quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Cachorrada


Tem cachorro em todo canto em Paris. Aí você vai dizer que existe cachorro em todo canto no mundo. E eu vou dizer que você tem razão. Mas aqui eles estão dominando a cidade. O cachorro é uma instituição sacra na capital francesa, algo como a mamma na Itália. Só que enquanto as mammas ficam em casa preparando a macarronada, os parisienses não saem de casa sem o seu melhor amigo.

Outro dia, no metrô, senti uma lambida na mão. Antes de acusar a senhora ao lado de assédio sexual, percebi a presença canina, com toda a sua baba e olhar lânguido em minha direção.

- Ele é manso.

Não me preocupei com a ferocidade, mas em como eu ia me livrar daquela gosma que me colava os dedos. O melhor era limpar no próprio bicho. Alisei sua cabeça, mas os pêlos soltos grudaram na minha mão, deixando-a como um ser estranho a mim mesmo, como se o braço do Tony Ramos me tivesse sido implantado.

A presença canina é tão sufocante que já vejo o dia em que os bichos vão sair em passeata exigindo seus direitos, abocanhando faixas com dizeres como "cão também é gente" ou "não faça cachorrada: cuide bem do seu melhor amigo". Mas cachorros e passeatas não causam mais espanto em Paris, e essa manifestação só atrairia alguns poucos curiosos, como os vendedores de ração.

Além de presentes em metrôs, supermercados, cinema, restaurantes, elevadores e exposições, os cães daqui mostram que estão mesmo integrados e latem em bom francês. Fazem "ouaf ouaf" ao invés de "au au". Mas ainda não aprenderam alguns modos abolidos há séculos, e insistem em deixar suas cacas pelas ruas. Normalmente seus melhores amigos, os donos, vêm atrás, limpando a sujeira. Mas de vez em quando você pisa numa que ficou e, voilà, percebe-se totalmente integrado à cidade:

- Merde!

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Station: La Merde


Regra número um de Paris: jamais encare alguém no metrô. Na rua ainda vai. Se for pego, dá pra fingir que estava olhando pra paisagem. Mas no metrô não tem escapatória. Você estava encarando o sujeito, e pronto. E ele certamente não vai gostar.

Numa madrugada, metrô vazio, eu morrendo de sono e completamente distraído, olhava para o nada. Só que entre mim e o nada havia um sujeito. Na verdade, um sujeitão. Um sujeitaço de 2 metros de altura, com uma cara que faria o Freddy Krueger parecer o Brad Pitt.

- Algum problema, mon frère?
- Pardon?
- Eu perguntei se há algum problema.


Não existia, até aquele momento, nenhum problema. Mas o fato de ele me fazer essa pergunta imediatamente me fez perceber que havia um. E dos grandes.

- Por que você me pergunta isso?
Tentei ser valente.
- Por que VOCÊ me encara? Ele era mais, sem a menor dúvida. E pelo menos umas oito vezes mais forte. Só o seu hálito secular já me fez recuar dois passos.

Eu não o encarava. Na verdade, meu olhar ia em direção a ele, mas minha mente estava em outro universo.

- Desculpe, eu não estava te encarando. Você está se enganando.
- Então eu sou louco? É isso?


Ele não era louco. Ou era. Ou eu era. Ou não. A situação era tão delicada que coloquei todos os meus neurônios para trabalhar em busca de um só objetivo: achar em um segundo a frase certa, no tom correto, para encerrar aquele impasse. Pensei ter encontrado a saída, e tentei me colocar mais próximo do seu universo, abrindo um debate pseudo-filosófico sobre as mazelas da sociedade.

- Somos todos loucos nesse mundo doido, mon frère.


Eu não poderia ter sido mais estúpido.

- Alors, você me encara, me chama de doido e ainda acha que é meu irmão?


Ele quase urrava colado na minha cara. Eu me sentia um domador de leões, que enfia a cabeça na boca da fera. A diferença é que a fera é que enfiou a boca na minha cabeça.

- É isso mesmo????


Preparei-me pra levar um sopapo histórico, sem testemunhas, na madrugada parisiense. Fechei um dos olhos. O cidadão levantou o braço. Encolhi-me. Ele cresceu. Mordi a língua. Preparou o golpe. Pensei na minha família querida em Brasília, nos amigos que deixava pra trás, na minha coleção de discos de vinil. E vi que tudo aquilo estava prestes a terminar. Com um golpe daquele quilate eu seria o primeiro decapitado na França depois da extinção da guilhotina. Ele se aproximou mais e soltou... uma gargalhada.

- Hahahahahahahahahahahahahahahaha! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA! HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA!

Ele e seu cupixa choravam de rir. Eu também quase chorava, mas por outros motivos. Esforcei-me para esboçar um riso sem graça.

- Fica assim não, mon frère. Estamos brincando. Somos mesmo todos loucos nesse mundo doido. Os únicos conscientes somos eu, meu irmão aqui do lado e agora você. Parabéns por ver a luz.


O negão de dois metros disse isso e saiu do metrô. Eu fiquei mais um tempão ali e passei a estação da minha casa. Acho que tanta luz me fez perder um pouco o rumo.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

A morte do Bacalhau


Um grande amigo meu veio visitar a França pela primeira vez. Músico talentoso e conhecedor de história, quis dar uma passeada pelo famoso cemitério do Père Lachaise, onde estão os túmulos de Jim Morrison, Chopin, Oscar Wilde e outras personalidades mundiais. Vamos chamá-lo de Bituca.

Seguimos a turba de cabeludos e maltrapilhos e chegamos ao endereço eterno do ex-vocalista do The Doors que, dizem, já não está mais lá. Uma história meio confusa, que me fez imediatamente lembrar de outra, protagonizada pelo próprio Bituca, também envolvendo músicos e cemitérios. Foi alguns anos atrás.

Eu estava um dia em casa, ainda em Brasília, quando o telefone toca. Era um companheiro de banda de Bituca.

- Tenho uma notícia horrível. O Bacalhau morreu!
- Como?
- O Bacalhau, baterista do Little Quail, morreu.
- Quem te disse?
- O Bituca foi ao enterro.


Nessa manhã, Bituca lia o jornal e viu na página de óbitos: "A família do músico Marco Aurélio, consternada, agradece às manifestações de solidariedade e convida para o enterro, a realizar-se hoje, no Cemitério Campo da Esperança". Não teve dúvidas de que tratava-se do amigo. Correu para a capela mas, avesso a velórios, não teve coragem de chegar perto do corpo.

Indignado, constatou que nenhum dos roqueiros da cidade estava lá. "Pessoal mais sem consideração", pensou. De longe, avistou um senhor que não conhecia, mas soube tratar-se do pai do falecido.

- Meus pêsames.
- Obrigado.


No local, ficou sabendo da causa mortis: acidente de carro. Como não viu a namorada do amigo por perto, achou que ela também havia ido dessa para uma melhor. Mas não teve coragem de perguntar sobre seu paradeiro.

Notícia ruim corre a cavalo, já dizia a minha avó (ou talvez minha bisavó). E essa espalhou-se rapidamente. Em poucos minutos, todos os músicos da cidade já estavam a par da tragédia e lamentavam a passagem do amigo e excelente músico.

- Não é só a gente que perde, é a música brasileira.


Inconsolável, Bituca digiriu-se com sua banda para Goiânia, onde tocou à noite. Antes do fim, dedicou a apresentação.

- Pessoal, esse show é em homenagem ao nosso querido Bacalhau, que morreu hoje.

Palmas gerais. Comoção no palco e na platéia. Uma aura de solidariedade e tristeza pairou sobre o ambiente.

- Pausa dramática -

- Fim da pausa dramática -


No dia seguinte, de manhã, outro telefonema, do mesmo amigo que tinha ligado antes.

- Oi, Daniel.
- E aí, muito triste?
- Não.


"Sujeito mais frio", pensei.

- O Bacalhau não morreu.
- É, a obra dele continua pra sempre...
- Não, ele tá vivo.
- O quê?
- Tá vivo.


Tipo em um filme do Quentin Tarantino, as coisas só se explicaram depois. Querendo prestar solidariedade à família, alguns colegas de bandas ligaram para a casa do verdadeiro Bacalhau. Qual a surpresa quando o próprio atendeu e jurou que não havia abotoado o paletó de madeira.

E logo tudo fez sentido: o Marco Aurélio que se foi era um homônimo do baterista, e não o próprio. Não havia nenhum amigo presente ao enterro porque simplesmente não era quem Bituca pensava que era.

Bacalhau passou algum tempo desmentindo sua morte, até em outros estados. Mas a assombração mesmo foi pra Bituca, que aguentou brincadeiras durante anos.


PS: Para provar que está vivo, Bacalhau é hoje baterista do Ultraje a Rigor.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

La Liberté




Outro dia passei no La Liberté pra tomar uma cerveja depois de um show.

O La Liberté é talvez o bar de Paris que mais parece os famosos "pés sujos" brasileiros. Com a diferença de que não é sujo. Bem, não muito. Mas todo o resto está lá: cerveja barata, portas abertas até mais tarde, ótima música e, o principal, uma fauna de freqüentadores das mais esquisitas. Tudo o que faz um bom boteco.

Depois de uma certa luta, consegui chegar ao balcão.

- Um chope, por favor.
- Voilà.

Pedi, paguei e bebia tranqüilamente. Já estava no finzinho quando um loiro semi-gigante, meio vesgo de tanta birita, aproximou-se, pegou minha tulipa e virou o resto de uma vez só, provavelmente pensando que era dele. Ou talvez nem pensando mais. Achei que devia reclamar, mas o cidadão era tão grande que a minha voz demoraria uns 2 minutos para chegar lá em cima. A comunicação partiu dele.

- E aí, o que você está festejando hoje?
- Nada.
- Eu também não.


Com a boca mais mole do que gelatina e um olho em mim e outro no teto, disse isso, pegou um chope e brindou com meu copo vazio.

- Ao nada.
- Ao nada.


E saiu tropeçando para o outro lado do bar.

Continuei ali pelo balcão. O balcão é sempre onde você escuta as melhores histórias. E um cliente reclamava com um dos donos.

- Mas eu não bebi nada na 4a feira.
- Não interessa. Se você levanta o dedo e pede uma cerveja, eu presumo que seja pra você e coloco na sua conta.
- Sim, eu levantei o dedo, mas não bebi. Era pro meu amigo.
- Então não levante mais o dedo pedindo.


O balconista disse isso e foi atender outra pessoa. Quando virou-se novamente, o mesmo carinha que reclamava estava com o dedo em riste.

- Uma cerveja.


Nesse meio tempo, a música muda. E Aretha Franklin sai das caixas de som. O sujeito que pediu a bebida deixa o balcão antes de recebê-la, começa a se sacudir e vai pra improvisada pista de dança. Um clone mais velho do Elymar Santos já dominava o ambiente, rodopiando com uma loira com cara de bem comportada.

O cliente reclamão volta, pega a bebida que pediu e fica secando a loira. Na verdade, a bunda da loira. Elymar Santos percebe e abre o botão de cima de sua própria camisa, assegurando que o macho adulto branco no comando era ele.

No meio disso tudo, entra um vendedor de flores, com as rosas mais feias e murchas que já vi.

- Quer comprar?
- Não, obrigado.


Diz isso e vai pro fundo do bar, uma região para onde apenas os iniciados vão. E some na muvuca.

A música muda novamente. Entra a versão original de "conheci um capeta em forma de guri", famosa no Brasil na voz do grande filósofo Sérgio Mallandro, o mesmo de "vem fazer glu-glu".

Elymar Santos cover está infernal. Enquanto passa a mão na bunda da loira, acena para uma outra que está encostada na parede. Ele percebe que saquei seu movimento e faz um "high five", batendo na minha mão no alto. Não sei se elas notaram, mas ele parece não se importar nem um pouco.

Aparece um segundo vendedor de flores.

- Quer?
- Não... Ah, o seu companheiro está lá atrás.
- Merci.


E também some na fumaça de cigarro que empesteia o ambiente. Logo depois vejo dois buquês sacudindo no alto, no ritmo da música, com pétalas voando pra todo lado.

A loira sai, talvez para ir ao banheiro. O Elymar Santos francês não perde tempo e chega na outra. Logo abre um segundo botão. Em poucos segundos - em uma performance que mataria Jece Valadão de inveja - conseguiu fazer a mocinha beijar seu peito pela camisa semi-aberta. A loira volta e, como se aquilo fosse muito normal, pede uma cerveja e fica observando a cena. O reclamão tenta se aproximar, mas ela não dá a menor bola. Aquele pedaço - já está claro - pertence ao outro sujeito.

Já era tarde, e depois de mais um chope resolvi ir embora. Os dois floristas saem também, totalmente embriagados. Na mão, umas hastes com as poucas pétalas sobreviventes.

- Quer comprar flores?

Eu olho pra o que restou delas e também para o que restou deles.

- Que flores?

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O ganso e o mico


Uma refeição na França costuma ser uma experiência inesquecível. Para os amantes da culinária requintada, é sem dúvida a oportunidade de provar pratos deliciosos e super elaborados. Porém, para os não iniciados nos hábitos alimentares locais, pode ser traumático.

O foie gras, por exemplo, é uma iguaria muito apreciada em terras gaulesas. Mas pouca gente sabe que se trata de fígado de ganso gordo. A maneira de preparar tem requintes de crueldade: o bicho é amarrado e alimentado, por uma espécie de sonda que vai diretamente no estômago, até quase explodir. Depois, seu fígado é tratado, conservado e vendido a preço de ouro.

Em viagem pelo interior do país, um amigo foi convidado para um jantar típico. Como entrada, uma bela fatia de foie gras, que ele nunca havia provado.

- É foie gras.
- Merci!


O anfitrião Patrick, um francês que morou no Brasil, explicou o processo de fabricação daquilo. Meu amigo já estava com o primeiro pedaço na boca, e chocou-se com o que estava prestes a comer. E aí entalou. Não descia de jeito nenhum. Não descia e nem subia. Ficou ali, preso. E ele sem saber o que fazer. O primeiro naco tinha que passar de qualquer maneira. Pro bem dele, seria bom descobrir logo como fazer isso. Pra acabar com a agonia, pegou a taça de vinho e virou-a inteira, com os olhos cheios de lágrimas.

- C'est bon?
- Delicioso...


Tentando ser diplomático, elogiou o que havia detestado. E como recompensa ganhou mais um pouco. Tarde demais. Nessa hora não dava pra devolver e muito menos pra deixar de lado. Então dividiu em pedaços homeopáticos, que colocava pra dentro à base de muito vinho.

Meio bêbado, continuou a sorver altos goles de álcool quando veio o prato principal. Dessa vez, nenhum susto. Apenas uma massa ao molho bolonhesa. O estranho veio depois.

Na França, o queijo é parte quase obrigatória de qualquer refeição. E servido sempre depois da comida. É normal para eles. Mas esquisito para um brasileiro. Ainda mais para um já embriagado.

- Quer queijo?
- Desce!

Queijos franceses podem ser muito fedidos. Aliás, quanto mais fétidos, mais eles parecem gostar. Se houvesse uma disputa para saber qual tem o maior futum, o camembert seria uma espécie de Pelé, imbatível. E foi exatamente esse que serviram depois do jantar.

Totalmente sem noção e já estupidamente bêbado, meu amigo, um contumaz piadista de boteco, começou a soltar suas pérolas:

- O que fede mais: um camembert ou a cueca do Patrick?
- Um conhecido jogou perfume francês em cima do camembert e comeu. Hoje seu peido é vendido engarrafado como arma de guerra.
- Um camembert incomoda muita gente. Dois camemberts incomodam, incomodam muito mais...


Depois desse festival de micos, um verdadeiro planeta dos macacos, ele nunca mais foi convidado para um jantar francês. Entre amigos, agradece por não mais ter que passar por isso. Por outras fontes sei que o anfitrião Patrick pensa igualzinho.