Uma hora ou outra alguém acaba tocando no assunto "qual o melhor prato que você já comeu?". E nessa mesma hora ou outra sempre aparece um engraçadinho que responde "o prato eu não comi, só a comida que veio nele". A vontade de aplicar uma bifa no pé do ouvido do distinto só não é maior do que a de falar da felicidade em forma gastronômica a mim servida - ou melhor, revelada, pois um prato assim só se encontra uma vez na vida - na minha primeira passagem por Roma, em 2006.
Dividindo um quarto de albergue e muitos roncos com uma turma de neo-zelandeses, um deles sugeriu jantarmos todos no Trastevere. O Trastevere é um bairro afastado da parte turística da cidade, do outro lado do rio responsável por banhar a capital italiana, o Tevere. E o local onde habitam os romanos tradicionais, segundo os romanos supostamente tradicionais que habitam por lá. Os moradores da parte histórica da cidade seriam por eles classificados como cidadãos semi-inferiores, juntamente com os indianos donos dos cyber cafés e os paquistaneses vendedores de camisetas "I Love Coliseu".
Fomos, então, e escolhemos um restaurante a esmo, depois de andarmos alguns minutos pelo simpático bairro. O único critério, estabelecido pelas meninas do grupo, era simplório: queriam um lugar com toalhas quadriculadas de vermelho e branco, como em uma cantina italiana. Não foi difícil encontrarmos um do agrado geral.
Quando viajo, procuro provar o que nunca comi antes. O risoto com melão e pimenta daquele cardápio parecia exótico, e talvez por isso mesmo tenha sido minha escolha. As meninas dividiram uma pizza. E o namorado de uma delas, decepcionado de escutar da garçonete que macarrão com catchup e maionese não era especialidade da casa, contentou-se com um espaguete à bolonhesa.
O prato chegou à mesa - "o prato sozinho ou o prato e a comida?", diria o babaca supracitado -, e eu confesso ter passado um minuto apenas apreciando o cheiro exalado. O sujeito do catchup preparava-se para picotar seu espaguete, cortá-lo impiedosamente em pedaços, mas foi impedido a tempo pela namorada. "É quase um crime aqui", disse ela, acertando na intenção, mas errando no "quase". Caius Mortus, o último a cometer tal barbaridade, no século II D.C., virou sobremesa de leão.
Enquanto o cidadão aceitava o fato de ter que papar um "macarrãozinho sem graça", sem saber que sua vida acabara de ser salva, eu dava a primeira garfada do risoto. Descrevendo assim vai parecer meio aboiolado, mas a verdade é que nunca havia provado algo parecido. Uma mistura de sabores única, incrível e surpreendente (falei que iria parecer aboiolado). Saí de lá com um enorme sorriso no rosto, mesmo se o carinha do espaguete insistisse em comparar sua refeição à promoção número 4 do McDonald's, "mas sem as fritas, pra não ser injusto".
Passei anos falando desse risoto, e me prometi que, se um dia retornasse à Roma, voltaria ao mesmo restaurante e o pediria novamente. Melhor ainda seria se fosse servido pela mesma garçonete. Mas se não fosse, tudo bem mesmo assim.
Eis que a caravana dos Cariello chegou ao reino de César, e eu prontamente pirulitei-me em direção ao Trastevere e ao reencontro do famoso prato. É claro que eu, na desorganização inerente à minha pessoa, não havia anotado seu nome ou endereço, então só me restava procurar às cegas. Fui onde achava que o restaurante estava, mas não encontrei. Fui onde achava que ele não estava, e, é claro, também não encontrei. Nessa noite contentei-me com um outro risoto, com frutos do mar. Bom, mas não chegava aos pés do outro. Não satisfeito, voltei ao bairro na noite seguinte, e mais uma vez nem sinal da cantina. Nesse dia provei uma massa ao vôngole, espécie de mexilhão. Bom também, apesar de ainda aquém do meu objeto de desejo.
Como era minha última noite em Roma, e ainda me restavam quase duas semanas de viagem, lancei-me o desafio de encontrar nas minhas peripécias italianas uma especialidade local à altura do risoto com melão e pimenta. As anchovas no azeite de San Giovanni a Piro tiveram ótima cotação. A pizza margherita do Trianon, em Nápoles, está certamente entre as melhores que já provei. O risoto ao funghi de Florença decepcionou, apesar de que a lasanha do dia seguinte estava boa. As alcachofras e o fucus com molho de carne e champignons de San Gimignano surpreenderam, assim como o pequeno e belo vilarejo, localizado no alto de uma montanha e cercado de torres.
Agora, a poucos dias da volta à Paris, ainda me restam algumas tentativas. Não sei mesmo se provarei algo tão marcante como o mítico prato de 2006. Mas, durante esse caminho, uma coisa já encontrei: 5 quilos extras, testemunhas e companheiros da minha busca quase religiosa pelo risoto perdido.
Há 2 dias
6 comentários:
Daniel, quase chorei. É com os olhos marejados que escrevo esse comentário. Que triste, que triste... Sua busca pelo risoto é como ter encontrado o grande amor, mas só reconhecê-lo depois, ao perceber que nenhum outro será como aquele... tarde demais. Mas a esperança de reencontrá-lo move céus e terras... e quando se esperava viver um conto de fadas com final feliz, pumba! a tal da realidade resolve dar o ar da graça e desfaz as ilusões. Todos os outros amores serão uma busca quase inútil pela sensação do amor que se perdeu. Tristíssimo.
(Ainda bem que sou mulherzinha e posso fazer esse tipo de comentário... hehehehehe)
Não sei se já encontrei o prato-amor-da-minha-vida, mas o tal rondele de que falei no meu blog está no topo da lista, por enquanto... sabe como é, enquanto o grande amor não pinta, a gente vai se virando como pode!
Bj!
(Ah! quanto aos 5 quilos trazidos como souvenir... suba a Torre Eifel pelas escadas - têm?! - todos os dias... escada emagrece que é uma beleza!)
bicho... ainda não consegui chegar a apenas um prato melhor-de-todos-os-tempos, mas tenho alguns eternos finalistas: um frango com quiabo e angu num restaurante perto de Juiz de Fora-MG (não lembro o nome, mas ele só servia dois pratos, esse e o frango ao molho pardo, então fazia-os muito bem); o carneiro assado do Alentejo, aqui em Manaus; o quibe cru e o homus da dona Leda, que trabalha com minha mãe e que, apesar de nunca ter saído do Amazonas, os faz melhor que minha avó libanesa, a dona Blanche (que oxAlá jamais leia isso)
O conjunto matca o prato.é aquela boa mistura do lugar+momento+mais excelente comida.Confesso que fiquei surpresa com o sabor desse Rrisoto...eu poderia ter a ousadia de um dia preparar p/ vc?Claro que seria a versão xerox(ou seja..borrada da original)...quando fuia p/ Vaticano comi uma Pizza com cogumelos sensacional e nunca imaginei que uma dasa coisas mais sensacionais que comi foi no Vaticano que é lógico contra a Gula..kkk
Qual foi meu prato "sublime"?Um pequeno bombom de canela comido em Veneza...não sei aonde é a loja e na época fui seguindo pelas ruas o cheiro das sementes de cacau moidas.Graças a Deus hoje ganho minha vida cozinhando.
Rapaz, que coisa triste...
Ter que comer em vários restaurantes da Itália e depois...voltar à Paris!!!
Ôôô sofrimento...!
Amigo querido, boa sorte!!! Estou torcendo pra você ser supersurpreendido de novo! Se der certo, anota o endereço que no final do mês é a minha vez!
A cantina não existe. Foi como um filme hollywoodiano com suas noites encantadas.
Mas, oras, comer o prato novamente poderia ser deveras frustrante. A lembrança da experiência única virou mítica.
Todo momento é único.
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