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sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Deve ser legal um busão no Senegal


O Demba tem um táxi coletivo. Por táxi, entenda-se um carro meio caindo aos pedaços, com um fio que deve ser puxado para trancar a porta por dentro, uma janela que não abre e, se abrir, não fecha, e o cinto do passageiro da frente que deve ser entrelaçado com o do motorista, já que só tem um encaixe. O velocímetro não funciona, assim como o marcador de combustível. Mas ele tem uma relação tão simbiótica com seu carro, também seu meio de vida, que sabe dizer exatamente a velocidade e sente quando precisa abastecer. Confesso que fiquei meio assustado na primeira vez que entrei ali.

Do aeroporto de Dakar, Demba nos levou para uma vila chamada Tubab Dialaw. O trajeto de cerca de 80 km, à noite e sem trânsito, foi vencido em cerca de 2 horas. Alguns dias depois, ele nos levou a Joal, a uns 100 km ao sul de Tubab. Mais uma vez, quase 2 horas de trajeto. "Como pode demorar tanto?", pensei.

De Joal íamos para uma ilha, ali perto. O Demba não pôde ficar, mas passou direitinho as instruções.

- Para ir ao cais de onde sai o barco, pegue um 7 Lugares. E não pague mais de mil francos. Quando você voltar, amanhã à noite, o ônibus vai te deixar onde eu normalmente paro o táxi. Aí eu levo vocês pra casa.



O 7 Lugares


Foi só quando cheguei no ponto de partida do 7 Lugares que entendi o nome do transporte. É um carro normal, que eles atocham até ter 7 pessoas, motorista incluso. Dois no banco da frente, quatro no banco de trás e Alá - já que é um país muçulmano - protegendo a todos.

- Quanto é?
- Dois mil.
- Tá caro.
- Mil e quinhentos.
- Pago mil.
- Mil pra você e duzentos pra bagagem.
- Pago mil.
- Sobe.


Depois de negociar o preço, uma atividade tão corriqueira por lá quanto beber água, montei no táxi e coloquei a mochila de 60 litros atrás. O bagageiro de cima estava entupido de caixas e umas cinqüenta vassouras de palha. Numa curva, todas caíram.

- Vassoura! Vassoura! Vassoura!

O motorista parou e descemos para catá-las, esparramadas pela estrada de terra. Quando vi o tamanho de todos do lado de fora, duvidei que fôssemos caber novamente naquele carro. Mas coubemos, ainda não sei bem como. E logo depois chegamos ao cais de onde pegamos a piroga até a ilha.


N'Diaga-N'Diaye e a relativização da realidade

No dia seguinte, pra voltar, a teoria era simples: um 7 Lugares até uma pequena cidade perto e, depois, dois ônibus. Como demoramos 2 horas na ida, a volta, nos meus cálculos, levaria cerca de 3 horas.

O 7 Lugares foi moleza. Já estava craque. Ele nos deixou em frente ao ponto de partida dos N'Diaga-N'Diaye, os ônibus senegaleses. O nosso estava parado, esperando encher.

- Quanto é?
- Mil.
- Me disseram que era trezentos.
- Na verdade é quinhentos.
- Toma trezentos aqui.
- Sobe.


Pois bem, subi. E eu não sabia ainda que cruzar aquela porta era cruzar um portal sem volta. Ninguém continua o mesmo depois de encarar uma viagem de N'Diaga-N'Diaye.

Quanto entrei, o ônibus tava meio vazio. Peguei a cadeira logo atrás do motorista. Ele entrou. Sentou. Tentou dar partida. Não pegou. Despreocupado, desceu e começou a bater papo com um carinha que passava. Comprou um saco de amendoim e voltou com dois potes grandes sem tampa, com um líquido desconhecido, e os colocou ao lado dos seus pés. Tentou mais uma vez dar a partida. Parecia que não ia, mas foi.

Uma coisa que ainda não inventaram no Senegal é parada de ônibus. Toda a movimentação de sobe-e-desce é feita com alguns códigos. Se quer subir, fique ao lado da estrada e acene. Não importa onde você esteja, o ônibus vai parar. E se quer descer, dê duas batidas no teto. Não tem campainha nem nada. E se gritar ele não vai entender. Só pára mesmo com as batidas.


Dá pra apertar um pouquinho?

"Nem é tão ruim", cheguei a pensar. Mas essa sensação acabou logo. Alguém acenava, ele parava. Andava uns 100 metros e outra pessoa fazia sinal. Parava de novo. Um pouquinho mais, outro passageiro balançava a mão para subir. Não demorou pra eu começar a achar que tava cheio demais. Tive que colocar a mochila no colo. Procurei uma daquelas placas que indicam a capacidade máxima de carga. Não tinha. No vidro da frente, apenas um papelão escrito à mão, indicando nosso destino, e umas fotos desbotadas de alguém muito forte e sem camisa, que treinava para participar de algum campeonato de halterofilismo, ou algo do gênero.

Uma hora, quando realmente não cabia mais ninguém, o motorista viu um conhecido. Parou no meio da estrada e começou a bater papo com ele. Durou uns três minutos. Enquanto isso, umas mulheres enfiavam pelas janelas saquinhos diversos com castanha de caju, pimentão ou tomate, que vendiam. Não comprei, mas vi um sujeito que encarou o pimentão. Pimentão está, ao lado do panettone, na lista dos alimentos com "p" que eu detesto. Pickles encabeça a relação.

Papo encerrado, seguimos. Cinco minutos depois, um cheiro de gasolina no ar. O motorista pára bruscamente e vejo que um dos potes que ele carregava - cheios de combustível, descobri - tombou. Ele começa a falar rapidamente com um passageiro, que saca uma garrafa de água e joga em cima. O outro pote, ele acha por bem despejar seu conteúdo no tanque do ônibus. Fiquei com medo de dar um xabu geral. Mas do meu lado um religioso olhava para tudo, impassível. Se Alá fosse salvar alguém ali, provavelmente seria ele. Como eu estava ao lado, talvez entrasse na rebarba. Aí relaxei.

Fim da primeira viagem. Todo mundo desce. Como ainda estava longe do ponto de encontro com o Demba, tinha que pegar mais um N'Diaga-N'Diaye. Um lado meu queria entrar logo no ônibus. O outro se recusava. Ignorei solenemente o meu senso de sobrevivência e montei no primeiro que parou, uma hora e meia depois, pois todos os outros estavam tão absurdamente cheios que passaram direto. Eu estava tão cansado que nem insisti muito na pechincha.

- Quanto é?
- Mil.
- Oitocentos?
- Mil.
- Feito.


Cem quilômetros e sete horas depois de partir, chegamos ao posto de gasolina e mini-rodoviária improvisada, onde deveríamos encontrar Demba. Quando consegui me livrar de uma centena de taxistas que vinham oferecer transporte, vi meu amigo de longe. Ele nem era bem um amigo, mas naquela hora foi alçado a posto de quase-irmão. Dei um abraço forte, que ele não esperava.

- Demba!
- Daniel!
- Você não sabe como estou feliz em te ver.


Dessa vez o carro do Demba era melhor do que qualquer Rolls Royce.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Sene-Sene-Senegal


Não existe nada no mundo como o aeroporto de Dakar, a capital do Senegal. Pelo menos no meu mundo nunca existiu nada semelhante. A coisa é tão confusa aos olhos de um estrangeiro - mas ao mesmo tempo funciona tão bem dentro desse caos - que se tentarem organizar, acredito, entra em colapso instantâneo. É como uma música do Frank Zappa. Ou um filme do Fellini. Ou um X-Tudo de beira de estrada, com muito X e muito tudo. Não tente compreender sua lógica. Apenas aceite a existência.

A introdução dessa nova realidade é a sala de desembarque. Existe esteira para as bagagens, claro, mas ela está ali só porque deve ser obrigatória a presença de uma nos aeroportos. Sua função prática é discutível. Algumas poucas malas, mais afortunadas, circulam por ela. Mas a grande maioria fica mesmo espalhada pelo chão, criando uma variante da corrida com barreiras. A diferença é que o cara saltando ao seu lado não está se exercitando espontaneamente. A única coisa que ele quer é ter o direito de alcançar suas valises antes que elas entrem num universo paralelo e desapareçam para todo o sempre. Um fato que deve ser comum no lugar, levando em conta a quantidade de sacos, sacolas e pacotes encostados pelos cantos, umas 20 vezes maior do que o número de pessoas presentes. Mas no fim das contas, e para o meu espanto, a impressão que eu tive é que todo mundo conseguiu recuperar seus pertences. Eu incluso.

Ao sair da sala, dezenas de pessoas vieram ao mesmo tempo me oferecer os mais diversos serviços. E, se existe um povo insistente, é o senegalês. O maior erro que se pode cometer em Dakar, e isso eu só fui descobrir mais tarde, é dar corda para quem queira te vender qualquer coisa no aeroporto, na rua ou onde quer que seja.

- Táxi?
- Não, obrigado.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Mas alguém vem te buscar?
- Vem.
- Quem é?
- Como?
- Quem vem te buscar?
- Demba.
- Eu não conheço.
- Eu também não.
- E como você sabe que ele vem?
- Eu sei que vem.
- Tem o número dele?
- Tenho.
- Acho melhor você ligar.
- Não precisa.
- Vai que ele não vem.
- Ele vem.
- Liga.
- Não quero.
- Eu tenho telefone.
- Se eu precisar, aviso.
- Mas vai ficar tarde.
- Não tem problema.
- Tô aqui do seu lado.
- Não se incomode. Pode ir pra lá.
- Me chama se precisar?
- Chamo sim.
- Não vai ligar agora mesmo não, né?
- Não, obrigado.
- Tá. Vou ficar ali.
- Merci.
- Ali.
- Já sei.
- Naquele canto.
- Merci...


Tudo isso aconteceu mesmo antes que eu saísse da área reservada. É que no aeroporto de Dakar, ao deixar o desembarque, já na rua, existe uma barreira. Dentro, só quem tinha acabado de chegar de viagem e alguns outros que, não sei como, foram parar ali também. Fora, um mar de gente aguardava. Alguns ostentavam papéis com nomes de pessoas que chegavam. Outros ofereciam produtos e serviços diversos para os "toubabs", que é como eles chamam os brancos. Eu fiquei ali dentro, claro. Mas era só bobear que algum desses que furou o bloqueio chegava perto.

- Táxi?
- Não.
- Ligação?
- Não.


Enquanto isso, do lado de fora da barreira, uma mulher discutia com um guarda, ao mesmo tempo que segurava um papel com o nome de alguém. Ele saiu e voltou com um companheiro, maior. A mulher, pequena, enervou-se ainda mais e passou a berrar em dobro. No meio de toda a gritaria, um ambulante oferecia milho para os guardas. Outro passava do lado balançando uns pacotes de cuecas, também à venda. Depois de alguns minutos, e vendo que não ganhariam a discussão, os dois deram as costas e saíram de perto. Nisso, o sujeito que tinha puxado assunto comigo volta mais uma vez.

- Seu amigo apareceu?
- Como?
- O Demba apareceu?
- Ainda não.
- Eu tenho um táxi, viu?
- Sim, já sei.
- Não quer mesmo?
- Não, não, obrigado.
- E ligar, quer?
- Não.
- Ó, tô ali.
- D'accord. Merci.


Mas ainda faltava o grand finale. O toque surreal derradeiro. O boi com asas. E ele não demorou a chegar. De repente fez-se um silêncio. Lentamente, um grupo de freiras saiu da sala de desembarque, em fila indiana, atravessou a barreira e cruzou a multidão, que de forma espontânea abriu para elas passarem. Assim que sumiram, o caos voltou instantaneamente. Uma cena completamente deslocada, e por isso mesmo totalmente integrada com aquilo tudo. Voltei a mim quando senti um cutucão no ombro.

- Só pra te lembrar que eu tô ali no canto, viu?