Em uma madrugada de verão, o velho poeta sai de casa caminhando sem destino. Moleskine no bolso, pro caso de pintar uma inspiração, não tarda se encontrar ao largo do canal Saint-Martin.
Ele observa as pontes de pedestres e hesita um pouco antes de subir em uma delas. Ao chegar no ponto mais alto, para e contempla as águas passarem embaixo, sem pressa. Fecha um pouco os olhos, tentando focalizar a visão, à procura de peixes. Mas tudo o que vê são copos plásticos boiando, sinal de que alguém deve ter se divertido não muito longe dali, não muito tempo antes.
Desce da ponte e continua sua peregrinação, dessa vez na outra margem, mais boêmia. Observa os jovens falando alto, taças de vinho na mão, flertando, e se lembra que um dia já fez o mesmo.
Senta-se em um banco e os observa, saca o moleskine e rabisca palavras soltas, como “paixão”, “vontade”, “beleza”, “alegria”, “descoberta” e “leveza”. Tenta fazer algo com elas, mas não sabe o quê. Daquelas palavras ele sabe muito bem a definição do dicionário, mas já há algum tempo não consegue enxergá-las no próprio ser.
Tenta um soneto, que não sai, pois não o sente. Passa para um haikai, mas ser sintético nunca foi uma de suas qualidades. Ensaia um acróstico, e se lembra que detesta acrósticos, por julgar ser uma forma fácil de escrita. “Uma poesia menor, mesmo que a palavra escolhida seja grande”, sempre dizia, com sua peculiar ironia.
Ainda sentado, desmonta sua caneta tinteiro, arrebenta a carga e a despeja inteira nas páginas quase virgens do pequeno caderno. Não o faz de forma displicente, muito pelo contrário, toma cuidado de inutilizar para sempre aquelas folhas. Joga tudo no canal, a caneta inclusive, compra uma cerveja numa épicerie e continua, como um zumbi, a perambular.
Pouco depois, chega ao bassin de la Villette, lotado, e procura um canto mais escondido para se refugiar com suas angústias e seus fantasmas. Pega uma pedra qualquer e joga nas águas paradas. Ela ricocheteia, descreve um breve arco, ricocheteia novamente e afunda de vez. Surpreso, procura uma outra pedra, mais achatada, e lança novamente. Esta repete a trajetória da anterior, porém quica quatro vezes antes de submergir para sempre.
Entregue à atividade, só percebe que o tempo passou quando os primeiros raios de sol anunciam a chegada de um novo dia.
Lentamente, retoma o rumo de casa. No meio do caminho, para na mesma épicerie e negocia com o proprietário que este lhe venda sua caneta esferográfica, que de tão gasta lhe é dada como presente.
Ao chegar ao lar, antes de dormir, o velho poeta pega um pedaço de papel e desafoga:
"Sonhos ruins findos:
Com pedrinhas e água
fiz arcos lindos"
Há 20 horas
4 comentários:
Aí, que texto mais lindo!
Flávia Durante
Muito triste, mas bonito e bem escrito.
Bjs,
Mami
inspirado está o blogueiro!
Não sabia que, além de cronista, você também era poeta. Parabéns!
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