sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Autour de Paris VI - Saint-Germain-des-Prés


Mochila nas costas e iPod no ouvido, People are Strange no volume máximo, ele calculava quantas estações ainda faltavam até a Gare du Nord, onde pegaria um trem para Amsterdã. Estava tranquilo, pois pela primeira vez na vida chegaria adiantado.

Aí seu olhar cruzou o dela. Devia ter sua idade, uns 18, 19 anos, estava meio descabelada, usava óculos de aro grosso e vestia umas roupas coloridas que não combinavam com nada. Não era bonita, mas também não era feia. Uma dessas meninas que passam quase desapercebidas, ainda mais perto das “bombas ambulantes de hormônio”, que era como ele classificava as garotas dotadas de atributos físicos mais generosos.

Só que algo bateu. Talvez o sorriso, as covinhas na bochecha ou até a maneira dela mascar chiclete. Ele não sabia o que tinha sido. Sabia que tinha batido tão rápido e certeiro que quando ela desceu do metrô ele desceu atrás, nem sabia qual estação era.

Saíram em frente à igreja de Saint-Germain-des-Prés, a mais velha de Paris, construída no ano 558. Ele mantinha uma certa distância pra não dar muito na cara, mas a verdade é que a estava seguindo.

Ela parou para aproveitar de um raio de sol que banhava seu rosto, fechou os olhos e sorriu. Ele fingiu trocar a música do iPod e depois simulou amarrar os cadarços do surrado All Star.

Menos de um minuto depois, ela olhou para o relógio e dirigiu-se para a igreja. Ele esperou que ela entrasse e tomou o mesmo rumo. Não a encontrando lá dentro, decidiu sentar em um dos bancos localizados perto da porta. Ela surgiu do nada, sentou ao seu lado e cochichou.

- Eu vi a Patti Smith.

Ele não esperava que ela lhe dirigisse a palavra. E muito menos que falasse de Patti Smith que, como todo roqueiro que se preze, ele bem sabia quem era. Ficou tão nervoso que acabou dizendo uma bobagem.

- Patti Smith, a santa? Apareceu pra você?

Ela riu.

- Não, bobinho. A Patti Smith, poeta, compositora, cantora. Fez parte do pré-punk de Nova Iorque, andava com o Lou Reed, o Iggy Pop, o pessoal do MC5. De santa eu acho que ela não tem nada. Eu a vi aqui, nessa igreja.

- Rezando?

Novamente ela sorriu. Não com desdém, mas cumplicidade, o que o deixou mais tranquilo.

- Foi um show, há dois anos, em uma Nuit Blanche. Cheguei tarde e já não tinha mais lugar, então sentei no chão, em frente ao palco improvisado no altar. Uma hora ela parou de tocar e sentou ao meu lado. Foi como um milagre.

- Você a tocou?

- Eu não! Tinha medo de ser um sonho que acabaria se eu a tocasse.

Eles se olharam mais uma vez nos olhos. Dessa vez permaneceram incontáveis segundos se encarando. Ela o convidou para tomar uma cerveja ali por perto. Ele topou. Conversaram sobre Patti Smith, Lou Reed, Joy Division, The Smiths, Echo & the Bunnymen, Wilco e The Flaming Lips. Sobre Liverpool, Manchester e Nova Iorque. Sobre Stratocaster, Rickenbacker e Les Paul.

A conversa fluia docemente. Ele até chegou a pensar “se esse momento fosse uma canção, seria The Killing Moon”. Pediram mais uma cerveja e continuaram o papo, agora evocando a “old school” de The Kinks, The Byrds, The Zombies e The Small Faces. Ela era perfeita, ele se dizia. E ela achava o mesmo dele, tanto que mais uma vez ela deu um sorriso e fechou os olhos, agora fazendo um biquinho que só uma francesa sabe fazer, pedindo um beijo sem pedir.

Ele olhou pra ela, sentindo-se feliz como poucas vezes na vida, levantou-se, puxou uma nota amassada do fundo do bolso e a colocou em cima da mesa. Ela não entendeu bem o que estava acontecendo. Tentou dizer algo, mas ele foi mais rápido.

- Você é como um milagre. Tenho medo de te tocar e esse sonho se acabar.

E correu para o metrô, pois ainda tinha tinha um trem pra Amsterdã e já estava atrasado.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Autour de Paris V - Les Arènes de Lutèce


Nas Arènes de Lutèce, verdadeiras arenas romanas do século I escondidas em pleno centro de Paris, duas crianças conversam.

- Meu pai me contou que gladiadores desse tamanho lutaram exatamente aqui, muitos e muitos anos atrás.
- O que é um gladiador?
- Gladiador era um homem que pesava muitão, que carregava uma espada que pesava muitão, um escudo que pesava muitão e vestia uma armadura que pesava muitão e que por levar todo esse peso virava comida de leão.
- Noooossa. O que mais esses gladiadores faziam?
- Meu pai conta que havia batalhas de um contra o outro e só o mais forte sobrevivia.
- Mas por que eles lutavam?
- Pra divertir o imperador e distrair o povo.
- Não era melhor o povo ficar em casa vendo futebol?
- Ai, você é burro, hein? O povo não tinha dinheiro e o futebol naquela época passava só na TV a cabo.
- Como é que você sabe que o povo não tinha dinheiro?
- Se as pessoas tivessem dinheiro você acha que elas se vestiriam com aqueles poucos panos sobre o corpo e aquelas sandálias horríveis de hippie velho?
- É mesmo.
- Meu pai conta ainda que o pai do pai do pai dele era um gladiador.
- Também virou rango de leão?
- Não, o pai do pai do pai do meu papai era um gladiador muito muito forte.
- E por que ele virou gladiador?
- Porque assim ele podia se transformar em alguém importante.
- Não era mais fácil participar do Big Brother?
- E também porque podia depois comprar a liberdade dele.
- Se fosse pra comprar um video-game de última geração eu até entendia.
- Meu pai me diz que naquela época o mais importante era a força, mas que as pessoas aprenderam a dialogar e isso virou coisa do passado.
- Como eles eram brutos.
- Eram sim.
- Inclusive o pai do pai do pai do seu pai.
- Esse não.
- Era sim, como todos os outros.
- Não era não!
- Era sim!
- Era não, seu bobão.
- Era sim, seu idiota.
- Ai, você me chutou!
- Tira o dedo do meu olho!
- Meu cabelo, larga o meu cabelo...
Ps1: Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

Ps2: Hoje enfrentei hoje uma batalha (como os gladiadores), e queria compartilhar isso com os leitores do blog: apresentei a minha tese e agora sou mestre em jornalismo cultural pela Sorbonne!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Autour de Paris IV - La place des Vosges

Antes de qualquer outra coisa, aperte o play abaixo.
(Yves Montand - Les feuilles mortes)




Na place des Vosges as folhas amarelas caem das árvores em um lento balanço rumo ao chão, já repleto delas.

Um funcionário da prefeitura as aglomera em grandes montes, em cima dos quais eu adoraria me jogar se ainda fosse criança, como eu fazia com as porções da grama recém-cortada na minha infância em Brasília. Seu trabalho hercúleo é ainda mais complicado porque o vento teima em espalhar a folhagem agrupada.

O outono definitivamente chegou. Assim como esse ano a estação não teve pressa em se instalar, o empregado também não demonstra urgência em terminar sua tarefa. Ele deve saber que, por mais folhas que recolha, sempre haverá mais e mais caindo. Inevitavelmente penso em Prometeu, o semi-deus grego que entregou o fogo aos homens e por isso foi condenado a passar 30 mil anos tendo seu fígado comido por uma águia de dia e reconstituído à noite.

O funcionário abarrota um contêiner e vai descarregá-lo em uma espécie de gaiola criada para isso, onde um colega pisa nas milhares de folhas reunidas, compactando-as em uma dança desconjuntada na qual seu pé às vezes afunda demais, às vezes desliza em um quase tombo, que nunca se concretiza.

Do outro lado da praça, um terceiro trabalhador manipula dois ancinhos com imensa habilidade, e não demora a preencher seu próprio contêiner. Labuta cumprida, ele enfia seus instrumentos de trabalho na grande caixa, com os cabos para baixo, deixando visíveis apenas as bases, espécies de vassoura em metal. De longe, tenho a impressão de ver dois espantalhos. Por via das dúvidas, os poucos pombos que ainda não se recolheram com a chegada do frio nem passam perto.

O vento sopra mais uma rajada e algumas folhas sustentam-se um segundo no ar, antes de pousarem suavemente em cima de mim. No outono a vida anda mais devagar. Essa época do ano, como diz uma amiga, é mais do que uma estação. É um estado de espírito.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Autour de Paris III - Le marché des Enfants Rouges


No marché des Enfants Rouges tem um velho fotógrafo que vende cartões postais com imagens antigas de Paris e tira jurássicas polaróides dos interessados. Pelos preços que ele pratica, quando você cruza a porta da sua loja o seu dinheiro também parece virar antiguidade.

No marché des Enfants Rouges tem um vendedor de frutas e legumes bio, um peixeiro bio, um padeiro bio e uma rotisseria que espalha o cheiro de fritura por todo o mercado e deixa os bios com aquela cara de bio chorão.

No marché des Enfants Rouges tem uma tratoria chinesa, uma tratoria italiana, uma tratoria marroquina e mesmo uma tratoria francesa. É a globalização no trato rápido à fome.

No marché des Enfants Rouges eu já vi uma menina dar uma flor pra sua mãe, um namorado dar uma flor pra sua amada, um galanteador dar uma flor pra sua paquera e um cachorro alucicrazy destroçar um buquê que um vacilão deixou em cima da cadeira.

O marché des Enfants Rouges, criado em 1615, é o mais antigo mercado de Paris. Uma vez havia por lá que era tão velhinho, tão vetusto, que tenho certeza estava na festa de inauguração do lugar.

O marché des Enfants Rouges está na moda em Paris e é um desses lugares que resume a França em si mesmo. Porém, aos sábados ele é tão cheio que nenhum parisiense arruma uma mesa, nenhum parisiense consegue andar entre os estandes, nenhum parisiense descola nada pra comer. Aos sábados, no marché des Enfants Rouges, os parisienses só conseguem reclamar, o que pra uma parte deles já está de bom tamanho.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Autour de Paris II - Passage des Panoramas


O bom de estar em Paris é que Paris não se cansa de me surpreender. Moro aqui há 3 anos e meio e toda vez que vejo monumentos como a torre Eiffel e a Notre Dame, que já vi milhões de vezes, me dou conta disso e penso “caramba, estou em Paris!”.

Esse tipo de sensação acontece o tempo todo, quando descubro um jardim escondido, uma rua charmosa ou um restaurante imperdível. E hoje aconteceu de novo.

Peguei uma vélib e saí em direção à Bourse, a bolsa de valores, localizada no 2ème e escolhida para essa segunda crônica sobre os bairros da cidade. Porém, com meu aguçado senso de não-direção, acabei parando longe de onde havia planejado. Tant mieux, pois no caminho topei com a Passage des Panoramas, a mais antiga passagem coberta de Paris.

A Passage des Panoramas foi criada em 1799, para que os parisienses pudessem fazer compras abrigados da chuva e da sujeira da cidade, que não tinha esgoto na época. Hoje serve como uma espécie de galeria, cheia de restaurantes, algumas lojas de filatelia e com um climão que me lembra a Galeria Menescal do Rio de Janeiro, onde se encontra a 2ª melhor esfirra da história das esfirras. A melhor está não muito longe dali, na Galeria Condor, no Largo do Machado.

Cheguei perto da hora do almoço, e o cheiro de comida vem de todos os lados. Do restaurante italiano, onde estou e bebo apenas um café, sobe um aroma de manjericão fresco. Do indiano da frente, de curry. Do francês logo ao lado não vem cheiro nenhum, mas o cardápio do dia sugere um “carré de cochon rôti de Paul Legros”, um pedaço de porco grelhado de Paul Legros, Paul o gordo, em português. A dúvida que me bate é se o porco é do Paul, é preparado pelo Paul ou é o próprio Paul. A não conferir.

Ao meu lado, uma senhora fala do marché d’Aligre para o italiano dono do restaurante, e conta a ele maravilhas dos legumes bio que se encontram por lá. Bio – biô, pra eles - é a nova moda francesa. Todos os bo-bos, os bourgeois-bohème, comem biô e se acham super naturebas, enquanto acendem mais um cigarro.

Pouco depois surge um sujeito mais velho, de muletas, e senta-se mais perto do balcão. O italiano faz jus à fama do seu povo e dirige-se a ele num quase grito.

- Ei, pra você nós estamos fechados.
- Eu não quero nada dessa birosca não, só sentar nessa cadeira podre aqui.

Eles sorriem, se abraçam e o dono vai buscar um café para quem parece ser um amigo de longa data, que o bebe com gosto e agradece.

O italiano, feliz da vida, volta pro seu balcão cantando.

- Amore, amore, amore!!!

Paris não se cansa de me surpreender. A poesia está em cada uma de suas esquinas.

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