Domingo de manhã. Bom, "de manhã" é só força de expressão, pois já devia ser quase meio-dia. Saí do prédio. Dei como sempre um alô pro Omar, dono do bar da frente. Ele retribuiu, como sempre. Edith, que não trabalha com ele mas vive dando uma força, escrevia o menu do dia: cuscuz marroquino. Na varanda do bar, um grupo se esforçava para tocar clássicos do rock apenas com instrumentos de sopro e bateria. Massacraram Smoke On The Water e Born To Be Wild, mas saíram-se um pouco melhor em Billie Jean, principalmente quando o saxofonista tentou fazer aquela andada pra trás do Michael Jackson e quase derrubou uma velhinha desavisada que passava. Deixei um euro no chapéu, mais pela performance cênica do que pela musical.
Vinda da padaria, Edith chegou ao meu lado carregada de baguetes. Ela está em tanto lugar ao mesmo tempo que eu seria capaz de jurar que tem umas duas ou três irmãs gêmeas. Disse que estava super apressada e não podia conversar muito, mas não conseguiu ir embora antes de uns bons 20 minutos de papo. Falou do vizinho que jogou uma bacia de gordura quente pela janela, de um jantar em comemoração aos 40 anos de maio de 68, das cadeiras que comprou numa loja e vieram com defeito e da meteorologia dos próximos dias. "Separa o guarda-chuva, vai chover muito". Anotei o conselho.
Fui subindo a Rue d'Aligre, desviando das pessoas. No fim de semana tem o dobro de gente. Talvez o triplo. Entrei na fila do fromager, o vendedor de queijos. Um cheiro forte surgiu do nada, e achei que o sujeito na minha frente talvez precisasse ir ao banheiro. Olhei pra ele, incomodado com a suposta falta de educação. Mas o mistério foi resolvido quando a atendente entregou um pacote com um gordo pedaço de camembert a uma senhora que passeava com o seu exemplar canino ao lado. Foram os três, a senhora, o cachorro e o camembert, feder longe dali.
Mais na frente, um feirante tentou me empurrar uma abóbora já meio velha. Um outro ofereceu tomates orgânicos. Desviei do sujeito que vende pêssegos espanhóis. São boas suas frutas, mas ele não deixa a gente escolher. Compro ao lado, e faço questão que ele veja. Confesso que agora, escrevendo sobre isso, acho uma atitude meio idiota. Mas vou agir da mesma maneira quando for lá de novo, tenho certeza. Perto tem o chato da banana, que grita "banana" o dia inteiro, das mais variadas maneiras. Faz poesias com o nome da fruta, canta usando uma como microfone, grita fino, grita grosso e até sapateia. Tudo pra vender bananas. Eu o elegi como uma variante francesa do cara do abacaxi da praia de Ipanema, um dos mais conhecidos chatos do Rio de Janeiro.
Tem uma pedinte que todo dia me aborda. Já me disseram que ela rouba carteiras dos mais desavisados. Não sei se é verdade, mas ao passar por ela sempre confiro os bolsos. Nesse dia senti falta de 10 euros e quase voltei pra falar com ela, mas aí lembrei-me que tinha gasto em cerveja na noite anterior, o que explicava também a minha dor de cabeça. Por auto-penitência, resolvi dar uma esmola dessa vez. Pensei em 50 centavos, mas a primeira moeda que veio era de 10. Tava bom.
A descabelada da salada estava no seu posto, acompanhada pela mãe, que também parece não ver um pente há algumas décadas. As duas contrastam enormemente com as alfaces e rúculas impecáveis que oferecem aos clientes. Um pouco mais à frente, outra dupla mãe-e-filha vendia flores. Um dia desses peguei uma discussão braba entre as duas, sobre o tamanho máximo que uma samambaia atinge.
Passei ainda no vendedor de café. Ele tem cafés do mundo inteiro: da Índia, do Brasil, da Colômbia, da Guatemala, da Itália. Cada vez eu compro um diferente, moído na hora. Dizem que café é bom para a memória. Mas no caso dele eu tenho minhas dúvidas, pois vou lá toda semana e ele parece nunca se lembrar de mim. Ou talvez finja, pois sempre chego com um pacote de atum ou salmão, comprado na peixaria ao lado. E café e peixe não fazem lá a melhor combinação, principalmente para os negócios do rapaz, imagino. Fim da feira, meia-volta.
No caminho pra casa, um velho tocava "Chorando Se Foi" no realejo. Essa mesma que você está pensando. O hino da lambada, que virou música de brinquedo de criança na França e buzina de ônibus no Senegal. Eu vi. Ou melhor, ouvi. Ao seu lado, a polícia municipal observava o movimento, enquanto militantes de esquerda distribuíam panfletos de mais uma manifestação anti-Sarkozy. Com a ajuda da Edith, claro.
Há 17 horas
10 comentários:
Dani, que saudade! Já vi essa cena e morri de rir aqui relembrando....
Beijos pra você, Charlotte, e, claro, pra Edith!
Gosto muito de seus textos e, especialmente, de seu humor. Parabens!
Muito bom, Daniels!!
Do fedor à lambada (Meu Pai Eterno!), essa me assustou um pouco, pois me lembrei do Beethoven e sua Pour Elise, que também toca em tudo que é aparato eletrônico por aqui, carro de gas, brinquedos... Que coisa, não? Bizarro!!
Mas vá... é bem divertido estar aí e ver essas coisas todas, embora excêntricas, exóticas e às vezes escalafobéticas!
Mas não vá ficar muito francês hein, praguejando por aí! hauhauahuahauhaua
Beijos em você, na Char e por que não, na maravilhosa Edith!
Flor do México
a cerveja da ressaca era do china?
lenddo seus textos me dá uma vontade de conhecer a Edith... sério! hehe
Dani, os caras que vendem queijo fedorento deveriam ficar escondidos num cantinho, como em Tel Aviv, afi! Adorei o texto!
Luhu
Obs. Fala pra Edith que o povo daqui já virou fã dela
Apareci aqui por acaso, mas gostei tanto do seu jeito de escrever, que volto sempre...parece que estou andando pela rua , sentindo até o cheiro do camembert!
Marisa
...seu texto é tão bom que até senti o "cheiro" do camembert ... hehehehe Perfeita comparação de odores!!!!
A Edith é mesmo hors concours no quesito popularidade. Ela devia se candidatar a síndica do prédio, prefeita do bairro, dona da rua, sei lá. Eu 'votava nela'! ;o)
Ai, que saudade dessa feira! É mesmo um prato cheio para suas histórias.
Beijos para você e Charlotte. Saudades desse casal. :***
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