sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O abajur africano

Ça y est. Estamos de mudança. Vamos continuar na rue d'Aligre, mas agora habitaremos em um apartamento colossal, uma verdadeira extravagância, quase um château para os padrões parisienses. O palácio em questão é o que por aqui se chama de deux pièces. Nada mais do que um quarto e sala, com menos de 50m2. Mas, acreditem, é um luxo. Ainda mais quando alguns dos seus amigos moram em 15m2.

O apê pertence ao Monsieur Thésée, o fiel escudeiro da Edith. Aliás, foi ela própria quem intermediou toda a negociação financeira, assegurando de forma justa o interesse das duas partes. Acredito que muito em breve a diplomacia precisará ser reinventada, seguindo o "padrão Edith". Talvez possamos chamá-la de edithocracia. Ou talvez eu deixe a escolha do nome para depois, pois a primeira tentativa é das mais infelizes.

Numa primeira vistoria do apartamento, e já sem a Edith por perto, Monsieur Thésée foi bastante flexível em relação às obras que gostaríamos de fazer. Mesmo que porventura doesse ver a antiga morada de sua tia desmantelada.

- Podemos tirar esse papel de parede verde musgo da sala?
- Oui.
- E esse outro, cheio de corações, do quarto?
- Oui.
- Podemos arrancar esse carpete de mais de 30 anos?
- Oui.
- E jogar fora essas cadeiras quebradas?
- Oui.
- E o que fazemos desse abajur horroroso?

Não dava pra saber, mas esse assunto mexia um pouco com os brios do Monsieur Thésée. E era compreensível. Afinal, aquele abajur, que eu sumariamente classifiquei de "horroroso", era uma lembrança de família. Tratava-se de um treco de quase dois metros de altura, com o corpo em madeira esculpido de cabeças e motivos africanos, e uma tela tribal, de cor indefinida, próxima ao marrom. Enfim, uma coisa medonha. Mas ainda assim parte das recordações de sua tia, que havia feito uma grande viagem à África.

- Vocês podem ficar com o que quiserem. Com o sofá, com as cadeiras, com o microondas. Com tudo, menos com o abajur africano. Esse eu quero de volta.

Separamos então o que não iríamos manter conosco. Umas coisas iríamos dar. De outras teríamos que nos livrar. E o (pavoroso) abajur africano seria devolvido gloriosamente ao Monsieur Thésée. Colocamos tudo na varanda, do lado de fora do apartamento, e fomos ao marché d'Aligre.

O tempo estava feio, e ventava muito. Por isso não demoramos na feira. Além do mais, queríamos acabar logo a triagem.

O vento continuava forte. E, ao voltar para o apartamento, ainda tive tempo de ver o (assustador) abajur africano balançar, e balançar, e balançar. Até cair de uma só vez. Cair, não. Despencar. Como um rei congolês decapitado (desculpem-me pela comparação, mas não dava pra perder a chance).

Como se diz em francês, tínhamos acabado de fracassar o (aterrador) abajur africano. Poderíamos ter picotado o sofá, alagado a sala, tocado fogo na casa. Mas não podíamos devolver a peça de estimação do Monsieur Thésée naquele estado.

Sacudi o abajur, numa tentativa de reanimá-lo. Mas foi em vão. O corpo ainda estava inteiro, mas a sua cabeça, ou a tela, tinha voado longe. Um fim digno, é verdade. Mas difícil de explicar ao proprietário do apartamento.

- Putain! Que vamos fazer?
- Encaixa.
- Não dá.
- Cola.
- Não vai funcionar.
- Esconde.
- Hã?
- Esconde, até a gente pensar em alguma coisa.
- Mas onde?
- No fundo do armário da sala. Lá no fundão mesmo.

Dias depois, o Monsieur Thésée passou para buscar o (horrendo) abajur africano. E nos ligou mais tarde.

- Daniel.
- Oui.
- Passei lá na casa pra buscar o abajur.
- Ah bon?
- Estranho. Só achei o corpo dele. Onde está o resto?
- Estava meio solto. Guardei.
- Depois você me passa, tá?
- Bien sûr.

Daqui a alguns dias ele vem pegar o que sobrou do (tenebroso) abajur africano. E eu não tenho idéia do que vou dizer. Alguém aí tem uma sugestão?

17 comentários:

Cila MacDowell disse...

ofereça sua cabeça em troca!
Compre um abajour assinado por algum designer contemporâneo pedindo desculpas e contando a verdade, ora ora...
sorte
o blog tá ótimo!
cila

Anônimo disse...

Daniel,
Sem querer ser insistente, ou mesmo impertinente, não seria melhor passar uns tempos no Brasil -- no verão tropical -- até as coisas melhorarem, esfriarem, uma solução para a cabeça do abajur aparecer, etc. etc. Além do mais, as reservas da família confiadas ao Banco Alfa estão à deriva, e afundando... Cuidar delas é um serviço sujo, mas alguém tem que fazê-lo.
Abraço preocupado de seu
Pápi

Carol disse...

Pois eu sugiro que vc jamais conte a verdade! O homem vai ficar arrasado. Que tal se vc dissesse a frase clásica: "já estava assim quando eu cheguei"? Ou talvez um comentário surpreso "gente, o abajour quebrou!"


=D

Anônimo disse...

a verdade te libertará. Acredite.

Natália Vaz disse...

Conta pra ele que algo de muito bizarro aconteceu. O abajur (literalmente) perdeu a cabeça!!!

Não, né?

Tabom, não sei. Depois de tanta flexibilidade com as reformas, acho digno algo que afague o coração desta pobre criatura. De preferência algo bem parecido com a cabeça do abajur!

Gabi Goulart Mora disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bruno Carmelo disse...

Putz, você realmente fez isso? haha Que tal falar que, segundo o Feng Shui, a parte de cima do abajur combina perfeitamente com o interior daquele armàrio cuja porta està sempre emperrada?

Ou então que é um absurdo pensar nessas coisas enquanto tem tanto africano passando fome, tantas pessoas no Congo que sequer sonham em ter um abajur... para eles, um abajur decapitado seria um presentão.

Ou então que cupulas de abajur estão fora de moda, que tua religião não permite tê-las dentro de casa (você teve que destrui-la, problema dele se ele chegou tarde demais), que seu priminho bebê/cachorro/papagaio destruiu enquanto você arrumava o quarto, que cupulas de abajur lembram sua avo morta que amava abajures e isso era insuportàvel pra você que adora sua vovozinha, que você tinha certeza que o proprio dono tinha pedido pra destruir ("fiz exatamente como o senhor pediu, està vendo? Ah, não era isso? Putz, mei francês ainda està meio ruinzinho...") ou ainda que você devolveu sim, junto do abajur. ("Se quiser, chamo a Charlotte, o Yesser, o Eloi e toda Comuna Independente de Aligre e todos vão testemunhar que eu devolvi sim, vai ser sua palavra contra a nossa").

E boa sorte.

Anônimo disse...

Mêssiê,
Pela sua descrição, o abajour parece ser muito legal.
Melhor, parecia ser...
Boa sorte!
Luma

Gabi Goulart Mora disse...

Dani, a Bahia pode te salvar. Ofereça a ele um presente afro-brasileiro, acompanhado de uma longa história sobre nossas raízes. Não substitui o original, mas pode compensá-lo pela perda. Beijos e boa sorte!

Anônimo disse...

Conte a verdade: que um temporal estava caindo, um verdadeiro dilúvio. De repente, aquela luzinha no céu, que você achou que fosse um avião, começou a aumentar de tamanho e ficar mais próxima, até que... a nava espacial aterrisou na sua sala. Eram ETs mandados pela tribo africana rival à que fez o abajour, decididos a destruir o objeto que guardava a alma do maior guerreiro africano da antigüidade. Eles te sedaram, e você não pôde fazer nada. Que pena.

Unknown disse...

Use algo já vivido em Paris e adapte: diga, entre pausas, que algo aconteceu, mas, para o próprio bem de todos é melhor que ele não saiba... caso vc seja enfático ele irá acreditar que é melhor morrer sem saber ou, já que todos iremos morrer um dia, melhor morrer depois de saber o que houve com o monstrengo; nesse caso, chame-o num cantinho, faço-o jurar que, mesmo sob tortura, ele nunca dirá que sabe ou que vc disse algo a ele... se ele até aí ainda não se pelou de medo e desistiu de saber, você pode continuar... diga que uma equipe do serviço secreto parisiense invadiu seu novo lar e de maneira truculenta (...pra dar um toque de BOPE à história!!)levou a parte superior do abajur pois ali, durante anos ficou escondido um microfilme (mega-antiqüíssimo!!)com informações que poderiam culminar na terceira guerra mundial... e blá-blá-blá... acho que vai colar!! hehehehe Ou melhor ainda, conte o começo pra Edith e peça que ela não diga nada a ele... dai, já sabe, a história será contada em capítulos durante os próximos 15 anos...

Poxa, Daniel, o pessoal anda bem criativo por aqui, heim?! Acho que desculpas esfarrapas não lhe irão faltar!!

Anônimo disse...

Desolé, mon chèr Champignon, mas você escangalhou pra sempre o belo abajur africano, logo na semana da Consciência Negra. É maldição na certa!!! Você não sabia, mas essa velha peça é o famoso abajur do Ritchie, cantado em "Minina Veneno": é esse o indescritível "abajur cor-de-carne"! E que quando eu era criança, ouvia assim: "um abajur come carne, um lençol azul, cortinas de seda, o meu corpo nu..." Nunca poderia imaginar era que essa verdadeiro terror antropofágico em forma de mobília que povoava minha imaginação infantil ao ouvir essa música existisse de fato, e que por conta dela um dia um amigo meu em Paris seria devorado vivo por um francês, proprietário do apartamento onde morava! Um grande abraço,

Felipe Berocan

Anônimo disse...

Parece que o totem, tomado por alguma vontade sobrenatural, intencionalmente praticou atos que comprometeram a sua integridade física.

Unknown disse...

Melhor voltar pro antigo apartamento...

Anônimo disse...

Putz, Daney, essa de colocar o abajur-africano-de-estimação-do-francês-dono-do-ap na varanda foi idéia de português!

Flor Falante disse...

Fala assim para ele:
- Abajur?? Que abajur?? Não sei de nenhum abajur! Não vi nada...

Cara de pau total, né! Mas deve funcionar!

Beijos
Flávia
PS: Quase tive um negócio de tanto rir!

Photographer disse...

Owww, desculpa ai, mas são 3h42 da madrugada e tive que colocar o lençol na boca para não acordar meus maninhos com minhas gargalhadas, não só com sua estória mas com as "desculpas" mais que inusitadas que surgiram por aqui...
Tenho mesmo AMADO seu blog, parabéns!!

Angela =)