Há fatos que nos marcam para todo o sempre, como o primeiro beijo, a aprovação no vestibular e a chegada de um... lava-louças. No caso do último, a vida já começa a mudar na antevéspera do prometido dia "D".
- O que você está fazendo?
- Vou lavar esses pratos e copos do jantar.
- Nem pense nisso! O lava-louças vai ser entregue depois de amanhã.
- Mas esse tanto de coisa acumulada não vai entrar.
- Faremos duas sessões, então. Temos que dar trabalho pra ele.
Nem pensei mais nisso. Deixei a louça suja na pia sem mesmo a organizar, já que em pouco tempo, impiedosamente, ela seria arremessada (a louça, não a pia) ao seu novo destino mecânico. A única dificuldade agora seria escolher o programa de lavagem mais adequado, entre as tantas opções possíveis.
Dois dias depois, quase todos os copos e pratos estavam devidamente sujos, esperando a grand premiére, o momento no qual eu apertaria o botão "on". O botão para ligar a máquina e me desligar definitivamente do mundo cíclico detergente-esponja-esfregação.
Profundamente imerso nesse pensamento, levei um susto quando o interfone tocou. Os entregadores incrivelmente chegaram na hora marcada, certamente um fato inédito em todo o mundo. E antes de abrir a porta lanço um olhar e um leve sorriso para a louça acumulada. Em breve você estará brilhando, pensei.
- Quer que instale?
- Não precisa. Ainda preciso trocar uma tomada para poder ligá-lo.
- Ok. Bonne journée.
- Bonne journée.
Acontece que as cozinhas em Paris são milimétricas. Aqui, para as coisas poderem caber, tudo precisa "être aux normes", estar nas normas. Só que as normas não são tão normativas assim, pois estão completamente diferente do que eram anos atrás.
Então o lava-louças obviamente não coube no espaço reservado para ele, por coisa de um centímetro na largura. E, como não havia onde colocá-lo, o trambolho ficou prostrado no meio da cozinha, reduzindo o espaço livre à área de um guardanapo (fechado) e obrigando-nos a uma ginástica para poder alcançar qualquer coisa nos armários. E a um semi-malabarismo se quiséssemos usar o fogão.
Ligamos na loja e eles prometeram passar para buscá-lo dali a alguns dias. Por não terem o modelo menor, com menos capacidade mas dessa vez nas dimensões adequadas ao nosso apertamento (é a última vez que uso a piada do apertamento, juro!), compramos um novo em outro lugar. Entrega prevista para uma semana depois. Uma semana! Deu quase pra sentir saudades das Casas Bahia e sua "dedicação total a você".
Nesse período, a cozinha virou a Faixa de Gaza. Entrada por conta e risco próprios. E sempre com a possibilidade de uma bomba em forma de tigela de vidro cair por perto. Os pratos estando todos sujos, passamos para os de sopa, que logo acabaram também. E começamos a analisar com muito carinho a hipótese de não comermos mais - jejum é bacana, saca? - pois a possibilidade de se lavar qualquer coisa ali era remota, muito remota. Aquilo parecia uma instalação, com panelas, copos e talheres se equilibrando de maneira mágica. E como toque extra ainda havia os restos de molho de tomate, de arroz e de outras coisas já indecifráveis. Marcel Duchamp, artista francês que apresentou um mictório como obra de arte, assinaria embaixo com orgulho.
No dia previsto para a chegada do salvador da pátria e da pia, como era previsível, ele não chegou. No dia seguinte também não. Na loja, disseram que "de amanhã de manhã não passa". Passou. E antes que a cozinha ficasse para todo o sempre impassável, impregnei-me de coragem e decidi enfrentar aquela montanha.
A batalha foi dura e longa. Uma vasilha cheia de restos de lasanha desafiou-me durante intermináveis minutos. Mas eu estava decidido a dar cabo daquela situação. Tempos e tubos de detergente depois, exausto mas satisfeito pela minha vitória, sentei no sofá para descansar, decidido a cancelar a compra desse objeto maligno de uma vez por todas. Nesse instante o interfone toca.
- Quem é?
- Os entregadores do lava-louças.
Mandei subir, com planos de testar o aparelho na mesma hora. Como não havia mais nada a lavar, a idéia era colocar os dois lá dentro, mesmo que não estivessem "aux normes".
Há um dia
13 comentários:
Quando morei só pela primeira vez, apelidei minha cozinha de Pequena Sarajevo, hehehe.
Pra variar, ótima crônica!
Abs
Nossa...lembrei vividamente da cozinha do Mangue....meu deus!Aqueles fungos que nasciam da pia do Cris e do Léo...e a gente ainda comia lá!
Chéri, aqui no Brasil um mês de salário da Maria José já compra uma máquina de lavar louça, mas nem de longe promove a mesma emoção. Aliás, a máquina que temos em casa há muito observa, literalmente paralisada, a dita cuja em seu ofício primitivo e sua sanha destrutiva de pratos, copos e pirex. Mas como é bom o Terceiro Mundo das Marias da periferia.
Oi Dani, enfim a máquina de lavar chegou. Espero que vocês usem bastante, pois a nossa está encostada.Com certeza ontem no almoço que fizemos para as meninas (aniversário)aqui em casa, ela trabalharia bastante e não quebraria copos conforme aconteceu com a ajuda da Maria.
Beijos, Mami
Esqueci:
Feliz dia das crianças!!!
Mais beijos, Mami
Oiiiiiiiiiiii!
Poxa! Que batalha!!
Não temos máquina aqui, as máquinas somos nós mesmos, Cassio e eu!
E louça é uma coisa que dá cria, já reparou?? Já, né?!
Minha política é a seguinte: Usou, lavou! Mas você sabe como são as políticas nessas horas... Olhamos para a louça, ainda pequena, avaliamos e por fim dizemos com muita desfaçatez: Ahh tá pequena ainda! Amanhã eu lavo, sem problemas! Tá facinha!
Daí, do dia pra noite, quase que como mágica, ela dá cria!
Complicado...
Muitos beijos!
Saudades
Flávia
Lavar louças... uma tarefa para poucos. Para enxugar então... não conte comigo!
Fala sério, Daniel!!! kkkkkk Olha esse meu post http://claraemneve.blogspot.com/2008/10/loua-suja-se-lava-em-casa-mas-ela-seca.html
adorei!!!!
Daniel, sua cozinha é tão grande que cabe uma lava louças ? UAU !! Na minha, so tem espaço pra uma pessoa ... e olha la !
beijos !
Brigar com a gente pra não lavar a louça quando tem máquina que o faça é a cara da sua digníssima. :) Beijos pros dois. Pra máquina não mando, pois ainda não fiquei íntima.
Muito bom esse post... amei...
De vez enquanto dou uma lida nos teus post's, apesar de nem te conhecer e saber o pq encontrei teu blog, acho q foi o acaso num dia em que procurava alguma outra coisa, então gostei e coloquei nos favoritos e qdo dá um tempinho venho e leio, acho maravilhosos todos eles...
Acho que a civilização só começa após a invenção da lava-louças.
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