sexta-feira, 16 de maio de 2008

Pé na cova

Um dia acordei com uma dor nas costas danada. Um pouco a contragosto, decidi ir ver um doutor. No caso, um clínico geral, pois o atendimento médico na França funciona de uma maneira diferente. A não ser em casos extremos, como o surgimento repentino de um terceiro braço no meio do peito, todo mundo vai primeiro ao clínico geral. Daí, se necessário, ele encaminha para um especialista.

Como em uma espécie de pronto-socorro, muitos desses médicos atendem de acordo com a ordem de chegada, sem a necessidade de marcação de consulta. Não tem lista, nem secretária e nem nada. Você simplesmente pergunta quem é o último da fila.

O sistema é diferente, verdade. Mas tem coisa mais igual no mundo do que sala de espera em consultório médico? Os que aguardam a vez disputam de forma ferrenha o título "Pé Na Cova", e desfilam sem parcimônia a lista de ziquiziras e urucubacas, compartilhando a gravidade dos próprios problemas como quem compartilha a opinião sobre o time do Paris Saint-Germain.

Quando eu cheguei à ante-sala, dois senhores já estavam lá. O menos deprimido tinha cara de quem acabara de chegar de um velório.

- Quem é o último? Perguntei.

- C'est moi. Eu sou o último a entrar, mas provavelmente o primeiro a bater as botas. Tô tossindo mais do que cachorro de bêbado.


Eu não tenho muita paciência pra ouvir esse tipo de lamúria. Mas, para não ser antipático, fiz um comentário rápido.

- Acho que comigo é mais simples. É só uma dor nas costas. Nada grave.

Erro fatal. Não se pode dar corda para esse tipo de assunto. O outro infeliz, que também aguardava a vez, semi-imóvel, com a parte de trás da cabeça encostada na parede, moveu a boca o suficiente para sentenciar meu destino.

- Ah, eu também comecei assim. Um dia, com a sua idade, acordei com dor. O médico me entupiu de remédios, e de nada serviu. Hoje, quarenta anos depois, estou aqui, completamente entrevado. Acho que não duro muito mais.


Já era, o debate estava iniciado. O da tosse sentiu-se ofendido. Como aquele tipo ousava colocar no mesmo patamar de sofrimento um simples mau jeito nas costelas e a sua magnânima tuberculose? Mas o entortado também não deixou barato. Já eu passei a espectador.

- Monsieur, dor nas costas eu tenho desde que nasci. E não é isso que vai me matar. Agora experimenta tossir de manhã, de tarde e de noite. É um inferno. Tem horas que até me falta ar.

- Vous rigolez? Inferno é não conseguir se mover direito, depender dos outros pra fazer qualquer coisa. Quando eu tenho uma crise de dor, preciso ficar deitado o dia inteiro.


- Entendo, mas ao menos a dor passa quando você deita. Eu, quando durmo, continuo tossindo. Dois casamentos meus terminaram porque minhas ex-esposas não conseguiam dormir ao meu lado.


- Você teve sorte e ainda se casou. Eu não. Que mulher ia querer um homem como eu, mais torto do que a Torre de Pisa?


- O problema é que, além da tuberculose, tem dias que acordo com uma tremenda enxaqueca. Parece que minha cabeça vai explodir.


- Agora você vai me falar de enxaqueca? Enxaqueca é meu sobrenome. E não adianta tomar remédio que não passa.


- Comigo é a mesma coisa. Eu até me ofereci de cobaia para testar medicamentos novos.


- Isso é uma coisa que já faço há tempos. Atualmente estou testando um remédio ótimo contra sinusite.


- Umas pílulas verdes, bonitas que só?


- Essas mesmas. Eles dizem pra tomar duas. Mas gosto tanto que mando logo umas três ou quatro pra dentro.


- Eu também estou testando a mesma. Mas prefiro um novo colírio contra catarata. Duas gotinhas e o mundo fica azul.


- Sim, sim, conheço, conheço. Experimenta usar esse aí combinado com um talco contra chulé.


- Contra chulé?


- É uma maravilha! E dizem que a mistura dos dois destrói o cerebelo.


- E o que é o cerebelo?


- Sei lá, acho que mais uma dessas doenças tropicais.


No auge da cumplicidade dos dois, o médico abriu a porta e chamou o próximo. Renovado, o aleijado andou sorridente e a passos largos até ele. O tuberculoso emitiu um "até logo", em alto, claro e bom som. Depois olhou pra mim, novamente com tom fúnebre, e deu uma tossida.

- Dor nas costas é só o começo, meu filho, é só o começo.

Não falei mais nada até chegar a minha vez de ser atendido.

- Pois não, o que você está sentindo?

- Depende. Antes ou depois de chegar à sala de espera?

5 comentários:

Pedro Cariello disse...

Dani,

eu também ando sentindo uma dor nas costas, mas Mami's mandou passar arnica. Quer um conselho? não se esqueça das recomendações de Mami's. Ela sabe tudo. Tudo ...

Teu irmão, Pedro

Anônimo disse...

Ai, ai, ai!!!
Cada uma hein Daniels!
Tô de acordo com teu irmão! ;)
Vou te contar uma coisa, não sei se eu teria essa paciência toda com os franceses, não! Mas vejo que você a tem! Tenho acompanhado as histórias e... Já teria dito: "Fala com a minha mão!" Tá ficando escolado, meu amigo! Muito bom!!
Beijocas mediterrâneas!
Flor do México

tresporquatro disse...

Putz... esse post foi de matar!!! [pegou? pegou?] hahahahaha...

Unknown disse...

...cof,cof,cof... tô com uma gripe... ai de mim... cof, cof, cof...

Anônimo disse...

HUAHAUAHAUAHAUAHAUAAHU excelente texto,chorei de rir.