As liquidações francesas, chamadas les soldes, acontecem duas vezes por ano - no verão e no inverno -, e são o momento da catarse coletiva no país. Quase todas as lojas participam dessa orgia capitalista, que tem dia e hora marcados para começar. É aí que muitos acabam perdendo a razão.
- Preparada, Anne?
- Tô. E você, Maurice?
- Preparadíssimo.
- Eles já vão abrir as portas.
- Eu sei, eu sei.
- Não se esqueça: você corre pela direita e eu corro pela esquerda. E cada um sai pegando o que puder.
- A gente já ensaiou isso em casa um milhão de vezes.
- É que você nunca se lembra o seu lado.
- E você, lembrou de passar aqui ontem?
- Passei, e escondi tudo o que a gente queria.
- Escondeu bem?
- Escondi.
- Separou pra mim aquele conjunto de três cuecas com a estampa do Napoleão?
- Claro.
- Colocou lá no alto?
- Como a gente tinha combinado. Mas acho que ninguém mais vai se interessar por isso.
- Nunca se sabe... Anne, olha atrás de você.
- O quê?
- A de chapéu vermelho. Tentando passar na sua frente.
- Ah, mas aqui não passa mesmo.
Sem se mexer muito e demonstrando habilidades que Maurice não conhecia, Anne resolve a situação.
- Pronto! Ela não incomoda mais.
- Eu acho que você exagerou.
- Exagerei nada. Uma pisadinha de leve no pé.
- A pisadinha não tem problema. Mas você não precisava ter enfiado o batom no olho dela ao mesmo tempo.
- Foi um batonzinho vermelho básico. É bom que combina com o chapéu.
Enquanto Anne guarda o batom na bolsa, Maurice observa a multidão em torno deles.
- Putain, olha ali o meu chefe!
- Onde?
- Ali, todo espremido naquele canto, já comendo o boné do Mickey do cara da frente.
- É ele mesmo. Abaixa, Maurice, abaixa.
- Ele não pode me ver. Falei que estava doente, pra não perder o começo dos soldes.
- Fica aí até ele ir embora.
- Anne...
- Hã?
- Vem aqui embaixo. Me ajuda a amarrar o cadarço desse pessoal, assim a gente tem uma vantagem na partida.
- Boa. Mas e aquela ali, de botas?
- Toma. Passa essa fita adesiva que eu trouxe exatamente pra esses casos.
Anne levanta-se e constata que o chefe de Maurice desapareceu, mas a aglomeração duplicou de tamanho.
- Pode vir, Maurice.
- Ele sumiu?
- Sumiu. Ao que parece, foi engolido pela peruca laranja daquela moça com cara de assistente social, ao lado do senhor que equilibra o filho e o cachorro em pé sobre a sua cabeça.
- Melhor. Assim podemos fazer as compras sem medo de sermos pegos.
Nesse momento, um funcionário abre as portas da loja. Quem passasse por ali sem saber do que se tratava certamente imaginaria que um leão havia fugido do circo. A multidão entra toda ao mesmo tempo, Anne e Maurice inclusos. E todo mundo fica bloqueado na seção de sapatos, a primeira da loja, sem possibilidade de movimentação.
Colada na estante das sandálias, Anne consegue mover alguns dedos até pegar um par exatamente do seu tamanho.
- Maurice, você consegue alcançar minha mão?
- Acho que sim.
- Segura esse par aqui. Um achado!
- Mas Anne, isso está infernal. Não dá pra mexer.
- Não reclama, Maurice. 70% de desconto. Não reclama.
Há 2 dias
10 comentários:
Descobri teu blog pelo Milk Shake e adorei, tem um mês que eu venho lendo suas postagens. Parabéns viu?
Isso me lembrou um episódio de friends em que a mônica quer comprar o vestido de casamento na liquidação. leva duas amigas e alguns apitos para quem encontrar o vestido primeiro secar os pulmões no apito e encerrar a busca. bem parecido! =D
Abraços, Daniel
Muito bom! Eu moro em Paris e é isso mesmo. Umas amigas mataram o dia de trabalho só para irem às compras.
E daí que aquela bolsa é feia e você nunca vai usar!?
Ela está em promoção, por apenas 239 Euros, sendo que, sem desconto, custaria 1895 €!
Isso não é consumismo, é investimento!
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Muito bom!
Nas liquidações a gente compra preço, não mercadorias! "O preço estava lindo, por isso comprei..." "esse precinho é do meu tamanho... vou levar!"
Realmente... as liquidações são catarses coletivas!
Bj!
Ou seja, no glamour de Paris ou no calor da av. Paris, quando se fala em liquidação, o espirito de pábre é ogualzinho. =)
Hahaha, é bem isso. Perto da minha casa tem uma lojinha de cachemire que desde o começo das liquidações estava com fila até a esquina, incrível. Esses dias me enchi de coragem e fui enfrentá-la para ver quais preços eram esses que mobilizavam aquele mar de gente. Não dá pra acreditar: a blusa mais barata era 130 euros, coisa de francês, coisa de louco!!!
Resgatei agora o engenhoso mr. Bean na liquidação de inverno em Londres.
Gostei daqui. Um pouco de cultura francesa bem-contada!
Adorei seu blog.Cheguei a ele pelo Twitteratura, que está na minha Lista de Blogs "Mar de Histórias". Aliás, adicionei você também. Quando puder, visite www.lectorinfabula.blogspot.com. Abraço, Nelida Capela
Tá linkado lá também. Agora, esperando mais aventuras à Paris...
Postar um comentário