Ça y est. Estamos de mudança. Vamos continuar na rue d'Aligre, mas agora habitaremos em um apartamento colossal, uma verdadeira extravagância, quase um château para os padrões parisienses. O palácio em questão é o que por aqui se chama de deux pièces. Nada mais do que um quarto e sala, com menos de 50m2. Mas, acreditem, é um luxo. Ainda mais quando alguns dos seus amigos moram em 15m2.
O apê pertence ao Monsieur Thésée, o fiel escudeiro da Edith. Aliás, foi ela própria quem intermediou toda a negociação financeira, assegurando de forma justa o interesse das duas partes. Acredito que muito em breve a diplomacia precisará ser reinventada, seguindo o "padrão Edith". Talvez possamos chamá-la de edithocracia. Ou talvez eu deixe a escolha do nome para depois, pois a primeira tentativa é das mais infelizes.
Numa primeira vistoria do apartamento, e já sem a Edith por perto, Monsieur Thésée foi bastante flexível em relação às obras que gostaríamos de fazer. Mesmo que porventura doesse ver a antiga morada de sua tia desmantelada.
- Podemos tirar esse papel de parede verde musgo da sala?
- Oui.
- E esse outro, cheio de corações, do quarto?
- Oui.
- Podemos arrancar esse carpete de mais de 30 anos?
- Oui.
- E jogar fora essas cadeiras quebradas?
- Oui.
- E o que fazemos desse abajur horroroso?
Não dava pra saber, mas esse assunto mexia um pouco com os brios do Monsieur Thésée. E era compreensível. Afinal, aquele abajur, que eu sumariamente classifiquei de "horroroso", era uma lembrança de família. Tratava-se de um treco de quase dois metros de altura, com o corpo em madeira esculpido de cabeças e motivos africanos, e uma tela tribal, de cor indefinida, próxima ao marrom. Enfim, uma coisa medonha. Mas ainda assim parte das recordações de sua tia, que havia feito uma grande viagem à África.
- Vocês podem ficar com o que quiserem. Com o sofá, com as cadeiras, com o microondas. Com tudo, menos com o abajur africano. Esse eu quero de volta.
Separamos então o que não iríamos manter conosco. Umas coisas iríamos dar. De outras teríamos que nos livrar. E o (pavoroso) abajur africano seria devolvido gloriosamente ao Monsieur Thésée. Colocamos tudo na varanda, do lado de fora do apartamento, e fomos ao marché d'Aligre.
O tempo estava feio, e ventava muito. Por isso não demoramos na feira. Além do mais, queríamos acabar logo a triagem.
O vento continuava forte. E, ao voltar para o apartamento, ainda tive tempo de ver o (assustador) abajur africano balançar, e balançar, e balançar. Até cair de uma só vez. Cair, não. Despencar. Como um rei congolês decapitado (desculpem-me pela comparação, mas não dava pra perder a chance).
Como se diz em francês, tínhamos acabado de fracassar o (aterrador) abajur africano. Poderíamos ter picotado o sofá, alagado a sala, tocado fogo na casa. Mas não podíamos devolver a peça de estimação do Monsieur Thésée naquele estado.
Sacudi o abajur, numa tentativa de reanimá-lo. Mas foi em vão. O corpo ainda estava inteiro, mas a sua cabeça, ou a tela, tinha voado longe. Um fim digno, é verdade. Mas difícil de explicar ao proprietário do apartamento.
- Putain! Que vamos fazer?
- Encaixa.
- Não dá.
- Cola.
- Não vai funcionar.
- Esconde.
- Hã?
- Esconde, até a gente pensar em alguma coisa.
- Mas onde?
- No fundo do armário da sala. Lá no fundão mesmo.
Dias depois, o Monsieur Thésée passou para buscar o (horrendo) abajur africano. E nos ligou mais tarde.
- Daniel.
- Oui.
- Passei lá na casa pra buscar o abajur.
- Ah bon?
- Estranho. Só achei o corpo dele. Onde está o resto?
- Estava meio solto. Guardei.
- Depois você me passa, tá?
- Bien sûr.
Daqui a alguns dias ele vem pegar o que sobrou do (tenebroso) abajur africano. E eu não tenho idéia do que vou dizer. Alguém aí tem uma sugestão?
Há 11 horas