Um dia, Pierre acorda e não reconhece o mundo ao seu redor. Olha para a mulher deitada ao seu lado, e não vê nela nada de familiar. Na verdade, acha muito estranhas aquelas mechas ruivas no meio do cabelo castanho. Repara no horrível quadro de cavalo pendurado perto da porta do banheiro, nas breguíssimas cortinas vermelhas e, principalmente, naquele pôster de um Julio Iglesias sorridente, que lhe dava náuseas. Com a cabeça latejando, só consegue fixar um pensamento: alcançar a carteira na mesa de cabeceira e, em seguida, a porta da rua. Porém, prestes a sair do quarto, escuta a voz que vinha de baixo dos lençóis.
- Pierre?
- Hã?
- Pierre!
- É comigo?
- Sim, Pierre Caugin, é com você mesmo. Com quem mais poderia ser? Será que depois de deixar as crianças na escola você pode passar na farmácia e comprar um doliprane pra mim? Minha cabeça está explodindo.
Ele pára, petrificado. Seu nome era mesmo Pierre Caugin. Mas ele não se lembra de ter nenhuma intimidade com aquela mulher ali. E muito menos de ter filhos com ela, ainda por cima em idade de ir à escola. Na verdade, ele não se recorda de nada de sua vida até aquele instante. E, diabos, ele sabia que tinha tido um passado. Mas é incapaz de dizer coisas simples sobre si mesmo, como o nome da sua mãe, o endereço de sua casa ou mesmo seu time do coração.
Balbuciando um "oui" sem força, Pierre alcança o corredor, e vê duas crianças correndo em sua direção, que pulam no seu pescoço.
- Papai, papai, faz a brincadeira do carrossel, faz?
- O papai está com dor de cabeça, e não pode brincar agora. Na verdade, o papai não pode nem levar vocês na escola. Hoje vocês vão de táxi, d'accord?
Depois de entregar os pequenos ao motorista, Pierre Caugin volta para essa casa tão estranha para ele e observa atentamente os objetos da sala. O porta-retratos com uma foto enorme da família na EuroDisney, todos vestindo chapéu do Pateta. As coleções completas de CDs não apenas de Julio Iglesias, mas também de Enrique Iglesias. E, o pior de tudo, o último livro de José Sarney, traduzido para o francês e autografado.
Pierre corre para o banheiro e fecha a porta atrás de si. Abre a pia e joga água fria na cara. Levanta-se lentamente e observa sua imagem envelhecida no espelho. Não podia ser ele. Não tinha tanta idade assim. Aquelas rugas não eram suas. As entradas também não. E muito menos todos aqueles fios acinzentados, que davam um tom bem grisalho ao seu couro cabeludo.
Súbito, lembra-se completamente da noite anterior. Daquela boite estranha em Pigalle, perto do Moulin Rouge. Daquela dançarina exótica mexicana, com seu jogo de pernas único. E, principalmente, daquele barman, que lhe garantiu que a bebida que vendia era de boa procedência. "No hay problema", dizia, em um portunhol safado. "Puede beber sin miedo. Mañana você será un homem nuevo en fuelha".
Então, Pierre lava mais uma vez o rosto e sai em direção à tal casa noturna. Apesar de algumas coisas pelo caminho não serem mais como eram na véspera, a boite continuava no mesmo lugar. Entra em disparada e vai direto ao bar. Dá três boas bolachas no barman, também estranhamente mais velho, e vira uma garrafa inteira do que havia tomado na noite anterior, uma bebida brasileira com uma espécie de camarão no rótulo. "C'est de la pingá", haviam lhe dito. Súbito, dois seguranças surgem e começam a esbofeteá-lo com vontade, com muita vontade, e ele apaga.
No dia seguinte, acorda no mesmo moquifo de sempre, seu velho e sujo apartamento de 12 m2, num subúrbio parisiense. Pierre lembra-se dos filhos que teve por breves instantes, e sente-se triste de não mais vê-los. Mas, no momento seguinte, recorda-se dos discos de Julio Iglesias e do livro do José Sarney, e agradece enormemente ter voltado à sua vida besta de sempre. Afinal, aquele chapéu de Pateta não lhe caía mesmo muito bem.
Há 2 dias
12 comentários:
Eita pinga maldita mesmo...
Este texto é uma cena de filme de tão bem descrito!
Parece o fantasma do natal futuro ou algo assim!
O que é que tinha nessa pinga, rapaz?
Besotes mejicanos!!
Flor
PS: Saudades...
Chéri,
Na estante dele não tinha também as "Obras Completas de Paulo Coelho" não? Bom, Marimbondos de Fogo já é bastante pra fazer a desgraça de qualquer um, e sua crônica nem é sobre o Armagedom, senão cabia...
Estou conhecendo seu blog por indicação de uma amiga. Legal!Parabéns! O quadro é perfeito para uma situação de cachaça na zona do euro. Mas se o pivô do crime fosse tequilla, ou gim puro, o cenário pediria "Zélia, uma paixão" do saudoso (não por isso, evidente) Fernando Sabino.
Ééééééééé... a marvada não é para iniciantes, não! Pitu, então... vixi! hehehehe
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Sempre muito bom, cada vez melhor!
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Bj!
Li de novo, Dani! Tá muito bom!
Vai ver foi Ypióca... hein!
Como diz o pinguço da internê...
"Foi o cão qui butô pra mim"
Besos
Muito bom! Adorei xD
Olá, Daniel.
Meu nome é Anderson e passei por aqui para dizer que venho fuçando o seu blog de vez em quando. Escreves muito bem, camarada. Parabéns! Te coloquei na minha lista de indicados, ok?!
Abraço!
Anderson Costolli
Eu já acordei assim...kkk!Tomando MALIBU e me sentindo no Caribe...no outro dia estava no inferno.
hahahahahahahaha
Adorei!
Essa vida bandida é assim mesmo!
hahahahahaha
Ótimo.
Abração.
Rafa
Rapaz, já tomei um porre desses uma vez, com aquele vinho franco brasileiro famoso, o "Sanguê de Boá".
Muito bom o blog. Sempre venho por aqui.
Muito bom o texto!
Sem querer ser chata, mas já sendo, é "Enrique Iglesias", sem o "H". Não que faça muita diferença, ele é cafona do mesmo jeito.
Sra. Pedreiragem,
Não tem problema mesmo. O Sarney também não foi registrado assim: é José de Ribamar. Mas Sarney ou Ribamar, não passa do autor do tristemente célebre "Marimbondos de Fogo", como é muito bem lembrado no comentário de Pápi. Continuo acompanhando o blog.
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