sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Escada enrolante


Quando decidi voltar pra Brasília, vim preparado pra ter uma vida completamente diferente da que levava em Paris. Pra precisar de carro, pra não ver gente nas ruas, pra voltar a usar camiseta como vestimenta do dia a dia, pra encarar com indiferença as tempestades tropicais que na França seriam tomadas como a chegada do apocalipse. Só não me preparei para as escadas rolantes.

- Dá uma licencinha?
- Hã?
- Chegadinha pro lado, pra eu passar.
- Passar como?
- Passar passando, ué.
- Você não tá vendo que estou aqui parado?
- Tô. E é por isso mesmo que eu quero passar.
- Estamos em uma escada rolante.
- Exatamente! É uma escada rolante, não uma fila rolante. As pessoas andam nas escadas.
- Mas como essa aqui rola, a gente pode ficar parado, só curtindo a paisagem.
- Que paisagem? Isso é um shopping center, só tem vitrine.
- Rapaz, de que mundo você veio? Olha ali embaixo.
- O quiosque de algodão doce? O que tem?
- Ao lado.
- A livraria?
- Entre os dois.
- Não tô vendo nada.
- ABRE O OLHO, DIABO! Não tá vendo aquela gostosa de shortinho?
- Ah. É mesmo!
- E ali à esquerda. Saca aquele cara de terno verde. Ele tá sempre por aqui, cada dia com uma roupa mais estranha do que a outra. Um personagem.
- Que figura!
- Olha, vou te contar uma coisa: a escada rolante é o novo banquinho da praça. Daqui a gente vê a vida passar, as pessoas desfilarem, o mundo acontecer. Ao menos esse pequeno mundo que é o shopping center.
- Ah é? Então me diz quem é aquela ali, no andar de cima.
- É a moça que trabalha na farmácia. Primeira a chegar e última a sair. Trabalha até nos fins de semana. Explorada pelo patrão, coitada.
- Qual o nome?
- Não tenho ideia. Mas daquele ali eu sei. É o José, funcionário da lotérica. Ele se vangloria de já ter registrado uma aposta que deu a quina. Pouca gente sabe, mas no fundo ele torce contra os apostadores.
- Que estranho.
- É a vida, ela é estranha. E a gente enxerga isso melhor parado na escada rolante, subindo e descendo em ciclos.
- Engraçado como nunca reparei nisso.
- É porque você está sempre apressado, sobe atropelando todo mundo.
- Como você sabe que eu...
- E depois corre pra aquela agência de publicidade do 2º andar.
- Mas quem te disse que...
- Aliás, dessa vez é melhor você correr mesmo, senão vai chegar atrasado para a reunião com o cliente, que acabou de passar por aqui.
- Ok, ok. Bom, de qualquer forma, muito prazer. Meu nome é...
- Daniel. Eu sei.
- Nossa, incrível! E o seu?
- O meu? Ora, você nem me conhece. Era só o que faltava, a gente quer ser simpático e o outro já vem cheio de intimidades. Daqui a pouco quer saber da minha vida, meu trabalho, meus horários...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Carnaval para franceses


Meus 7 leitores franceses e lusófonos de vez em quando bufam reclamam que eu não venho dedicando muitos posts a eles. Pois eis que chegou a hora de corrigir isso, com uma seleção de frases e perguntas úteis para os patrícios de Gainsbourg que decidiram cruzar o Atlântico e encarar o carnaval brasileiro.


. Adorrei sua fantasia de bandido. Essa arma parrece até real. O quê, minha carteira? D’accord, pega, vou entrrar na folia. Ei, volta aqui!

. Desculpe perguntar assim, mas a senhorrita está guardando uma cenourra dentro da calcinha?

. Não, eu não sou brranco, estou fantasiado de fantasma.

. Por acaso não serria falsa essa nota de 40 reais que o senhor me deu de trroco?

. O que é aquela bola amarrela ali no céu? Ah, isso é que é o sol?

. Moço, me dá todas as havaianas da sua loja, por favor.

. Que carne o senhor usou nesse churrasquinho? Filé mignau? C’est délicieux!

. Acho que bebi muitas caipirrinhas. Acordei com aquele gosto de parapluie na boca.

. Entupidanemte, estupivalente, estudipa... Ah, traz uma cerveja frria, por favor.

. 200 reais a canga? E prra mim, que sou brrasileirro?

. Ai, se eu te pegô, ai, ai, ai, se eu te pegô.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A espreguiçadeira do Migué

Uma amiga da minha mãe resolveu gentilmente colaborar com a minha reinstalação no Brasil e me deu uma geladeira praticamente nova que ela não usava mais. Vamos chamá-la de Babusha (a amiga, não a geladeira). Pra carregar o treco, convoquei um amigo meu, dono de uma mini-camionete e de uma massa muscular consequente. Fomos lá.

- Daniel, a geladeira está ali, embalada em papel bolha desde a minha mudança para essa casa. Está em perfeitas condições. Aproveita e leva também aquela espreguiçadeira dobrável que está atrás da porta, ninguém aqui usa mesmo.

Cheguei perto do trambolho (a geladeira, não a amiga) e fiquei olhando pra ela desanimado, imaginando como transportar aquilo até o carro. Nisso, meu amigo pediu licença, abraçou-a como um urso e a levantou sozinho. Apavorada, Babusha chamou os filhos para ajudar.

- Saul! Migué! O Daniel tá aqui e veio buscar a geladeira. Desçam rápido pra dar um alô pra ele e ajudar a transportá-la.

Pra não pagar o mico de estar com as mãos abanando quando os filhos dela chegassem, enquanto meu amigo fazia o trabalho pesado, fui levar a espreguiçadeira para a caçamba do veículo. Saul desceu primeiro e me cumprimentou.

- Olá, como vai?
- Eu vou indo, e você?
- Tudo bem.

Logo em seguida veio o Migué. Ele me viu de longe e abriu um sorriso, que foi se transformando em cara de pânico à medida em que chegava mais perto. Não disse nem "oi". Virou pra mãe e protestou.

- Mas você tá dando a minha espreguiçadeira pro Daniel?
- Tô. Você não usa.
- Uso. É a minha cadeira preferida.

Com a espreguiçadeira na mão, senti-me um ladrão pego em flagrante. Sem graça, fiz menção de devolvê-la, no que fui repreendido por Babusha.

- Nada disso, Daniel. Ela é sua. Está encostada há um tempão, ocupando espaço. Você me faz um favor levando daqui.

Aliviado, acomodei-a na caçamba. Migué protestou.

- Nada disso. Eu gosto dela. Quero de volta.

Tirei novamente do carro. Saul, que até então assistia calado, interveio.

- Leva, Daniel. Isso só acumula poeira aqui em casa.

Devolvi-a outra vez à caminhonete. E o Migué continuou reclamando.

- É minha poltrona favorita pra ver futebol. Ela fica.
- Ela vai, disse Babusha.
- Não vai não.
- Ah, se vai, completou Saul.
- De jeito nenhum.
- Vai.

Os três decidiam o destino da cadeira de uma maneira tão italiana que paramos pra assistir, eu e o meu amigo, que continuava abraçado à geladeira. Se Fellini passasse por ali naquele momento, teria conteúdo para uma trilogia.

Por fim, depois de longos minutos e com a discussão longe de terminar, tomei uma decisão sobre a espreguiçadeira do Migué. Mas não vou contar antes de quarta-feira, na area de comentários desse texto. Antes disso, gostaria de saber: e vocês, o que fariam?

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A pia


Na busca frenética por um apartamento pra alugar, virei rato de sites de imobiliárias, desses que colocam todos os dados sobre o imóvel, como metragem, número de quartos, vagas na garagem, valor do condomínio e demais informações que o futuro inquilino pode querer saber. Diversos publicam também fotos do apartamento em questão, para dar uma ideia do seu estado geral.

Eu acho isso muito útil, muito mesmo, pois pelas imagens já dá pra descartar algumas possíveis roubadas. Mas, apesar de endossar a importância do serviço, há algo que não consegui compreender, um fato que me causou estranheza e espanto, um fenômeno repetido em grande parte das páginas dos imóveis que visitei virtualmente: muitas delas trazem fotografias da pia do banheiro. Da pia!

Da primeira vez, achei que se tratasse de uma falta de habilidade da pessoa que registrou a imagem. Talvez quisesse ter dado um panorama do aposento e, sei lá, tremeu na hora do clique. Ou, quem sabe, sem querer colocou o zoom no máximo e nem percebeu. Mas depois notei que a foto da pia era recorrente em diversos anúncios. Cheguei até a procurar no Google se não havia um concurso de retratos de arte com esse tema. Mas não encontrei informações a respeito.

Diacho, pensei, que fenômeno é esse? Na França, é comum não haver pias nos lavabos, o que também me intriga, pois o sujeito é obrigado a atravessar a casa com as mãos no ar para lavá-las na sala de banho (os dois ambientes geralmente são separados) ou mesmo na cozinha. Nesse caso, tais imagens se justificariam pelo fato de serem um diferencial. Valeria até uma legenda, tipo "aqui se faz, aqui se lava". Mas no Brasil isso é muito estranho…

Conversando com um amigo sobre o inusitado da situação, perguntei se, enquanto estive fora, as pias haviam se tornado raras ao ponto de merecerem destaque em anúncios de apartamentos. Ele respirou fundo, deu uma bufada no melhor estilo francês e disse: "Parece que você se esqueceu de como as coisas acontecem por aqui. Essa pia é o símbolo do funcionamento dos serviços que contratamos no Brasil, principalmente no ramo imobiliário". Vendo minhas sobrancelhas franzidas e um big ponto de interrogação na minha testa, continuou: "É assim: você escolhe o apê, conversa com um corretor que é só sorrisos, tenta negociar o valor do aluguel, assina o contrato de locação, pega as chaves e se instala. Aí, um belo dia, dá um pepino qualquer, tipo um vazamento de água, e você precisa que o corretor venha te ajudar."

E aí, perguntei, o que acontece?

"Aí ele questiona se você não reparou na foto da pia quando decidiu alugar aquele imóvel"

Eu repeti que ainda não havia entendido o que a pia tinha a ver com tudo isso. Ele me olhou com um olhar piedoso.

"É muito simples: sabe o que ele vai te dizer?"

Não sabia.

"Que ele vai lavar as mãos pro seu problema, não pode fazer nada. Compreendeu agora?"

Armado dessa informação, fui ver pessoalmente um corretor, que me mostrou imagens dos imóveis que tinha pra alugar. Assim que cheguei, avisei de antemão que não aceitava ofertas de apartamentos com fotografias de pias. Ele fingiu que não entendeu, mas percebi claramente que o havia desarmado.