sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Roteiro para um filme (chato) francês


Pode nem ser verdade, mas o cinema francês tem fama de ser verborrágico, pretensamente filosófico e, algumas vezes, chato pra caramba. Resolvi então dar a minha contribuição à sétima arte da terra do fromage, com um roteiro para um curta metragem. Inspiração francesa, sim, mas com um toque brasileiro.


Cenário - Casa de campo isolada por causa de uma inesperada tempestade de neve. Um casal heterossexual e um homossexual (do qual o brasileiro Chicão faz parte) estão lá dentro. Não há aquecedores, só uma chaminé velha e semi-entupida. E como também não há mais lenha, eles discutem maneiras de combater o frio.

Jean (marido de Marie), tremendo - Putain! Putain! Putain!

Marie, olhando para o infinito - Três vezes, Jean. Você disse "putain" três vezes. Isso me faz lembrar que três é o primeiro número primo de Fermat, apesar de ser o segundo de Sophie Germain.

Paul (marido de Chicão), visivelmente emocionado - Nessa hora eu penso que os pilares da democracia francesa são três também: liberté, égalité, fraternité. Esse acesso patriótico me dá até vontade de chorar.

Chicão (o brasileiro) - Mes chéris, essa conversa de "três" tá bem bacana, mas e se a gente partir pra prática, hein? Que tal fazermos um ménage à trois agora, pra aquecer essa bodega? Não precisa nem tirar a roupa, é só abrir o zíper.

Marie, olhando para a janela - Mas, mas... Nós somos quatro. Quatro é um número maldito, segundo a filosofia milenar chinesa.

Chicão - É só a gente jogar você no fogo que o problema tá resolvido.

Jean, bufando, parte em defesa da Marie - Chicón, você é um grosso, um grosso, um grosso!

Chicão - Paul, você contou pra ele?

Paul - Hã?

Chicão - Nada. Olha, enquanto vocês ficam com esse papo aranha, a gente vai congelando. A única saída é fazer um fogo com esses móveis velhos e horrorosos e esses livros empoeirados.

Marie, mirando um quadro torto perto da lareira - Esses móveis... Não podemos queimá-los. São relíquias de Louis XIV, sobras do palácio de Versalhes. Louis XIV, o rei mecenas. Pensadores sentaram nessas cadeiras. Discursos foram escritos nessa mesa. Leis elaboradas, teorias rabiscadas, destinos traçados, sonhos tolhidos.

Jean, pegando um livro de Voltaire na estante - Também não podemos tocar nos livros. Esse aqui, Tratado sobre a tolerância, de Voltaire, é um clássico do pensamento universal. Voltaire escapou da fogueira, e não somos nós que vamos queimá-lo, c'est impossible.

Chicão, perdendo a paciência - Dá esse gibi aqui, ou você vai conhecer meu tratado sobre a intolerância.

Paul - Oh!

Marie, olhando para o chão - Oh!

Jean, deixando o livro cair - Oh! Oh! Oh!

Paul, com lágrimas nos olhos - Chicón, mon bebê. A violência não resolve nada.

Chicão - Ah, agora vocês dizem isso, né? Passaram geral a guilhotina quando foi conveniente, degolaram legal, e hoje vêm com essa conversa. Quero nem saber, vou barbarizar.

Marie, olhando para suas próprias mãos - Não é tão simples, Chicón. O pensador Edgar Morin disse que a violência deve ser tratada em sua complexidade.

Jean, pegando o livro no chão - E você não vai tocar em nada disso, nos móveis ou nos livros. Em nada. Nada.

Chicão, dirigindo-se a Paul, mas falando de Jean - Esse carinha tem mesmo que ficar repetindo tudo três vezes?

Marie, olhando para o chão - Mantenha a calma, Chicón. Lembre-se que o inverno nunca falha em se tornar primavera.

Chicão, ainda falando a Paul - E essa outra aí? Parece que fumou um baseado numa folha de enciclopédia. Eu vou é...

Nesse momento, um urso arrebenta a porta de entrada, devora a todos e destrói a mobília. O único objeto que sobra inteiro é o livro de Voltaire, caído no chão. O urso volta e faz cocô em cima.

7 comentários:

Makoto disse...

Sua naturalidade em construir diálogos e cenas é muito bom.
Podemos realmente fazer um curta.

Brenda Ligia disse...

Hahaha... não consigo parar de rir... você é gênio, D.
AMEI!

Cynthia Le Bourlegat disse...

Muito bom, morri de rir! abraço

Unknown disse...

Meu, que viaaaaagem!!!
.
Estou chorando de rir!
.
Bj!

Anônimo disse...

Oi Daniel, tudo bom !?

Meu nome é Débora, e tenho visitado o seu blog sistematicamente nos últimos tempos. Acho os seus textos inteligentes, mordazes, divertidíssimos e muito bem escritos. Virei fã total! Eu tenho um blog que fala de propaganda ruim e ficaria honrada se vc visitasse e comentasse meus posts. Olha o release que preparei pra vc entender a história do blog:

Os amantes da boa propaganda sempre tiveram centenas de sites para se atualizarem diariamente com o que rola de melhor no mercado nacional e internacional. Mas, e o pior? Onde poderíamos ver aquelas campanhas que estampam nossas ruas com layouts e textos mal feitos e sem noção? Essas que causam asco no consumidor, vergonha no modelo e que nos dá vontade de apedrejar as portas da agência? Para denunciar essas pérolas e punir seus culpados, os defensores da propaganda contam com a colunista de olhar atento e língua envenenada do blog Não Fui Eu. Quem dispara a primeira pedra é Débora Blog, a criadora do site, que semanalmente o alimenta com algum fiasco publicitário. O Não Fui Eu também conta com diversos colaboradores que sadicamente enviam peças de todas as partes do país para a autora desossar perante seu público. O blog existe há alguns anos e por isso já se tornou referência do que não deve jamais virar referência. Acesse www.nfuieu.blogspot.com e conheça o único lugar que publicitário detesta aparecer.

Obrigadinha, e beijos!

Débora Blog.

Freddy Charlson disse...

Sensacional, Cariello. Sensacional.

Isa disse...

Também não consigo parar de rir!!! Muito bom!!!
Abraços!