecer um rosto que havia visto apenas uma vez, e em um sonho.

Uma senhora passa e pára em frente ao cardápio. Não era ela. Uma mais jovem vem em seguida, escutando seu iPod no último volume. Olhamo-nos nos olhos. Por um instante, pensei que poderia ser. Mas ela não me reconheceu, então não era.

Observo a paisagem ao redor. No meio da praça, a estátua construída em homenagem à volta da república na França, após o período dos imperadores. As árvores ainda estão secas. A fumaça sai da boca das pessoas quando elas falam. E elas falam os mais diferentes idiomas. Inglês, italiano, espanhol, português, línguas orientais, eslavas e tantas outras que não conseguiria entender nem aqui e nem na China. Muito menos na China, aliás.

Acredito tê-la visto saindo de um café ao lado. Mas essa passa por mim sem nem me notar. Observo uma outra, parada, exatamente no lugar onde combinamos. Parece esperar alguém. Olha impaciente para o relógio e, depois, na minha direção. Passo a mão nos cabelos, disfarçando um aceno tímido. Mas logo pára um carro na sua frente e ela salta pra dentro. Dommage.

O dia está bonito. Céu quase azul. O sol bate nas janelas dos prédios, revelando uma luz transversal e fraca. Apenas o suficiente para fazer dessa uma agradável journée d'hiver.

E é nesse exato momento que percebo que ela está ao meu lado. Na verdade, já estava quando eu cheguei. Reconheço seu rosto. É o rosto de todos que passam por aqui. É o negro, o japonês, o escandinavo, o latino, todos. São os carros, os ônibus, as vélibs, as motos. O KFC e o McDonald's ao lado de tradicionais cafés e brasseries. A senhora fumando, o senhor com as compras, a moça de óculos fashion, a mãe e a filha levando flores para alguém, os adolescentes com guitarras, o cachorro na coleira, o viajante e suas malas pesadas, o casal abraçado e apaixonado, os pombos misturando-se às pessoas, a velha de cabelo tingido de vermelho, as guimbas de cigarros ainda acesas pelo chão, o jovem pai empurrando um carrinho de bebê.

São 14h30. Já estou aqui há mais de meia hora. E ela, Paris, há muito mais tempo do que isso.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Framboesas

Hoje, um amigo se foi. Faz frio em Paris, mas o sol brilhava quando eu recebi a notícia que ele tinha ido embora para sempre. Não deu nem pra dizer adeus. Da última vez que nos vimos, apenas um "vê se melhora dessa merda logo, porra", no tom de brincadeira que costumávamos falar um com o outro.

Há pouco menos de dois anos, ele e a esposa, em lua-de-mel, vieram nos visitar. Foram os primeiros amigos a compartilharem a minha então nova vida na cidade-luz. Tudo aqui ainda era meio desconhecido pra mim, e foi nessa época que descobri as framboesas. Se não me engano, estava junto com eles quando as provei pela primeira vez. Ao partirem, desejamo-nos votos mútos de "felicidades nessa nova fase". Além de saudades, deixaram de presente uma pequena framboeseira.

No verão, ela cresceu e deu frutos. No outono, perdeu as folhas. No inverno, manteve apenas o mínimo necessário para sobreviver. Veio a primavera e ela cresceu novamente. Em junho, quando o verão recomeçava, voltei novamente ao meu país. Deixei na França a framboeseira, magnífica. E encontrei no Brasil o meu amigo. Se sua saúde já estava bem abalada, seu humor e sua ironia continuavam os mesmos.

No começo do inverno, a framboeseira secou. Julgávamo-la morta. Na mesma época, meu caro amigo, quase um irmão, piorou de vez, para não mais melhorar.

Hoje, recebo a notícia de que ele se foi. Saio à varanda, para tomar ar fresco, e olho para a planta que ele nos deixou. Surpreende-me ver que existem pequenos brotos verdes nascendo, retomando a vida. De certa forma, sinto que ele estará sempre por perto.