sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Espinha de peixe (ou a arte de rir da desgraça alheia)

Anteontem, uma espinha de peixe entalou na minha garganta (pausa para tranquilizar a família: mãe, pai, não se preocupem, tá tudo bem. Aproveitem e mandem um abraço pra vovó e pro vovô e um beijo na Paty. Fim da pausa. Obrigado a todos pela paciência).

Nunca na vida tinha preparado um prato à base de peixe. E inventei de fazer uma moqueca para 60 pessoas no La Commune, o restaurante associativo da rue d'Aligre. Não tenho certeza se a maioria dos que a comeram saberia distinguir uma moqueca capixaba de uma gororoba marítima qualquer, e nesse caso eu poderia soltar um "la cuisine brésilienne est exotique, non?". Mas achei melhor testar a receita em casa antes.

Segui meticulosamente os passos e, voilà, deu muito mais certo do que eu poderia imaginar. Fiquei orgulhoso diante da minha legítima moqueca, com direito a pirão e tudo.

Pra experimentar, servi-me um prato de pedreiro português - porque em Paris tá cheio de pedreiro português, e é preciso se adaptar - e fui ser cobaia da minha própria criação. "Tá boa. Só lembrar de colocar menos coentro e mais sal". Repeti, cometendo de forma consciente o pecado capital da gula. E o castigo foi imediato: uma espinha entalou na garganta. A única espinha daquele peixe foi inventar de espetar minha laringe.

Isso já havia me acontecido anos atrás, em Brasília, num almoço preparado pela mãe de uma namorada. Na fila da emergência do hospital, a atendente me perguntou o que eu tinha. "Espinha de peixe na garganta", disse. Todos os outros que ali esperavam, moribundos ou não, gargalharam sem disfarçar. Tinha um velhinho sem uma perna que chorava de rir, sacudindo-se nas suas bengalas. Uma pinça e uma médica atenciosa resolveram o problema rapidamente, para a minha alegria e talvez a tristeza da minha sogra.

Aqui a coisa não funcionou da mesma forma. Como o sistema de saúde francês é diferente, fui ao clínico geral mais perto. Na sala de espera, na disputa pra ver quem era o mais doente, perguntaram-me o que eu tinha.

- Espinha de peixe na garganta.

Uma senhora deixou sair pelo nariz o chá que bebia, enquanto um sujeito ao meu lado colocou a mão na frente da boca, na tentativa de não deixar o riso escapar. Existe algo de tragicômico nessa situação, pois a médica que me atendeu também não conseguiu disfarçar a ironia enquanto ligava para um otorrinolaringologista (olha só, nunca achei que fosse possível usar essa palavra em um texto).

- Você pode receber hoje um paciente que está aqui e diz que tem uma... uma espinha de peixe na garganta?

Eu tenho certeza de que escutei o outro médico dar uma risada, só não sei se pelo meu infortúnio ou pelo valor que ele queria cobrar pela consulta: "ele disse que vai custar pelo menos 50 euros".

Deixei o médico pra lá e apelei pra receita caseira mesmo. Com dois euros no bolso, passei no supermercado e comprei três bananas e uma baguete. Comi tudo, e a espinha se foi. Ter uma dessas na garganta é mais engraçado no Brasil do que na França. E mais barato.


P.S.: Acabei de voltar do La Commune, onde preparamos a moqueca. Até onde eu sei, todos parecem ter sobrevivido. Às espinhas e ao prato.

12 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pela moqueca (capixaba! pois o resto é peixada...)e principalmente por ter se livrado da espinha...Tome cuidado porque pode ser bastante perigosa a situação! Vc. já deu sorte duas vezes, cuidado...!

Cidade Cognitiva disse...

êta nóis! vamos fazer uma desta em Nova Almeida... e eu te conto a minha história de espinha na goela vivida em Curitiba, que envolveu um tour pelos hospitais de Curitiba, que só foi resolvida depois que o Brasil marcou um gol. sobre esta do gourmet Cariello, depois a Rita me conta, mas deve ter ficado ótima, se teve a mão da Charlotte... nada como um toque da nouvelle cuisine française, ah! o sabor mundo global, que fique longe do McDonald!

Silvestre Gavinha disse...

Muito bom o texto.
E parabéns pela coragem. Fazer uma moqueca para 60 pessoas....
Deus te guarde.
E te livre das espinhas de peixe e dos otorrinolaringologistas franceses.
E dos auspícios meio agourentos "delápracá".
Um abraço
Marie

Anônimo disse...

Dani, li e fiquei muito preocupada , afinal 50 euros é uma exorbitância. Acho melhor voltar logo para casa, pois no PS do Hospital de Base é ¨de grátis¨. Um conselho: tenha sempre à mão uma pinça e uma lanterna . É bem mais em conta do que 50 euros.
Um beijão de mami

Anônimo disse...

Chéri,
Se não podemos nos livrar do ridículo, cuidemos de ter a exata noção do próprio. Essa a grande lição do dia deste blog espinhento.
Abraço,
Pápi

Natália Vaz disse...

Eu não sei bem qual é a relação entre espinha de peixe na garganta e farinha, mas aqui no nordeste, quando alguém passa por isso, a sabedoria dos antepassados manda que você engula quantos quilos de farinha puder. Já tentei saber como isso funciona mas ninguém soube me explicar. Só dizem que funciona.

Em relação a rir da desgraça alheia, eu acho bem mais divertido quando ela entra na língua ou no céu da boca!

Abraços!

Natália Vaz

Anônimo disse...

parabéns pela moqueca! é um feito extraordinário fazê-la tão longe de casa (da dela e da sua). Te cuida, Paul Bocuse...

Unknown disse...

Daniel, sei exatamente a dor que você sentiu!! Aconteceu comigo quando era criança. Ia contar a história aqui, mas ela é meio comprida, decidi escrever lá no meu blog... Depois dá uma olhadela lá!

Bj!

PS: mamãe do Daniel, a senhora sabe das coisas, viu?! Aliás, as mamães sabem das coisas... a minha me salvou com uma pinça!!

Anônimo disse...

Então quer dizer que estar na França é quase uma aventura expedicionária? Tem que levar lanterna, pinça, canivete suíço, cordas para salvamento...
Vou me preparando por aqui, hein!
Não conhecia tais medidas para salvamento com espinhas entaladas! Já anotei em meu diário de bordo! Valeu! :D
Beijocas e continue testando suas receitas! Não conheço cozinheiros sem queimaduras! ;)
Flávia

Anônimo disse...

Fala Daniel!!

Muitas saudades mesmo de suas caras e bocas!

Tenho acompanhado o seu Blog que (óbvio você já sabe: é ótimo!).

Fiquei preocupado com essa mania de "fincar" espinhas de peixe na garganta rapaz!

Faça como eu, nunca coma coisas do mar. A não ser que seja uma sereia, mas como elas não existem, você nunca vai ter problemas!

Saudades;

Fábio e Carol

Chéri disse...

Comentários sobre alguns comentários.

Robinson, temos mesmo que fazer uma dessas em Nova Almeida. De preferência, perto da ponte velha.

Natália, eu comi farinha antes de ir ao médico, mas não adiantou. Um pratão de pirão também é feito de farinha, né? Com o tanto que comi, essa espinha acabou é me engordando.

Fabi, fazemos parte do seleto clube dos que sobreviveram a duas espinhas de peixe na garganta. Mas, olha, não pretendo arriscar uma terceira vez.

Fábio, o peixe que fizemos era de rio. Dava pra você ter comido.

Abraços a todos!!!

Anônimo disse...

peixe de rio, dani???...