Ele chega à enorme Biblioteca François Mitterand carregando dezenas de livros de poesia. Foi inventar esse mestrado de análise poética crítica e comparada pra quê?, é o que pensa diariamente ao ingressar no recinto.
Dessa vez, sua mesa de praxe está ocupada. Ele procura, mas só encontra vaga na seção de culinária. Suspira, instala-se lá mesmo e vai buscar outras obras para o seu estudo da semana, o destrinchamento de Les fleurs du mal, de Baudelaire.
Quando volta é que repara na linda japinha sentada na cadeira em frente à sua. Apesar de entretida em leituras sobre os segredos dos grandes chefs de cozinha, ela também o nota. Ele baixa os olhos de timidez. Ela levanta a cabeça. Ele fica amarelo. Ela faz um psiu. Ele se acha o cara mais sem sal do mundo. Ela dá um sorriso doce. Ele submerge na sua poesia. Ela retorna à culinária.
Ele é de poucas palavras próprias, mas é mestre em encontrar outros que falem bem por ele. E na hora em que a japinha levanta-se para buscar um livro, ele deixa Les fleurs du mal em cima da mesa dela, aberto no poema À une passante. E vai embora antes que ela retorne e ele não tenha coragem de encará-la.
Ailleurs, bien loin d'ici ! trop tard ! jamais peut-être !
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais !
(Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado — e o sabias demais!)
No dia seguinte, ele volta à biblioteca e vai diretamente à seção de culinária. Não escolhe a mesa do dia anterior, mas uma outra, nem tão perto e nem tão longe, de onde pode observar sem ser visto. Mas a japinha não está lá. E nem em canto nenhum, ele percebe, depois de vasculhar todas as salas.
Durante toda a semana ele retorna outra vez e outra e outra e não mais a vê. Procura em todas as seções, em todas as mesas, entre todas as prateleiras, pergunta a todos os bibliotecários e não descobre pista alguma.
Foi a poesia que a afugentou, pensa. Não, foi Baudelaire, reflete. Não, foi ele próprio, conclui. Ela deve ter odiado receber um elogio tão século XIX, na forma e no conteúdo. A poesia não serve de nada, amaldiçoa. Palavras bonitas não têm mais vez. E talvez nunca tenham tido. Não é à toa que os poetas românticos brasileiros morreram jovens, torturados pelo mal do século.
Ele sai, cabisbaixo. Do lado de fora, está tão compenetrado na própria imersão que quase não escuta o psiu sussurrado vindo do banco de concreto pelo qual acabou de passar. Levanta os olhos e a vê, a japinha. Fica completamente desconcertado e deixa escorregar todos os seus livros. O do Neruda cai aberto na página de Tu risa, um dos poemas que ele mais gosta. Ela o ajuda a recolher e lê em espanhol os primeiros versos.
Quítame el pan, si quieres,
quítame el aire, pero
no me quites tu risa
(Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.)
Ela sorri ainda mais docemente. Ele fecha o livro. Ela dá um bombom pra ele. Eles caminham juntos.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.
8 comentários:
Que lindo, Daniel!
Fico feliz que tenha te conhecido e que possa ter o prazer de ler suas crônicas!
Acabo de escrever um texto em sua homenagem no meu blog, o título é a À la Daniel Cariello, espero que goste, é um poquito de nossa experiência em Buenos Aires.
Lindo post!
Virou meu favorito!
Maravilhoso esse texto
Lindo texto. Tenho um carinho especial pois o XIII foi onde fiquei quando estive em Paris. Você é muito talentoso.
Ai, meu Deus.
Que coisa linda e delicada e romântica.
Amei, mesmo. (:
Oi, Andrea. Obrigado pela mensagem e pela homenagem. E muitos beijos pra vocês.
Fernanda, Anônimo, Anderson, Angela e Júlia: obrigado também!
Beijos e abraços.
que gracinha! adoro sua escrita..
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