Há um dia
sexta-feira, 13 de maio de 2011
A caixinha de música de André Bissonnet
Foi por acaso que descobri a pequena loja de instrumentos musicais antigos de André Bissonnet, localizada pertinho da place des Vosges, na rue du Pas de la Mule. O que primeiro chamou minha atenção foi um velho mandolim, cujo corpo finalizava perto do braço em uma espécie de rococó. Intrigado, parei pra observar melhor a vitrine e fiquei ali uns bons minutos, fascinado com aquelas relíquias que nunca havia visto, como um violino fundido com um trompete ou uma estranha espécie de cello, chamada cécilium.
“Nada disso deve funcionar”, pensei comigo mesmo, até a porta da loja se abrir e permitir chegar aos meus ouvidos um som que remetia a um outro tempo. Entrei e me espantei ao ver que um senhor com seus 60 e poucos anos tocava um cravo do século XVIII, tão conservado que parecia ter sido fabricado uma semana antes. Eu olhava aquele acervo com muita curiosidade, mas não ousava encostar em objetos aparentemente tão preciosos.
- Pode mexer, se quiser, disse sorrindo o senhor. Arrisquei pressionar o dó mais grave e depois o mais agudo, só pra sentir como é dedilhar uma peça tão antiga.
- Parece afinado, falei.
- Não parece, ele está. Os instrumentos daqui estão sempre afinados.
- É você quem afina?
- Sim, eu sei tocar um pouquinho cada um deles.
Fixei meu olhar incrédulo em uma harpa escondida num canto, meio lançando um desafio. Ele puxou-a para si e dela fez sair uma bela melodia. Depois encorajou-me a tentar o mesmo. Satisfiz-me em passar a mão lentamente pelas cordas, mais uma vez apenas pelo prazer de dedilhar uma obra de arte. Agradeci ao simpático senhor e continuei minha caminhada pelo Marais.
Depois desse dia, passei a voltar à loja com uma certa periodicidade, fosse pelo prazer de entrar ali e escutar sons tão diferentes quanto belos, fosse para mostrar aquelas preciosidades aos amigos e parentes. A visita àquele templo era inevitavelmente acompanhada de um pensamento: “E quando ele decidir se aposentar, quem vai cuidar disso tudo?”.
Na última segunda-feira levei meus pais para conhecerem o lugar. Entre as dezenas de violões, alaúdes, pianos, flautas e gaitas, notei que havia uma nova peça.
- E isso, o que é?
- Uma cítara indiana. Mas não uma tradicional. Essa fica deitada no chão e só tem seis cordas, de metal.
- Quanto custa?
- Duzentos e cinquenta, mas faço por duzentos.
- Tá em liquidação?, brinquei.
- É que sexta-feira fecho a loja.
- Vai reformar?
- Não, vou entregar o ponto. Essa semana é a última. Estou aqui há 42 anos e acho que chegou a hora de dar uma descansada.
Fiquei sem palavras. Minha vontade era pedir para ele tocar todos aqueles instrumentos que ainda não havia escutado. Não, era comprar aquela loja com tudo o que tinha dentro. Não, não, meu real desejo era que ele continuasse sempre por ali, envelhecendo e melhorando, como aquelas preciosidades das quais cuidou tão bem durante as últimas quatro décadas.
Sem saber o que fazer, pedi para ele me mostrar o tal mandolim que me fez parar por ali pela primeira vez. Ele tirou-o da vitrine e começou a tocar e cantar O Sole Mio, entremeando a história do instrumento e a letra da música.
Despedi-me pela última vez do incrível universo de André Bissonnet, desejando-lhe boa sorte no novo caminho.
- C’est la vie, mon ami, c’est la vie!, respondeu, sorrindo e cantando.
Ao virar a esquina ainda dava pra escutar a música, ao longe.
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9 comentários:
Daniel, você contou muito bem o universo de André Bissonnet. A mim, nos breves momentos da visita ao seu "santuário", impressionou também a expressão de felicidade com que ele tocava, os sorrisos com que harmonizava e cantava o Sole Mio. Obrigado por nos levar até lá.
Dani, foi muito lindo entrar naquela loja
tão pequena e tão cheia de preciosidades.
Confesso que fiquei tentada a comprar o tal mandolim, mas eram muitos euros...
É uma pena que as pessoas tem que abandonar seus postos, principalmente quando elas se misturam com as coisas que fazem como é o caso de André Bissonnet. Ele, seus instrumentos e a loja, tudo uma coisa só.
Um beijo,
Mami
Post emocionante. Juro que chorei ao ler..queria abraçar o velhinho..Que ele continue encantando pessoas por onde quer que ele vá. Boa sorte a ele, a loja e aos instrumentos.
Il est beau celui-ci, vraiment.
Mais t'es un vrai enculé de ne m'avoir jamais parlé de cette boutique.
Grande abraço.
Obrigada, foi lindo ler esse texto…
Adorei! Lindo texto.
Que o Sole mio ilumine muitas lembranças musicais suas e de seus leitores! Lindo texto! Bjos.
Como queria conhecer um lugar assim.. fiquei triste pelo Monsieur Bissonnet...
Seu blog é muito interessante!! sempre o acompanho.
Daniel, fiquei emocionada e arrepiada lendo teu texto, e tomei a liberdade de partilhá-lo no mural do facebook... Desde ontem, quando descobri que a mágica loja do fantástico francês André Bissonnet havia fechado, estou tocada, meio triste, com a notícia. Estive lá uma única vez, em set/2010, e fiquei fascinada, tanto com a variedade e raridade dos instrumentos musicais antigos, quanto com a simpatia, doçura e carisma de André. Sonhava em voltar lá, mais alguma vez... E agora, sabendo que sua linda loja fechou, fico me perguntando se ele está bem, e o que terá feito com todos aqueles tesouros: será que conseguiu liquidar quase tudo? Terá levado uma parte de suas relíquias musicais para algum refúgio secreto e sagrado onde passará o resto de seus dias, tocando, cantando e encantando quem tiver o privilégio de sua companhia?... Se souberes por onde anda o mágico André, diga-me algo, pois, se eu voltar à França qualquer dia, faço questão de fazer uma visita a este mago musical! Abraços alados!
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