sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Historinhas de inverno


Dois amigos passaram uns dias aqui em casa. E colecionaram diversas histórias andando pelas ruas frias de Paris. Escolhi três pra contar aqui.

1. Café

O Café Kleber é um desses lugares conhecidos como "pega-turistas". Instalado no Trocadero e com uma vista privilegiada da torre Eiffel, cobra no cardápio o preço da paisagem. Extasiados pelo primeiro dia na cidade, os dois instalaram-se confortavelmente nas cadeiras do lugar e pediram um singelo omelete, seguido de três ou quatro chopes.

O garçom revelava uma simpatia de aeromoço, atendendo com presteza e sorrisos os desejos da dupla. Depois de refestelarem-se, decidiram pedir a conta, que veio com mais sal do que o mexido de ovos: 30 euros e 80 centavos, algo como 75 reais.

Pegaram uma nota de 20 e uma de 10 e foram catando as moedinhas que tinham no bolso para inteirar o valor. O garçom, provavelmente acostumado a graciosas gorjetas de turistas endinheirados, não curtiu a demonstração prática de como nós brasileiros costumamos pagar a conta, deixando a soma exata. E revelou sua face Mr Hide.

- Dessas moedas eu não preciso. Tenho várias iguais aqui no meu bolso. - E sacou uma de 20 centavos, colocando-a em cima da mesa, numa nítida provocação.

Meus amigos não se fizeram de rogados.

- Não precisa?
- Não.

Pegaram então as moedinhas, inclusive a deixada pelo atendente, e foram embora, cantando.


2. Mendigo

Na França quase todo mundo tem uma carte bleue, o cartão de banco. Isso significa obviamente que quase todo mundo tem conta em banco, até os SDF, os "sans domicile fixe". São os sem domicílio fixo, um nome politicamente correto para esconder uma verdade cada dia mais presente na França: na prática, tratam-se de mendigos.

Pois meus amigos estavam em uma fila de caixa automático, que por aqui não têm cabines e ficam na rua mesmo, e havia um sujeito vestido como se fosse sair dali para o altar, numa beca federal. Sentado ao pé da máquina, um SDF protegia-se como podia do frio. Ninguém dava bola pra ele. Parecia simplesmente parte da paisagem, como tantos outros em Paris.

Eis que o cidadão bem adornado introduz sua carte bleue. O caixa a cospe de volta. Ele observa, limpa a tarja magnética e tenta uma segunda vez. E ela é devolvida novamente. Já irritado, faz outra faxina no cartão, passando-o na roupa, no cabelo, dando um brilho com um lenço de papel. Indiferente à operação limpeza, a máquina insiste em rejeitar o pedaço de plástico. O SDF levanta lentamente o rosto e dirige-se ao cidadão.

- Para funcionar, você precisa entrar no menu principal.

E volta para baixo do edredom, com toda a sua sabedoria. O outro partiu cuspindo marimbondos.


3. Amigos

Dessa vez eu tava junto. Depois de uma volta pelo cemitério do Père Lachaise, com direito a visitar os túmulos de Jim Morrison, Oscar Wilde, Chopin, Allan Kardec e Edith Piaf, sob uma neve fina e um frio de -5ºC que colaboravam para o clima fúnebre do passeio, estávamos a ponto de virar picolé. Decidimos então sair dali e entrar no primeiro café. Logo encontramos um com nome simpático: "Rendez-vous des amis", o encontro dos amigos. Era lá.

Entramos e fomos recebidos por uma horda de semi bêbados sentados no balcão, que nos desejaram "bonne année" quase em coro. A simpatia dos frequentadores contrastava com a atitude da moça que cuidava do serviço, "amarga qui nem jiló". Pedi três cafés e três copos d'água e fomos nos instalar em uma mesa mais afastada, no salão praticamente vazio. Ela trouxe só os cafés, que entrariam fácil na lista dos 10 piores da história de Paris. Resolvemos deixar a água pra lá.

Pouco depois chegou um grupo de italianas com as quais cruzamos durante nosso périplo pelas sepulturas, também necessitando um pouco de calor. Sentaram não muito longe da gente. Antes de perguntar o que desejavam, a balconista apressou-se a dizer que ali não poderiam ficar, pois um grupo havia reservado aquelas mesas. As moças não entenderam uma palavra e pediram explicação em inglês. A sujeita não quis nem saber e aumentou o tom de voz, quase as punindo por terem escolhido seu bar. As italianas foram embora rapidamente, em fila indiana, como lemmings.

Fomos também logo depois, deixando, claro, o valor exato da conta. Os agora já bêbados nos saudaram novamente, com mais um "bonne année", enquanto a moça parecia aliviada de não ter mais que nos servir.

Ao sair, olhamos outra uma vez o letreiro do bar e traçamos alguns planos para um eventual ataque terrorista no local. A ação começaria com a troca de palavras no nome do recinto. De café encontro dos amigos, passaria para café dos amigos da dona. Ou café dos poucos amigos, mais apropriado.

Leia também as histórias em quadrinhos de Belle & Chico. Em www.bellechico.com.br

5 comentários:

Pápi disse...

Olá Chéri, tudo bem com o "post", mas é preciso lembrar aos leitores o ensinamento deixado para as gerações seguintes da "famiglia" pelo bisavô italiano, o "cameriere Francesco Cariello" (garçom Francisco, em São Paulo): dê sempre gorjeta, é uma questão moral. Só não o faça em caso de maus-tratos líquidos, certos e explícitos por parte do garçom, o que de resto parece serem realmente os casos relatados nas "Historinhas de inverno" de Paris.

Amália disse...

Gostei desse blog. Vou voltar outras veses.

Jaime Baiao disse...

ADOREI!!! gENIAL!!!

Luiza disse...

hahhaha, afdorei a estoria do mendigo!!!
sabedoria de SDF é outra coisa!

bjocas Luiza
www.oguiadeparis.blogspot.com

Carmem Veruska disse...

Adorei!!! Aliás, adorei o blog todo! Amo Paris e vou lembrar dessas histórias qdo estiver passeando por aí! Bisous.