
Quando você muda de país, as coisas mais simples podem ficar muito complicadas. Cortar o cabelo, por exemplo. Aqui perto de casa tem salões com preços exorbitantes. E, olhando bem as figuras que trabalham ali, não dá muita coragem de encarar não.
Andando em Montmartre, com a juba pra lá de rebelde, avistei um lugar simpático. Por simpático, entenda-se, sobretudo, barato. E o nome colaborava. Paris Coiffure é pra lá de chique.
Ainda meio desconfiado, passei uma vez pela porta. Dei uma olhada de rabo de olho. Passei de novo. Avistei um cliente sentado, a tesoura dançando por suas madeixas. Eu olhava com um certo medo, mas ele parecia muito feliz.
Em todos os meus anos de vida, devo ter ido a uns 5 cabeleireiros diferentes. Não era fácil entrar ali. Mas olhei no espelho e, como um Narciso ao contrário, aceitei o fato: a coisa tava feia. Respirei fundo e atravessei o salão.
- Bonjour monsieur.
- Bonjour. Vim cortar o cabelo.
Ora, é claro que eu tinha ido cortar o cabelo. O que mais se faz em um cabeleireiro?
Esperei minha vez. Sentei, semi-apavorado, e fechei os olhos. Mas resolvi abrir pra ajudar o artesão capilar.
- Um pouco mais ali. Um pouco menos aqui. Aí deixa. Tá ok. Pode parar.
Fiquei impressionado. Ele acertou o corte, de primeira. Saí feliz com o resultado, com as melenas ao vento.
Depois de quase dois meses, precisei voltar lá. Mas só pra tirar um pouco do volume. Cheguei, hora do almoço, e o sujeito que me atendeu da outra vez não estava.
- Ele volta em 30 minutos.
Saí. Tomei um café. Voltei. Ele já tinha chegado.
- Como vai, meu amigo? Quanto tempo, hein?
Não era possível que se lembrasse de mim. Só tinha ido lá uma vez. Achando que era papo-furado, respondi normalmente.
- Ça va, ça va.
- E o Brasil? E Brasília?
Ele se lembrava mesmo. Até da minha cidade.
- Vai bem.
- Ah, eu amo o Brasil. Aquele time de 70 era incrível.
- É verdade.
- Mas tem a violência, né? Você viu o que houve na favela?
- Vi sim.
Aí embalamos no assunto. Aquela conversa amena de cabeleireiro. E, relaxado e confiante, distraí da penugem. Quanto me dei conta, pânico total! Tava mais esburacada que estrada brasileira.
- Monsieur, acho que aconteceu algo estranho aí.
- Ah bon?
- Não era bem assim que eu tinha imaginado.
O jeito era tentar remediar.
- Faz o seguinte. Passa a tesoura com gosto. Corta bem curto.
- D'accord mon ami.
Fiquei meio desolado, mas não dava pra colar de volta. O escultor de pêlos continuou falando sobre o Brasil.
- Como se diz "cheveux" em português? Deu uma última tesourada.
- Cabelo.
- Cabelô. E pegou a navalha pra raspar a nuca.
Nisso, passou a lâmina com tanta força que senti que ia me degolar.
- E coiffeur?
Pescoço em brasa, analisei o estrago que ele tinha feito.
- Pode ser cabeleireiro. Mas no seu caso acho melhor barbeiro.
- Barbeirô...
- Barbeiro também é quem não dirige muito bem, sabe? E quem não é muito perito.
- Engraçado. Sabe, eu nem tenho carro.
- Ah, nem se preocupe, você já é bom no negócio, respondi em português.