sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O estrangeiro

Um dos problemas de já estar há tanto tempo fora do Brasil é que de vez em quando eu me sinto um estrangeiro dentro do meu próprio país.

- Bom dia, posso ajudar?
- Bonjour, madame. Me dá um truc daquele ali, por favor.
- Um pão de queijo?
- Ah, é assim que se chama, tinha esquecido. Como ele é feito?
- Com queijo, oras.
- Sim, mas qual? Comté, gruyère, emmental...
- Sei lá.
- E o polvilho, é orgânico?
- Moço, sei não. Joããão, vem aqui me ajudar. Tem um cliente estranho fazendo umas perguntas mais ainda.

- Bom dia, senhor.
- Bonjour, monsieur. O senhor sabe dizer qual o queijo do pão de queijo?
- Hein?
- O queijo do pão de queijo, qual é?
- É queijo queijado, oras.
- Mas qual queijo? Comté, emmental, Beaufort...
- Pra mim você tá falando grego.
- Não é grego, é francês, muito diferente.
- Pois francês pra mim é grego. E se você continuar me enchendo a situação aqui vai ficar ruça.
- Bom, tá legal, me dá dois.
- Com recheio?
- Qual recheio você tem?
- Hoje só tem manteiga.
- Essa manteiga é manteiga ou é margarina?

- Maria, a manteiga é manteiga?
- Você também pirou, João?
- É esse cliente que já tá me perturbando as ideias. Ele quer saber se a manteiga é manteiga ou margarida.
- Margarina. Eu disse margarina.
- O senhor fica quieto aí no seu canto. Maria, é manteiga ou não?
- É sim, João.

- É manteiga, senhor.
- Quero dois.
- Tá aqui, dois. Mais alguma coisa?
- Um café.
- É pra já.
- Peraí, peraí.
- O que foi agora?
- Não é assim.
- Não é assim o quê?
- Antes de escolher eu preciso saber qual tipo de café harmoniza melhor com esse pão de queijo. É o arábico, o robusto, o...

- Calma, João, calma! Pra que essa violência? Larga o moço.
- Me deixa, Maria. Só quero harmonizar um pouco mais as minhas mãos com o pescoço desse cara. Depois eu solto, eu juro.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Pra lá de Marrakech

O riad, espécie de casa tradicional marroquina com um enorme pátio no meio, onde fiquei em Marrakech tinha dois andares e era colado em uma mesquita. Quem já visitou um país árabe sabe que cinco vezes por dia um sacerdote vai ao microfone e faz a chamada para a oração, lembrando que é o momento de rezar para Alá. As caixas de som estão sempre fora dos templos, para que todos por perto ouçam a convocação.

Chegamos a Marrakech pela manhã, e ao meio dia em ponto um cântico religioso invadiu a casa.

- Que é isso, o Roberto Carlos marroquino?
- Não, o almuadem.
- Mulher de quem?
- O almuadem, a pessoa encarregada de anunciar o momento das cinco preces diárias.

Outra coisa que eu não sabia era que uma dessas preces acontecia às cinco da manhã. Descobri quando fui acordado no susto pelo sujeito soltando a voz praticamente no meu ouvido.

- Vixe, Maomé veio me buscar!
- Pára de escândalo, Daniel, é só o almuadem. É a hora da primeira oração do dia.
- Mas nem Alá tá acordado numa hora dessas, ele não vai escutar.

Passado o impacto inicial, acabei me habituando ao ritual muçulmano e comecei até a gostar muito da voz do tipo. Fui perguntar para a Aziza, a faxineira do riad, o que significava aquele chamado.

- Começa com “Allah hu Akbah”, Deus é grande.
- E depois?
- Depois ele fala um monte de coisas, que, resumindo, querem dizer “Allah là haut”, Deus lá em cima.
- Alá la ô?
- Isso.
- Mas que calor?
- Hã?
- Nada.

Empolgado com a iniciação a essa cultura completamente diferente da minha, resolvi filmar o cântico de cima da varanda do riad, de onde havia uma vista frontal para a salinha a partir da qual o cidadão fazia o anúncio.

- Melhor perguntar para o almuadem antes, para não ofender Allah.
- Que nada, Alá já é brother.

Engano meu. Pra ser íntimo de Alá é necessário um pouco mais de disciplina do que com os deuses ocidentais. Não é só chegar, colocar o pé na mesa, tirar a roupa e abrir uma garrafa de vinho, como era na Grécia antiga. Na cultura árabe essas minhas gracinhas não são muito bem vistas.

A prova é que a minha punição foi imediata: enquanto procurava um bom lugar para esconder a câmera, não percebi que a varanda estava cheia de cactos. A minha histórica falta de jeito, misturada à má educação com Alá, cuidou para que eu esbarrasse em um.

- Ah la la la la!
- Converteu-se ao islamismo, Daniel?
- Não, encostei num cacto. Tô mais espetado que boneco de vodu.

Sentei no sofá e passei algumas horas tentando arrancar as dezenas de espinhos, um por um. Quando já conseguia me mexer, resolvi dar um passeio pra esfriar a cabeça.

- Vamos à praça Jemâa el Fna, respirar um pouco. Ai.
- Vamos.
- Esse Alá me paga. Amanhã vou filmar de novo, agora já sei onde estão os cactos.
- Olha lá...

Na enorme praça, bem no centro da cidade, camelôs misturavam-se a domadores de macacos, a lojas de temperos e chás mágicos, a vendedores de roupas e de toda sorte de produtos, a barraquinhas de suco e a todo tipo de comércio e de atrações, que incluem encantadores de serpentes.

Eu detesto cobra, mas mesmo assim me aproximei um pouco para ver esses malucos que ficam tocando flauta em frente a quatro ou cinco najas. “Não é possível que de vez em quando um bicho desses não acorde do feitiço pra dar uma dentada nesses caras”, pensei, calculando a melhor medida entre chegar um pouco mais perto e conservar uma distância segura.

Nisso, senti alguém me cutucar por trás. Quando virei, um dos assistentes do – vamos chamar assim – espetáculo sapecou uma cobra em torno do meu pescoço. Paralisado de pânico, só conseguia mexer a ponta dos lábios.

- Ia ea oa ai.
- Pardon?
- Tira essa cobra daqui.
- Ah, ela é boazinha. Quer que faça uma foto de vocês dois? Vocês ficam lindos juntos. Custa só dez dihrams. Sorria!
- Eu quero que essa cobra suma daqui agora, com você junto.
- Ih, ó o cara. Vem, Sophie, vamos encontrar alguém mais gentil.

Nos últimos dias de Marrakech deixei a barba crescer e sapequei um chapéu marroquino, pra ficar parecido com um local e me esconder um pouco de Alá, que ele não tava pra brincadeira.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Alencar Sete Cordas

Ontem recebi duas tristes notícias, duas pessoas que se foram. Uma, o pai de uma amada amiga, que sucumbiu a um câncer que já o atormentava há algum tempo. A outra, um dos mais geniais músicos que já conheci, Alencar Sete Cordas.

Professor de violão do meu pai, do meu irmão (de quem também foi parceiro) e meu (apenas por duas aulas, uma das quais conto aqui embaixo), o mestre Alencar tocou com gênios como Raphael Rabello, Nelson Cavaquinho e Cartola, e tinha um conhecimento musical de tamanho comparável apenas ao da sua simpatia.

Como homenagem à sua arte e ao seu inesquecível sete cordas, republico essa semana no Chéri à Paris um texto que escrevi para o site Overmundo, há 6 anos.

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Eu não sou chorão. Sou músico!

"Meu pai sempre fala que a vida da gente é como couro de cobra. Muda o tempo todo", diz o cearense José de Alencar Soares, ao explicar a sua trajetória, revelando uma sabedoria passada entre gerações em sua terra natal, Abílio Martins, no município de Ipu, Ceará.

José de Alencar Soares é mais conhecido como Alencar Sete Cordas, um apelido que mistura seu nome de batismo e o instrumento que escolheu para tocar, o violão de sete cordas. E a sabedoria prática, como no caso da cobra, foi o que o levou à música, já que no sertão não havia métodos e professores.

Ainda criança começou a se interessar pela música. "Eu escutava Nelson Gonçalves e conseguia perceber perfeitamente o violão. Entendia a complexidade daquilo e ficava tentando reproduzir". E em 1967, aos 16 anos, foi tocar guitarra em uma banda de baile, Os Cometas. No repertório, MPB, serestas, bossa-nova, músicas estrangeiras e, claro, muita Jovem Guarda. Estranho para quem veio se destacar no choro?

"Eu não sou chorão. Sou músico", esclarece. "Adoro Jovem Guarda. Ainda sei tocar tudo daquela época. Esses dias estava reescutando os discos de Roberto Carlos e percebi mais uma vez a riqueza harmônica daquelas músicas", revela.

A música tornou-se um trabalho, mas o pai de Alencar não enxergava ali um bom futuro para o filho. E, em 1971, mandou-o embora de casa. Podia escolher: São Paulo, Rio ou Brasília. Veio parar na capital, ao contrário de um conterrâneo famoso, que foi para a Cidade Maravilhosa.

"Naquela época, as pessoas saíam de Ipu para trabalhar em outras cidades. Hoje em dia, saem para serem bandidos. O Bem-Te-Vi (ex-chefe do tráfico na Rocinha, morto por policiais) era de lá." Bizarro.

Seus primeiros anos em Brasília não foram muito produtivos musicalmente. Dedicou-se mais ao trabalho de funcionário público. E só arranhava o violão eventualmente, quando conseguia um emprestado. Tanto que sua volta definitiva ao instrumento só ocorreu em 1977, quando acompanhou um amigo em uma roda de samba feita por funcionários do Senado. Nada mais normal, caso ela não estivesse acontecendo durante o horário de expediente.

Esse amigo era Veloso, bandolinista que tocou com uma lenda do instrumento, Jacob do Bandolim. E a partir dessa e de outras rodas formou-se o embrião do Clube do Choro, fundado poucos meses depois na casa da flautista Odete Ernest Dias.

Desde então não parou mais. Já reconhecido como grande instrumentista, acompanhou nomes como Sílvio Caldas, Moreira da Silva, Paulo Vanzolini, Nelson Cavaquinho, Turíbio Santos e Cartola, de quem tem boas recordações. "Uma vez, depois de um show, ficamos bebendo até as 4 da manhã. Os músicos na cerveja e o Cartola no Conhaque Presidente, que ele adorava."

Foi só depois que começou os estudos formais de música. "Tudo o que eu tocava era de ouvido e de intuição. Não sabia nada de teoria. Para mim, uma semicolcheia era um espermatozóide".

E parece que ele aprendeu bem. Tão bem que virou professor. E há anos aperfeiçoa seus estudos e métodos de harmonias, já conhecidos e utilizados em outras cidades, como Rio e São Paulo.

Chegou até a dar umas dicas para Raphael Rabello. Perguntei se ele tinha sido professor do grande violonista. "Nunca. Ele só teve dois professores. Eu troquei umas informações com ele. Mas nós éramos grandes amigos".

Os olhos de Alencar brilham ao falar sobre os métodos harmônicos que vem desenvolvendo. Parece entrar em um mundo próprio, uma espécie de Matrix musical. Esquece que está no meio de uma entrevista e passa uns 30 minutos explicando as possíveis modulações de cada tom. Fico olhando para o aluno dele, que está ao meu lado e gentilmente cedeu sua aula para que continuássemos o papo. E, como se fôssemos puxados para o universo alencariano, tudo aquilo que ele falava também passou a ser muito claro para nós dois.

Além desses estudos, nos últimos anos Alencar retomou suas atividades no renascido Clube do Choro, agora sob o comando de Reco do Bandolim. E chegou a fundar a Escola de Choro Raphael Rabello. Mas agora anda meio afastado de lá. "Por quê?", pergunto. Ele me olha sorrindo e responde: "Porque a vida da gente é como couro de cobra. Vive mudando".

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Os clichês

- Dá uma sambadinha aí, então, só pra eu ver.
- Eu?
- Você não é brasileiro?
- E o que tem a ver uma coisa com a outra?
- Tudo, ué. Vocês são especialistas no assunto.
- Isso não significa que todo brasileiro saiba sambar.
- Mas e no carnaval, quem não samba faz o quê?
- Depende. Os que não sabem jogar bola se ocupam de assaltar os turistas. É importante, para manter nossa imagem no exterior.
- Você só pode estar de brincadeira.
- Foi você quem começou.
- Quer dizer que você não sabe sambar?
- Na última vez que tentei dei um nó tão grande nas minhas pernas que achavam que estava fantasiado de saci com cãibra.
- Mas você não tem nem aquelas roupas de escola de samba?
- Tenho várias, claro, mas só uso domingo de manhã, quando vou correr no parque. É que aqueles chapéus cheios de penas azuis me dão alergia, sabe?
- Mas que brasileiro mais sem graça que você é.
- Desculpe a falta de originalidade. Mas e você, monsieur, que tal se você me mostrasse um pouco da habilidade francesa em cozinhar? Pega aquele caramujo que tá passeando ali de bobeira e prepara um prato pra gente.
- Ei, não é assim. Eu adoro comer, mas sou uma negação na cozinha. Quase fui extraditado da última vez que tentei fazer um ovo frito.
- Tá vendo?
- O quê?
- É disso que estou falando. Dos clichês.
- Como assim?
- Dessa imagem pré-fabricada, que limita a visão sobre o outro. Vocês acham que todo brasileiro sabe sambar. E quando aparece um que não sabe, já vêm logo com esse papo de “nem parece brasileiro”.
- Você tem razão...
- É claro que tenho. Escuto essa conversa desde que cheguei na França.
- Então, meu amigo brasileiro, proponho que deixemos esses estereótipos pra lá.
- Abaixo os estereótipos!
- Vamos celebrar o fim deles.
- Celebremos.
- Levante o braço e grite “fim aos clichês!” comigo.
- Olha, meu caro francês, gritar eu até grito. Mas tem certeza de que é uma boa ideia você levantar o braço, hein?

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

À la brésilienne

- Je suis désolé, monsieur, mas isso não pode ser feito.
- Como assim, não dá?
- C’est pas possible.
- Não dá pra dar um jeitinho?
- Como assim, um jeitinho?
- Um jeitinho é uma maneira brasileira de resolver o que não pode ser resolvido. Mas não significa, no entanto, que a coisa será definitivamente resoluta.
- Você está me dizendo que você quer que eu invente uma solução para algo aparentemente insolúvel e no fim das contas ela não vai solucionar o problema?
- Vai resolver o meu problema, que é a questão nesse momento.
- Mais c’est incroyable!
- Eu também acho. Inacreditavelmente simples, né? Estamos acertados?
- C’est incroyable a sua cara de pau. Você quer que eu mude as regras para se adaptarem às suas necessidades!
- Eu não diria “mudar”. Vamos trocar por “humanizar”. É mais bonito e cai super bem na França, onde vocês adoram uma filosofiazinha.
- Então, pela sua lógica, se eu tirasse a sua multa eu seria mais humano?
- Duplamente. Fazendo esse favor, você se mostraria uma pessoa melhor e de quebra ainda ganharia um amigo.
- Quem?
- Euzinho.
- Mas eu não quero sua amizade.
- Como assim?
- Eu nem sei quem é você.
- Antônio, a seu serviço.
- Não quero ser seu amigo, Antoniô.
- Puxa, tá bom...
- Ei, também não precisa chorar.
- Vocês, franceses, são muito frios. Bem que minha mãe me disse pra não vir pra cá, que o Brasil era muito melhor, que a torre de Brasília era muito mais bonita que a Eiffel, que a poluição do Tietê era muito mais escura que a do Sena, que...
- Calma, Antoniô. Vamos fazer o seguinte: pra você parar de me perturbar, eu finjo que não vi o seu carro e você vai embora daqui, ok?
- Jura que você vai fazer isso por mim?
- Juro.
- Você não imagina como fico feliz! Pra agradecer, te convido a ir lá em casa hoje à noite. Vai ter feijoada com caipirinha.
- Hmmm, adoro caipirinha, mas não sei se devo.
- Deve, deve. Afinal, somos amigos ou não?
- Somos?
- Claro que somos!
- Bom, d’accord. Vou aceitar o convite.
- Feito. Passa lá às 20 horas. Não precisa levar nada. Beijomeliga!

Vrummm.

- Antoniô, você não me deu o endereço. Antoniô!!!