sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Reduzindo ao nariz

Se você fosse escolher um gesto – um só – para definir o brasileiro, qual seria? Pra mim, seria o driblar. O drible é a síntese do que fazemos de melhor.

No futebol, é o Garrincha deixando seus marcadores sentados no chão (aliás, você sabia que a última vez que o Brasil bateu a França em uma Copa do Mundo foi nos 5 x 2 de 1958, com Garrincha e Pelé em campo?). Na vida, é o cidadão se virando pra pagar as contas, acumulando trabalhos, fazendo bicos. Na música, são os escravos enganando os senhores de engenho e batucando temas religiosos africanos, criando o que no século XIX virou uma das raízes do samba. E olha que ainda nem falei do famoso jeitinho, a derivação do drible em forma de acochambramento.

E o francês, qual o gesto que o define?

Eu diria que é o ato de assoar o nariz, apreciadíssimo em terras gaulesas. Tão valorizado que – vejam bem – você pode fazê-lo em qualquer lugar, seja na rua, no metrô, na fila do açougue, no batizado da sobrinha ou à mesa, que ninguém se choca. Por outro lado, se ao invés de expirar você inspirar, se você fungar, aí estará cometendo uma tremenda falta de educação. É quase certo que em troca receberá uma bela bufada.

O assoar o nariz seria a síntese do francês porque significa a expulsão de um treco que incomoda, enquanto o fungar seria a sua absorção. E os franceses são ótimos em expulsar trecos que incomodam, como monarcas, americanismos, seleções brasileiras e invasores diversos (vamos esquecer os alemães da 2ª Guerra, ok?, consideremos aquilo uma fungada histórica). Essa questão de o Sarkozy mandar árabes, africanos e ciganos embora, então, é apenas um reflexo atávico, a repetição de um gesto ancestral. A culpa não é só dele, mas em grande parte da avantajada napa que carrega entre os olhos.

Outra prova: um francês irritado se sente no direito de expulsar da cabeça dele tudo o que o enerva. E se ele estiver bravo com você, pior ainda, pois esse grande fluxo – não mais nasal, mas cerebral – vai na sua direção. É uma catarse quase hipnótica e o mais próximo que os racionais conterrâneos de Voltaire chegam do nirvana. 

Portanto, da próxima vez que vir um francês assoar o nariz, fique atento! Pode ser uma conspiração revolucionária em curso. Ou uma descarga verbal daquelas.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Louise, crítica musical

Talvez ainda seja um pouquinho precipitado pra dizer que ela vai seguir a carreira de crítica, mas a Louise, do alto dos seus 18 meses, já deixa claras suas preferências, tanto em músicas que coloco pra tocar quanto em vídeos que assistimos no YouTube. Tem canções que ela adora. Já outras...

. Pintinho Amarelinho – É o hit do momento. A preferida das preferidas, que ela pede em média 43 vezes por dia, fazendo o gesto de bater o indicador de uma mão na palma da outra, em referência ao “pintinho amarelinho” que “cabe aqui na minha mão”. Na parte do “mas tem muito medo do gavião”, ela esconde o rosto. Sucesso absoluto na Radio Louise.

. Les crocodilles – Conta as aventuras de um crocodilo que foi para a guerra às margens do Nilo e, encontrando o elefante inimigo, deu no pira. Quando quer ver essa, ela começa a falar “cro cro cro cro” sem parar. Das duas uma: ou passamos o vídeo, ou colocamos tampões nos nossos ouvidos. Geralmente a Louise vence.

. Marcha soldado – Outra que ela adora. Já aprendeu a bater continência e também aprendeu que isso só deve ser feito de brincadeirinha, afinal ela é de uma família de esquerda. Uma famosa versão na internet troca o trecho “a polícia deu sinal” por “São Francisco deu o sinal”. Nessa hora ela faz careta, pois, assim como o pai, não entendeu e não gostou da profanação da versão original, oras.

. Sereia – Não curtiu. E eu entendo o porquê. Medo da Fafá de Belém na concha...

. La famille tortue – A letra, em francês, fala que “nunca se viu nem nunca se verá a família tartaruga correr atrás dos ratos. O papai, a mamãe e as crianças tartaruga só vão na maciota”.  Bem condizente com o papai real. La famille tortue já ocupou o posto de número 1, mas agora anda meio esquecida. 

. Atirei o pau no gato – Sucesso garantido, em todas as suas variações (apesar de eu não curtir o final moralista e politicamente correto de algumas). Mas, bom, a crítica é ela, que faz questão de dizer o “miau” do final.

. A canoa virou – Polêmica. Ela adora a primeira versão que descobrimos na internet. Ao tentar mostrar uma outra, fui recebido com a mais longa sequência de “non non non non non non” da história.

. Kashmir – Bem, essa ainda não é sua preferida. Pra dizer a verdade, ela nem conhece. Mas meu objetivo é fazê-la chegar ao Led Zeppelin antes do seu segundo aniversário. Afinal, se a Louise quiser seguir a carreira de crítica, é bom passar logo pras coisas sérias. Papel de pai é orientar.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Ao vencedor, as batatas de frango

- Quer batata?

A pergunta era pra ser simples, mas revelou-se de uma inesperada complexidade.

- Quero.
- De quê?
- O quê?
- Quer de quê? Tem de frango assado de vitrine, de maminha mal passada puxada no alho, de salsa e cebolinha orgânicas, de pernil ao abacaxi e, última novidade e exclusividade da nossa companhia, de peixe frito com tomate, uma delícia!

Eu demorei entender se a aeromoça estava me oferecendo um prosaico pacote de batatinha ou tirando sarro da minha cara, recitando a um habitante da classe econômica o cardápio da executiva.

- Cumequié?
- Tem de frango assado de vitrine, de maminha mal passada...
- E a batata?
- Então. Esses são os sabores disponíveis, senhor.

Já faz algum tempo que abandonei as batatas fritas de saquinho como a base da minha nutrição, e percebo que não acompanhei as variações pelas quais o produto passou. Como os malditos panettones, elas sofreram mutações e agora vêm em sabores tão diversos quanto improváveis. Tornaram-se verdadeiros gremlins alimentares.

- Moça, não tem batata sabor batata?
- Não entendi.
- Aquela simples, sem nada, só a batata frita com sal, como antigamente.
- Sei não. Peraí que eu vou ver.

Pela expressão de espanto da aeromoça, deduzi que a palavra “antigamente” soava para ela como “na época de Ramsés II”. Ou em um tempo muito distante onde as pessoas – imaginem só! – alimentavam-se de bizarrices inimagináveis nos dias de hoje, do tipo batata com gosto de batata, água sabor água e pizza sem ketchup.

- Senhor, achei isso aqui, ó. Vê se serve.

E me esticou um pacotinho brilhante, onde lia-se “sabor muzarela de búfala light”.

- Só tem isso?
- Não, tem também de frango assado de vitrine, de maminha mal passada puxada no alho, de salsa e cebolinha...
- Sabor batata não tem mesmo, né?
- É claro que não, senhor.

É claro que não. Que ideia mais maluca a minha.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Pílulas

A menos de dez minutos a pé da minha casa tem seis livrarias e cento e vinte cafés (desde a última contagem, há quinze dias, mas é possível que já haja uns dois ou três novos). Isso é reflexo de um dos programas preferidos dos parisienses: abrir um livro em uma mesa de um café – na varanda, se o clima for favorável – e ficar ali horas a fio, lendo compenetradamente, pensando na vida.

Nesse mesmo perímetro tem também três farmácias, que são pequenas, fecham aos domingos e vendem... medicamentos. E apenas medicamentos.

Tô contando isso porque na semana passada visitei o Rio de Janeiro e, precisando comprar dois livros, dirigi-me à minha livraria preferida, a Letras & Expressões, em Ipanema. Um lugar que me acostumei a frequentar, pois era também um ponto de encontro, com uma casa de shows e um restaurante simpático.

Era. Porque agora virou farmácia. Ou melhor, vai virar, está em obras.

A drogaria que vai abrir no lugar da Letras & Expressões fica exatamente em frente a uma outra, enorme, e a cinco minutos a pé de outras noventa e três (ou já seriam noventa e quatro?). Essa região eu apelidei de "shopping da ziquizira", pois com tantas farmácias, funcionando dia e noite, você começa a se perguntar se é normal estar em boa saúde. Aí conclui que não. E entra em uma delas pra comprar um “remedinho pra curar essa coisa estranha que tá me dando hoje, sabe?”.

Então sai com um carregamento que “vai te fazer sentir melhor, seja lá o que você tenha, bastando tomar duas cápsulas desse aqui e três glóbulos daquele ali antes do jantar”. E já que está em uma farmácia brasileira, você aproveita para levar para casa duas coca-colas, uma lata de sorvete e três pacotes de biscoito de polvilho. Afinal, os shoppings da ziquizira espalhados por aí te vendem a cura, mas também a garantia da sua breve volta ao estabelecimento.

Ao dar de cara com a enorme placa que dizia “Em breve, para a sua comodidade, mais uma farmácia do grupo X”, fiquei pensando que ao invés de tantos comprimidos deveríamos era tomar mais pílulas literárias, de preferência sentados em um café por longas horas. Talvez assim livremos a cabeça desse tanto de doença que a gente adora inventar. Ou pelo menos, ao fim do livro, teremos uma boa história para contar.