sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Autour de Paris XIII - Biblioteca François Mitterand


Ele chega à enorme Biblioteca François Mitterand carregando dezenas de livros de poesia. Foi inventar esse mestrado de análise poética crítica e comparada pra quê?, é o que pensa diariamente ao ingressar no recinto.

Dessa vez, sua mesa de praxe está ocupada. Ele procura, mas só encontra vaga na seção de culinária. Suspira, instala-se lá mesmo e vai buscar outras obras para o seu estudo da semana, o destrinchamento de Les fleurs du mal, de Baudelaire.

Quando volta é que repara na linda japinha sentada na cadeira em frente à sua. Apesar de entretida em leituras sobre os segredos dos grandes chefs de cozinha, ela também o nota. Ele baixa os olhos de timidez. Ela levanta a cabeça. Ele fica amarelo. Ela faz um psiu. Ele se acha o cara mais sem sal do mundo. Ela dá um sorriso doce. Ele submerge na sua poesia. Ela retorna à culinária.

Ele é de poucas palavras próprias, mas é mestre em encontrar outros que falem bem por ele. E na hora em que a japinha levanta-se para buscar um livro, ele deixa Les fleurs du mal em cima da mesa dela, aberto no poema À une passante. E vai embora antes que ela retorne e ele não tenha coragem de encará-la.

Ailleurs, bien loin d'ici ! trop tard ! jamais peut-être !
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais !


(Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado — e o sabias demais!)


No dia seguinte, ele volta à biblioteca e vai diretamente à seção de culinária. Não escolhe a mesa do dia anterior, mas uma outra, nem tão perto e nem tão longe, de onde pode observar sem ser visto. Mas a japinha não está lá. E nem em canto nenhum, ele percebe, depois de vasculhar todas as salas.

Durante toda a semana ele retorna outra vez e outra e outra e não mais a vê. Procura em todas as seções, em todas as mesas, entre todas as prateleiras, pergunta a todos os bibliotecários e não descobre pista alguma.

Foi a poesia que a afugentou, pensa. Não, foi Baudelaire, reflete. Não, foi ele próprio, conclui. Ela deve ter odiado receber um elogio tão século XIX, na forma e no conteúdo. A poesia não serve de nada, amaldiçoa. Palavras bonitas não têm mais vez. E talvez nunca tenham tido. Não é à toa que os poetas românticos brasileiros morreram jovens, torturados pelo mal do século.

Ele sai, cabisbaixo. Do lado de fora, está tão compenetrado na própria imersão que quase não escuta o psiu sussurrado vindo do banco de concreto pelo qual acabou de passar. Levanta os olhos e a vê, a japinha. Fica completamente desconcertado e deixa escorregar todos os seus livros. O do Neruda cai aberto na página de Tu risa, um dos poemas que ele mais gosta. Ela o ajuda a recolher e lê em espanhol os primeiros versos.

Quítame el pan, si quieres,
quítame el aire, pero

no me quites tu risa

(Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não

me tires o teu riso.)

Ela sorri ainda mais docemente. Ele fecha o livro. Ela dá um bombom pra ele. Eles caminham juntos.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

8 comentários:

Andrea Hughes disse...

Que lindo, Daniel!
Fico feliz que tenha te conhecido e que possa ter o prazer de ler suas crônicas!
Acabo de escrever um texto em sua homenagem no meu blog, o título é a À la Daniel Cariello, espero que goste, é um poquito de nossa experiência em Buenos Aires.

Fernanda Calvet disse...

Lindo post!

Anônimo disse...

Virou meu favorito!

Anderson Milhomem disse...

Maravilhoso esse texto

Angela disse...

Lindo texto. Tenho um carinho especial pois o XIII foi onde fiquei quando estive em Paris. Você é muito talentoso.

Unknown disse...

Ai, meu Deus.
Que coisa linda e delicada e romântica.
Amei, mesmo. (:

Chéri disse...

Oi, Andrea. Obrigado pela mensagem e pela homenagem. E muitos beijos pra vocês.

Fernanda, Anônimo, Anderson, Angela e Júlia: obrigado também!

Beijos e abraços.

Anônimo disse...

que gracinha! adoro sua escrita..