sexta-feira, 30 de março de 2012

Souvenirs


Caros amigos, esse é o último texto do Chéri à Paris, projeto que comecei assim que cheguei à França, 5 anos atrás. Não tem mais sentido escrever as desventuras de um brasileiro na terra do fromage agora que voltei ao país do queijo prato. 

Aproveito pra divulgar o endereço do meu novo projeto:

www.historiasdequadrinhos.com.br

Muito obrigado a todos que me acompanharam. À bientôt!

---

- Din dão, berrou a campainha, com seu sotaque brasileiríssimo.

Fui abrir meio cabreiro, achando tratar-se do vizinho que, dias antes, saíra peladão no corredor para buscar seus jornais, bem na hora em que eu ia para o trabalho. Vai que era ele de novo, querendo, sei lá, um pouco de açúcar, metido em seus (não) trajes habituais.

Espiei cautelosamente pelo olho mágico e não vi ninguém. Voltei pro sofá. A campainha gritou de novo. Olhei e outra vez não visualizei quem teria apertado o botão. Fiquei esperando atrás da porta e a abri de supetão assim que a sineta soou pela terceira vez. Do outro lado, uma mocinha tímida, com um lenço no pescoço e cara de anjo.

- Bom dia, falei.
- Bonjour, respondeu em francês.
- Qui es-tu?
- Sou as suas lembranças parisienses.
- Minhas lembranças?
- Oui.
- E o que você está fazendo aqui?
- Foi você quem me chamou.
- Eu?
- Sim, você. Aliás, chamou a mim e àquele ali.
- Quem? Não estou vendo ninguém.
- Olha de novo, com atenção.
- Eita!, exclamei, surpreso com o súbito aparecimento de um velho ranzinza – E você, quem é?
- Tu ne me reconnais pas? Sou também as suas lembranças, putain!

Não estava entendendo mais nada. Convidei-os para entrar.

- Querem água, café?
- Não, obrigada, sorriu a menina.
- A água tá gelada? Porque eu só gosto de água gelada. E esse café? É arábico? De onde vem? Qual a máquina que você usa? É conservado na geladeira? Porque senão ele perde o gosto.

Depois de revirar a casa até encontrar mel para adoçar o café do velho, que não tomava nada com açúcar, exigi algumas explicações.

- Alors, que faites-vous là?
- Você não escutou a menina? Foi você quem chamou a gente!, gritou o idoso. Se quer que a gente vá embora, é só dizer.
- Calma, só quero entender o que vocês estão fazendo aqui.
- Você nunca notou, mas te acompanhamos desde que você deixou Paris, disse a mocinha num quase sussurro. Você nos trouxe para Brasília.
- Eu?
- É, assim são as lembranças, elas nos acompanham mesmo sem a gente querer. Eu, por exemplo, trago as recordações inocentes das suas primeiras experiências em Paris. A primeira baguete, o primeiro pedaço de comté, a primeira volta no marché d’Aligre, a primeira festa que você tocou como DJ, o primeiro encontro com a Edith, a primeira pelada com o Chico Buarque, o primeiro jantar que você preparou no restaurante associativo da rua, a primeira vez que você esteve em casa com a Louise...
- Só bons momentos.

Fiquei olhando para o nada por um longo instante, até ser interrompido.

- Bons momentos coisa nenhuma, retrucou o velho. Você acha que foram bons porque o tempo apagou as más impressões. Mas estou aqui para te lembrar que a vida não é uma propaganda de margarina.
- De manteiga, você quer dizer, estamos falando da França.
- Isso, a vida não é uma propaganda de manteiga ou de sabão em pó. Você deve se lembrar bem de quando chegou a Paris e as pessoas conversavam ao seu redor. Você não pescava nada.
- Lembro sim. Era duro. Eu ficava perdido...
- Não disse? Quer pior lembrança do que essa?
- Mas também foi ótimo perceber que a língua francesa aos poucos ia fazendo mais sentido para mim. E quando tive minha primeira conversa em francês? Cara, foi sensacional!
- Zut! E do primeiro inverno, lembra? Aquele frio de rachar. Você detesta o frio. Seu dedão congela, seu nariz escorre, sua orelha dói. Isso foi horrível, não foi?
- O frio é dose mesmo. Mas foi no primeiro inverno que eu descobri a neve. Fiquei hipnotizado como uma criança diante de um novo brinquedo. Uma lembrança inesquecível.
- Mais c’est pas possible. O mau humor francês, desse você se recorda bem, né? Tem coisa pior do que o nosso mau humor? Quantas vezes você não teve vontade de estrangular alguém?
- Estrangular nada, guilhotinar! De vez em quando eu queria fatiar um, começando por essa protuberância que vocês carregam no meio do rosto e chamam de nariz.
- Viu só? Nem tudo era flores.
- Mas depois de me irritar algumas vezes eu descobri que o mau humor de vocês não é pra ser levado tão a sério. Faz parte do folclore local, vocês adoram alimentá-lo. E ele ainda me rendeu várias crônicas.
- Mas que droga! Raios de brasileiro otimista! Viveu 5 anos na França e não aprendeu nada? Nem reclamar você reclama mais. Fica achando tudo lindo, fofo, colorido, doce, como se fosse sempre páscoa. Que coisa mais sem graça. Quer saber? Desisto. Fui. Je suis parti!

O velho abriu a porta da casa e desapareceu antes de chegar ao elevador.

- Eita, velho reclamão, disse a menina. Aposto que já foi perturbar outro com sua ranzinzice. Deixa eu ir lá cuidar dele

Abracei-a e ela me deu um beijo no rosto, despedindo-se. Devolvi o beijo e fechei a porta atrás dela. Ao virar-me, vi seu lenço no chão. No mesmo instante, a campainha tocou novamente. Só podia ser ela. Abri.

Era o vizinho, pelado, pedindo açúcar.

sexta-feira, 23 de março de 2012

O olhar dos outros


O texto a seguir eu escrevi para um concurso francês de roteiros de curta-metragem do qual participei há cerca de 3 anos. O nome do concurso era Le regard des autres, o olhar dos outros, e o tema era homofobia. O vencedor teria o filme rodado e exibido em cinemas e na televisão locais.

Na condição de estrangeiro, decidi tratar do assunto mostrando que a discriminação sofrida pelos  homossexuais (ou bi, ou trans etc) é, no fundo, muito parecida com a que existe contra os imigrantes. E se baseia na intolerância que temos com o que não se parece conosco.

Se eu ganhasse, iria insistir para ter o Paulo César Pereio no papel do estrangeiro. Canalha por canalha, sou muito mais ele do que o Gérard Depardieu.


--

Dois amigos estão sentados em um café. Um é francês (FR), e o outro, estrangeiro (ES), com sotaque. O garçom chega. Um amigo pergunta pro outro.

FR - Quer o quê?
ES - Um café.
FR - Dois cafés. - Diz pro garçom, que sai.
ES - E aí, tudo bem?
FR - Tudo.
ES - Tá lá ainda?
FR - Lá onde?
ES - Naquele buraco que você trabalha.
FR - Porra, precisa lembrar disso agora?
ES - Cara, tem séculos que te falo pra você largar aquela merda.
FR - Eu sei, eu sei. Mas você acha que é fácil arrumar um emprego decente?
ES - E aquilo lá é decente?
FR - Pelo menos dá pra pagar a cerveja.
ES - Considerando o tamanho de vossa pança de chope, então parece que o senhor pelo menos está ganhando bem. - Vira o pescoço e fixa o olho na barriga do amigo.
FR - Filho da puta...

Os dois riem.

ES - Por que você não larga tudo e monta uma barraca de crepe?
FR - Hã?
ES - Uma barraca de crepe. Crepe de queijo, de champignon, crepe suzette. Essas porcarias. Turista adora.
FR - Eu sou uma catástrofe na cozinha. Até ovo frito eu queimo.
ES - Junta a grana dessas cervejas aí - aponta para a barriga do outro - e contrata alguém pra trabalhar pra você. Quando o diabo criou o capitalismo, as regras foram bem definidas.
FR - De que merda você tá falando?
ES - Não sou eu. Max falava isso.
FR - Max?
ES - É. O cara que inventou essas teorias de comunismo.
FR - Marx. Karl Marx.
ES - Ele mesmo. Ele dizia que quem sabe, trabalha. Mas quem tem, manda. - Faz o sinal de dinheiro, quando diz "quem tem".
FR - Você é foda...

Os dois riem. O garçom traz os cafés.

ES - Viu o jogo domingo?
FR - Vi.
ES - E esse time, hein?
FR - Porra. Os caras não sabem diferenciar uma bola de futebol de um taco de sinuca.
ES - E você? Sabe qual é a diferença entre uma bola de futebol e um taco de sinuca?
FR - Hã?
ES - Senta em cima dos dois que você vai descobrir.

O estrangeiro ri. O outro fica sem graça.

FR - Sabe, tô pra te contar uma coisa.
ES - Ganhou na loto e vai montar um harém em Ibiza?
FR - Não, cacete. É sério.
ES - Ih, que foi?
FR - Não tô mais com a Marie.
ES - Não?
FR - Não. Tô com outra pessoa.
ES - A Claire?
FR - Não.
ES - A Véronique? Vai dizer que pegou a Véronique?
FR - Na verdade, não é uma mulher.

O estrangeiro abre o olho grande e cola no fundo da cadeira.

ES - O que você quer dizer?
FR - Quero dizer isso mesmo que você está pensando.
ES - Virou bichona? Tá enfornando o robalo? Sentando na cobra?
FR - Porra, não dá pra falar sério com você.
ES - Não dá pra falar sério é com você. Que história é essa de sair liberando o brioco agora?
FR - Não é isso.
ES - É o que, então? É amor? Vai dizer que tudo o que você sempre quis na vida foi enroscar seu bigode com outro?
FR - Nem tenho bigode.
ES - Você entendeu.
FR - Eu tô namorando o Hugo, que te apresentei um tempo atrás.
ES - O Hugo, aquele seu amigo?
FR - Já é um pouco mais que amigo...
ES - Ficou doido? Namorando um homem???
FR - Fala baixo. Tá chamando a atenção.
ES - Você dá o rabicó e eu é que quero chamar a atenção?
FR - Você não entende nada mesmo.
ES - Entendo sim. Entendo que você tá louco. Porra, se fosse o Jacques, que gosta de pintar cerâmica... Ou o Julien, que inventou de fazer aula de dança... Mas você? Você vai ao estádio e toma cerveja. Até boxe eu já te vi assistindo na TV. Boxe!
FR - Isso não se escolhe. Você simplesmente vai percebendo que é assim. E um dia você resolve admitir pra si mesmo.
ES - Quer dizer que um dia você acordou: "ah, o sol está maravilhoso. Vou tomar um bom café, uma ducha e depois virar gay".
FR - Deixa pra lá. Achei que podia contar com você, meu melhor amigo.
ES - E eu, que agora nem sei mais dizer se você é meu amigo ou minha amiga?

Silêncio na mesa. O garçom chega e pergunta se querem mais alguma coisa. Ninguém responde.

ES - Fala que você tá de sacanagem, fala. Diz que é brincadeira.
FR - O que é que muda?
ES - Muda tudo. A gente nunca mais vai poder sair de casal. Eu com a minha namorada e você com a sua. Ir pra um cinema, um restaurante.
FR - A gente nunca fez isso. Você nunca tá namorando.
ES - Nunca fez e nunca vai fazer. Pior ainda. E pra quem eu vou contar das mulheres que eu pego? Pra quem?
FR - Porra, pra mim, claro.
ES - Mas você é gay, cacete!
FR - E você é um idiota. Sou eu ainda. A mesma pessoa, ó. - Diz isso e aperta o ante-braço do amigo, que faz um olhar de estranhamento.
ES - Ô...
FR - Quer saber? Vou nessa.

Ele levanta, joga umas moedas na mesa e sai. O estrangeiro fica e chama o garçom.

ES - Uma cerveja gelada, por favor.
GR - O quê?
ES - Uma cerveja gelada.
GR - Desculpa, não entendo o que você quer.
ES - Falei que quero uma cerveja.
GR - O senhor poderia fazer a gentileza de falar francês?
ES - Olha, vá à merda. -  Ele sai também. O garçom mostra que entendia, e responde.
GR - Sua mãe não te deu educação não?

O estrangeiro sai à rua, olha para os lados, e vê seu amigo já meio longe. Ele corre para alcançá-lo.

ES - Marc, Marc.
FR - O que você quer agora? Vai perturbar outro, vai.
ES - Tá a fim de ver o jogo no bar? A cerveja é por minha conta.
FR - Hã?
ES - Mas em outro. Naquele lá as pessoas são muito intolerantes.

Marc sorri e coloca a mão no ombro do amigo, que olha meio atravessado, mas depois relaxa e coloca a mão no ombro do outro também. Eles vão andando de costas pra câmera.

FR - A gente tem que ganhar esse jogo.
ES - Basta eles jogarem como homens.
FR - Ô...
ES - Brincadeira, porra.

Caros amigos, semana que vem o Chéri à Paris publica seu último texto. No entanto, o site continuará no ar, para quem se interessar em ler as crônicas que fiz durante esse quase 5 anos de vida francesa.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Suco de goiaba


A gastronomia francesa, a culinária mexicana e o pão de mel croata (juro!) já estão lá. E agora eu começo a campanha para que o suco de goiaba com leite e o sanduíche de atum com ricota da Galeria dos Estados de Brasília também façam parte do patrimônio imaterial mundial tombado pela Unesco. Mas antes de seguir a minha defesa, queria só dizer que dar um título imaterial a algo tão densamente material quanto a comida mexicana é uma incoerência. Pronto, falei, agora vamos em frente.

O suco de goiaba com leite e o sanduíche de atum com ricota da Galeria dos Estados são como Pelé e Garrincha, como Lennon e Yoko, como Ana Maria Braga e o Louro José. Existem sozinhos, mas funcionam melhor juntos (se bem que no caso de Lennon e Yoko isso é contestável, ao menos musicalmente).

Não, a dupla alimentar não usa produtos do cerrado e muito menos faz parte dos pratos típicos da região. Se fossem esses os quesitos mais importantes, o arroz com pequi certamente chegaria na frente. Pensando bem, o arroz com pequi chegaria em segundo, atrás do próprio cheiro.

Então por que elevá-la à categoria de contribuição brasiliense para o patrimônio imaterial da humanidade? Simples. Porque eu gosto. E se eu não posso sugerir aqui o que eu quero como patrimônio imaterial da humanidade então não vou poder sugerir em nenhum outro lugar.

A primeira vez que provei o suco de goiaba com leite e o sanduíche de atum com ricota da Galeria dos Estados de Brasília eu tinha 15 anos. Fiquei tão impactado que decidi me tornar uma espécie de guardião do lanche, cargo que cumpri com certa regularidade e gula até ir embora da capital, em 2005.

Gastei ali grande parte do meu salário de menor auxiliar do Banco do Brasil. E, principalmente, grande parte do tempo que deveria dedicar à construção de um país melhor, para desespero do meu chefe Domingos. Desespero que aumentava muito quando eu voltava sem lanche para ele.

Depois de eras, ontem retornei ao lugar para conferir se a lanchonete continuava por lá e para me certificar que a qualidade não havia mudado. Aliviado, vi que tudo estava certo, exatamente como eu havia deixado, 7 anos atrás.

O quê? Todo mundo tem uma missão na vida, não é mesmo?

Caros amigos, como eu já havia dito, esse blog segue até fins de março, quando completa 5 anos. Depois ele para de ser atualizado. No entanto, não vou abandonar a vida de blogueiro. Começo um outro projeto, completamente diferente, assim que o Chéri disser seus últimos uh la las.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Lagostas psicodélicas


Vistos de longe, os anos 60 foram a década em que metade do mundo parecia ter tomado um ácido. Músicas, filmes e livros psicodélicos brotavam por todos os cantos, como sementes (de papoula). A viagem era tão geral que nem as relações diplomáticas escaparam.

Veja a Guerra das Lagostas, incidente envolvendo o Brasil e a França, ocorrido entre 1961 e 1963.

O imbróglio começou quando barcos franceses vieram pescar lagostas na costa de Pernambuco. O governo brasileiro chiou. O francês bufou. O brasileiro ameaçou. O francês disse “merde!” e mandou uma frota de guerra. O brasileiro mandou os franceses tirarem os navios e os narizes da nossa costa.

Então a coisa complicou de vez e uma guerra tornou-se iminente. Foi aí que os diplomatas de ambos os países, que andavam meio entediados desde o fim da década de 40, entraram na parada.

Na mesa de negociações, os nossos disseram que as lagostas estavam em território brasileiro e dessa forma nos pertenciam. Os franceses concordaram e discordaram ao mesmo tempo, alegando que enquanto andavam e tocavam o fundo do mar, tais crustáceos realmente respondiam às leis de pindorama. No entanto, quando nadavam, estariam em águas internacionais e, portanto, não tinham passaporte e poderiam ser livremente pescadas.

A história ficou tão malucrazy que nesse instante o General de Gaulle proferiu - ou não, porque ninguém sabe se é verdade mesmo - a sua frase mais famosa em terras tupiniquins: “Le Brésil, ce n’est pas un pays sérieux”, o Brasil não é um país sério. E ele queria o quê, oras, que a gente não entrasse na brincadeira?

O quiproquó só foi resolvido quando um almirante brasileiro soltou o argumento mais brilhantemente psicodélico possível, afirmando que se as lagostas quando nadam podem ser consideradas peixes, então os cangurus quando saltam seriam nada menos do que aves.

Brasileiros e franceses concordaram que o raciocínio fazia muito sentido. E acendeu-se então o cachimbo da paz.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Andar de baú é uma parada


Cheguei ao ponto e meu ônibus tinha acabado de passar, confirmando a primeira regra dos usuários de transporte público: o momento da sua chegada à parada é exatamente o mesmo da partida do ônibus que você quer pegar. A segunda regra diz que o seu tempo de espera a partir de então será proporcional à sua pressa.

Depois de eras passou outro, dei sinal, não era o meu, dei outro sinal pra dizer que não era o meu, o motorista já havia começado a frear e acelerou novamente, fiz um “ok” pra agradecer a boa vontade, o motorista achou que eu havia mudado de ideia e reduziu outra vez a velocidade, sacudi as duas mãos pra deixar claro que não o havia chamado, o motorista parou ao meu lado e perguntou se eu já havia me resolvido.

- E aí, já se resolveu?

Eu já havia me resolvido e de qualquer maneira não ia subir naquele ônibus nem que fosse o meu e o último do dia, tamanha a cara feia dele, do seu parceiro cobrador e do passageiro bombado sentado na primeira fila.

Passou mais um ônibus, que também não era meu e por isso não dei sinal, mas era de muitas outras pessoas que esperavam no mesmo ponto, deram sinal ao mesmo tempo e depois se acotovelaram para subir, parecendo um formigueiro humano. Quando percebi o meu vinha logo atrás mas só acenei depois que ele já havia passado à toda. O motorista não me viu, ao contrário da velhinha do último banco, que me mandou um tchau, não sei se por compaixão ou para corresponder à minha involuntária boa educação.

Pra matar o tempo, resolvi contar os carros verdes da rua, mas parei no 35º porque a brincadeira não tinha a menor graça. Tirei o celular do bolso, olhei para o relógio, vi que estava atrasado, recoloquei o celular no bolso, tirei-o novamente, olhei mais uma vez para o relógio, certifiquei-me que estava atrasado, guardei-o e quando o peguei outra vez percebi que o meu ônibus havia parado e todo mundo subido, menos eu, que fiquei olhando para o telefone. Tirei-o mais uma vez do bolso e tive a absoluta certeza de que agora estava atrasado de verdade.

Longos tempos depois, avistei um ônibus de longe e comecei a acenar trezentos metros antes de ele chegar ao ponto para ter certeza de que dessa vez o pegaria, só que o motorista decidiu não frear, ignorando totalmente meu apelo e meus saltos com as duas mãos abertas que davam a impressão de que eu fazia polichinelos, modalidade de exercício que deixou de existir “depois da eleição de Tancredo Neves”, segundo um amigo. Mas o destino parecia estar ao meu lado e o coletivo parou no sinal, então bati à porta, com um sorriso de vitória, e o sujeito não teve escolha a não ser abrir pra mim. Acomodei-me em um banco desconfortável e aproveitei para jogar Tetris no celular. Depois de uns 15 minutos levantei a cabeça e só aí fui perceber que havia pego a rota errada.