Como fazem todos os anos desde que se conhecem, eles passam o réveillon no último andar da torre Montparnasse, de onde têm uma visão privilegiada de Paris. Absortos, observam a neve que cai em grossos flocos. Até que a contagem regressiva coletiva os traz de volta ao mundo real. Eles se olham nos olhos, sem nada dizer.
- Dix!
Ele pensa: Não acredito. Outro ano inteiro passado com essa aí. Quando esse inferno vai terminar?
Ela pensa: O que eu estou fazendo ao lado ele? Isso é autopenitência.
- Neuf!
Ele pensa: O Greg está passeando de barco no Caribe. O Vincent faz uma festa de arromba na casa dele.
Ela pensa: Por que deixei de ir ao jantar na casa da Véronique?
- Huit!
Ele pensa: No restaurante ali embaixo eles estão servindo foie gras e champagne. E eu aqui com essa mercadoria de terceira qualidade na minha frente.
Ela pensa: Vi na tevê que eles esperam 500 mil pessoas no Champs-Élysées. Pelos menos umas 400 mil devem ser mais interessantes do que este cidadão.
- Sept!
Ele esboça um sorriso com o canto dos lábios.
Ela levanta a sobrancelha em complacência.
- Six!
Ele pensa: Batom no dente. Ela sempre tem batom no dente. É medonho.
Ela pensa: O hálito dele hoje está ainda pior. O bafo do faraó.
- Cinq!
Ele pensa: E esse vestido vermelho? Que coisa mais brega. Tá um tonel e fica usando roupa colada.
Ela pensa: Todo ano ele coloca esse terno xadrez e essa camisa de listras. Nunca vi alguém com tão mau gosto.
- Quatre!
Ele pensa: A meia dela está rasgada. Tem banha escapando pelo furo.
Ela pensa: O corcunda de Notre-Dame jogou fora esse sapato que ele está usando hoje.
- Trois!
Ele respira fundo.
Ela suspira.
- Deux!
Ele pensa: Se ela caísse daqui de cima, quase sem querer, pareceria suicídio.
Ela pensa: Intoxicação com ostras estragadas só mata 48 horas depois. Dá tempo de eu me mandar pra outro canto do mundo.
- Un!
Ele pensa: Tomara que ela desapareça quando 2011 começar.
Ela pensa: Tomara que ele desapareça quando 2011 começar.
- Bonne année!!!
Ele a pega nos braços, como em um passo de tango.
Ela vira a cabeça pra trás.
Ele a beija como nunca e aperta sua bunda.
Ela dá uma reboladinha.
Ele diz: Vamos embora dessa festa chata.
Ela diz: Só se for pra nossa cama.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.