O riad, espécie de casa tradicional marroquina com um enorme pátio no meio, onde fiquei em Marrakech tinha dois andares e era colado em uma mesquita. Quem já visitou um país árabe sabe que cinco vezes por dia um sacerdote vai ao microfone e faz a chamada para a oração, lembrando que é o momento de rezar para Alá. As caixas de som estão sempre fora dos templos, para que todos por perto ouçam a convocação.
Chegamos a Marrakech pela manhã, e ao meio dia em ponto um cântico religioso invadiu a casa.
- Que é isso, o Roberto Carlos marroquino?
- Não, o almuadem.
- Mulher de quem?
- O almuadem, a pessoa encarregada de anunciar o momento das cinco preces diárias.
Outra coisa que eu não sabia era que uma dessas preces acontecia às cinco da manhã. Descobri quando fui acordado no susto pelo sujeito soltando a voz praticamente no meu ouvido.
- Vixe, Maomé veio me buscar!
- Pára de escândalo, Daniel, é só o almuadem. É a hora da primeira oração do dia.
- Mas nem Alá tá acordado numa hora dessas, ele não vai escutar.
Passado o impacto inicial, acabei me habituando ao ritual muçulmano e comecei até a gostar muito da voz do tipo. Fui perguntar para a Aziza, a faxineira do riad, o que significava aquele chamado.
- Começa com “Allah hu Akbah”, Deus é grande.
- E depois?
- Depois ele fala um monte de coisas, que, resumindo, querem dizer “Allah là haut”, Deus lá em cima.
- Alá la ô?
- Isso.
- Mas que calor?
- Hã?
- Nada.
Empolgado com a iniciação a essa cultura completamente diferente da minha, resolvi filmar o cântico de cima da varanda do riad, de onde havia uma vista frontal para a salinha a partir da qual o cidadão fazia o anúncio.
- Melhor perguntar para o almuadem antes, para não ofender Allah.
- Que nada, Alá já é brother.
Engano meu. Pra ser íntimo de Alá é necessário um pouco mais de disciplina do que com os deuses ocidentais. Não é só chegar, colocar o pé na mesa, tirar a roupa e abrir uma garrafa de vinho, como era na Grécia antiga. Na cultura árabe essas minhas gracinhas não são muito bem vistas.
A prova é que a minha punição foi imediata: enquanto procurava um bom lugar para esconder a câmera, não percebi que a varanda estava cheia de cactos. A minha histórica falta de jeito, misturada à má educação com Alá, cuidou para que eu esbarrasse em um.
- Ah la la la la!
- Converteu-se ao islamismo, Daniel?
- Não, encostei num cacto. Tô mais espetado que boneco de vodu.
Sentei no sofá e passei algumas horas tentando arrancar as dezenas de espinhos, um por um. Quando já conseguia me mexer, resolvi dar um passeio pra esfriar a cabeça.
- Vamos à praça Jemâa el Fna, respirar um pouco. Ai.
- Vamos.
- Esse Alá me paga. Amanhã vou filmar de novo, agora já sei onde estão os cactos.
- Olha lá...
Na enorme praça, bem no centro da cidade, camelôs misturavam-se a domadores de macacos, a lojas de temperos e chás mágicos, a vendedores de roupas e de toda sorte de produtos, a barraquinhas de suco e a todo tipo de comércio e de atrações, que incluem encantadores de serpentes.
Eu detesto cobra, mas mesmo assim me aproximei um pouco para ver esses malucos que ficam tocando flauta em frente a quatro ou cinco najas. “Não é possível que de vez em quando um bicho desses não acorde do feitiço pra dar uma dentada nesses caras”, pensei, calculando a melhor medida entre chegar um pouco mais perto e conservar uma distância segura.
Nisso, senti alguém me cutucar por trás. Quando virei, um dos assistentes do – vamos chamar assim – espetáculo sapecou uma cobra em torno do meu pescoço. Paralisado de pânico, só conseguia mexer a ponta dos lábios.
- Ia ea oa ai.
- Pardon?
- Tira essa cobra daqui.
- Ah, ela é boazinha. Quer que faça uma foto de vocês dois? Vocês ficam lindos juntos. Custa só dez dihrams. Sorria!
- Eu quero que essa cobra suma daqui agora, com você junto.
- Ih, ó o cara. Vem, Sophie, vamos encontrar alguém mais gentil.
Nos últimos dias de Marrakech deixei a barba crescer e sapequei um chapéu marroquino, pra ficar parecido com um local e me esconder um pouco de Alá, que ele não tava pra brincadeira.
Chegamos a Marrakech pela manhã, e ao meio dia em ponto um cântico religioso invadiu a casa.
- Que é isso, o Roberto Carlos marroquino?
- Não, o almuadem.
- Mulher de quem?
- O almuadem, a pessoa encarregada de anunciar o momento das cinco preces diárias.
Outra coisa que eu não sabia era que uma dessas preces acontecia às cinco da manhã. Descobri quando fui acordado no susto pelo sujeito soltando a voz praticamente no meu ouvido.
- Vixe, Maomé veio me buscar!
- Pára de escândalo, Daniel, é só o almuadem. É a hora da primeira oração do dia.
- Mas nem Alá tá acordado numa hora dessas, ele não vai escutar.
Passado o impacto inicial, acabei me habituando ao ritual muçulmano e comecei até a gostar muito da voz do tipo. Fui perguntar para a Aziza, a faxineira do riad, o que significava aquele chamado.
- Começa com “Allah hu Akbah”, Deus é grande.
- E depois?
- Depois ele fala um monte de coisas, que, resumindo, querem dizer “Allah là haut”, Deus lá em cima.
- Alá la ô?
- Isso.
- Mas que calor?
- Hã?
- Nada.
Empolgado com a iniciação a essa cultura completamente diferente da minha, resolvi filmar o cântico de cima da varanda do riad, de onde havia uma vista frontal para a salinha a partir da qual o cidadão fazia o anúncio.
- Melhor perguntar para o almuadem antes, para não ofender Allah.
- Que nada, Alá já é brother.
Engano meu. Pra ser íntimo de Alá é necessário um pouco mais de disciplina do que com os deuses ocidentais. Não é só chegar, colocar o pé na mesa, tirar a roupa e abrir uma garrafa de vinho, como era na Grécia antiga. Na cultura árabe essas minhas gracinhas não são muito bem vistas.
A prova é que a minha punição foi imediata: enquanto procurava um bom lugar para esconder a câmera, não percebi que a varanda estava cheia de cactos. A minha histórica falta de jeito, misturada à má educação com Alá, cuidou para que eu esbarrasse em um.
- Ah la la la la!
- Converteu-se ao islamismo, Daniel?
- Não, encostei num cacto. Tô mais espetado que boneco de vodu.
Sentei no sofá e passei algumas horas tentando arrancar as dezenas de espinhos, um por um. Quando já conseguia me mexer, resolvi dar um passeio pra esfriar a cabeça.
- Vamos à praça Jemâa el Fna, respirar um pouco. Ai.
- Vamos.
- Esse Alá me paga. Amanhã vou filmar de novo, agora já sei onde estão os cactos.
- Olha lá...
Na enorme praça, bem no centro da cidade, camelôs misturavam-se a domadores de macacos, a lojas de temperos e chás mágicos, a vendedores de roupas e de toda sorte de produtos, a barraquinhas de suco e a todo tipo de comércio e de atrações, que incluem encantadores de serpentes.
Eu detesto cobra, mas mesmo assim me aproximei um pouco para ver esses malucos que ficam tocando flauta em frente a quatro ou cinco najas. “Não é possível que de vez em quando um bicho desses não acorde do feitiço pra dar uma dentada nesses caras”, pensei, calculando a melhor medida entre chegar um pouco mais perto e conservar uma distância segura.
Nisso, senti alguém me cutucar por trás. Quando virei, um dos assistentes do – vamos chamar assim – espetáculo sapecou uma cobra em torno do meu pescoço. Paralisado de pânico, só conseguia mexer a ponta dos lábios.
- Ia ea oa ai.
- Pardon?
- Tira essa cobra daqui.
- Ah, ela é boazinha. Quer que faça uma foto de vocês dois? Vocês ficam lindos juntos. Custa só dez dihrams. Sorria!
- Eu quero que essa cobra suma daqui agora, com você junto.
- Ih, ó o cara. Vem, Sophie, vamos encontrar alguém mais gentil.
Nos últimos dias de Marrakech deixei a barba crescer e sapequei um chapéu marroquino, pra ficar parecido com um local e me esconder um pouco de Alá, que ele não tava pra brincadeira.
3 comentários:
Mon pote! Que blog excelente!
Tá de parabéns, de verdade: fui a Paris e voltei, lendo teus textos, rapaz.
Sucesso!
sempre dou umas gargalhadas por aqui... rss
Adorei esse teu relato de viagem, eu q nunca fui pra lá, me senti no Oriente Médio!
vc é ótimo!
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