sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Teses musicais 4 - Rolling Stones


De volta a Paris, continuo enfurnado na minha tese, que parece não ter fim. Em uma pausa, me deu vontade de escutar Rolling Stones. Sympathy for the devil, pra ser mais exato. Não entendia porque essa música estava há alguns dias na minha cabeça, mas foi só eu colocá-la pra tocar que me veio o clique: Sympathy for the devil é a mais brasileira música dos Stones (clique no player abaixo para escutá-la).



A percussão do começo é um ponto de macumba, e poderia numa boa estar no disco Os afrosambas, de Baden e Vinícius, um dos meus dez preferidos de todos os tempos. É bom lembrar que Sympathy for the devil foi escrita, não por acaso, depois de uma viagem do grupo ao Brasil, em 1968. O livro Sexo, drogas e Rolling Stones, dos jornalistas José Emílio Rondeau e Nélio Rodrigues, conta que Mick Jagger foi à Bahia e lá “ouviu o batuque e viu a dança da cerimônia da lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim, o que resultou na base percussiva que sustenta o clássico”.

Já os backings, repetidos a música quase inteira, não são africanos. Estão mais para ritos indígenas. Ritos como os que Villa-Lobos afirmou ter presenciado quando teria sido capturado por uma tribo selvagem. Segundo seu relato, os índios, canibais, o prepararam durante três dias para um banquete, no qual ele seria o prato principal. Escapou por milagre.

Essa história, completamente inventada por Villa-Lobos, foi contada em um sensacional artigo da jornalista francesa Lucie Delarue. Escrito em 1927, Musique cannibale (Música canibal) contribuiu para aumentar a fama parisiense do compositor brasileiro, então radicado na cidade luz, e para atestar ao público e crítica franceses sua ligação com a cultura primitiva brasileira.

Isso me traz de volta à minha tese, que estuda como a imprensa francesa tratou três grandes compositores brasileiros que moraram em Paris. Além dos citados Baden Powell e Villa-Lobos, falo também de Hamilton de Holanda, aqui chamado “o príncipe do bandolim”. Tenho passado as últimas semanas analisando a minha própria cultura por meio de lentes estrangeiras. Nesse processo, extremamente revelador, aprendo tanto sobre os franceses, que nos analisam, como sobre nós mesmos, os analisados.

Como disse Oswald de Andrade, “a antropofagia nos une”.

Agora dá licença, que vou colocar a música pra tocar de novo.


Leia os outros textos das teses musicais:
. Baden Powell
. Villa-Lobos
. Hamilton de Holanda

sábado, 21 de agosto de 2010

Teses musicais 3 - Hamilton de Holanda


A tese avança a passos galopantes, enquanto o verão caminha para o seu fim. Ainda tem um mês de calor, é verdade, mas a rentrée, a volta das férias, é daqui a duas semanas. Depois, vida normal. Enquanto isso, faço das minhas pausas escritos para compartilhar aqui, como esse.

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Las Abejas, de Hamilton de Holanda e Marco Pereira (clique no player abaixo para escutá-la)



O texto das teses musicais dessa semana deveria ter sido o que escrevi enquanto escutava a música acima, em frente ao rio mais frio em que já me banhei – ouvi dizerem que a água estava a 15ºC. Mas ontem à noite, quando já estava na cama, os vizinhos da casa ao lado, a única das redondezas além da que alugamos, onde nem celular pega, começaram a tocar e cantar música brasileira na varanda deles.

“C’est quand même curieux”, é realmente curioso que, enquanto faça um longo estudo sobre como os franceses, principalmente a imprensa, percebem a música brasileira, aconteça um episódio assim.

- Ôlha, ele diz “a lágrima clara sobre a pele escura”. C’est de la poésie. – Explica o cantor, francês mas falante de português com sotaque, a um francófono puro.

Tirando pela bandeira do Brasil que pendurou na janela, ele parece saber que a poesia da música brasileira não está apenas nas letras de Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso ou Noel Rosa. Ela está na sua origem, na mistura das culturas africana, indígena e portuguesa. No savoir-faire de reciclar as influências e transformá-las em algo com a nossa cara, como aconteceu com o choro, filho da polka.

Nos anos 20 e 30, Villa-Lobos mostrou um novo mundo sonoro aos conterrâneos de Napoleão. Mais tarde, nos anos 60 e 70, Baden Powell ajudou a consolidar de vez a música brasileira na terra de Debussy. E recentemente, no começo do milênio, Hamilton de Holanda catapultou sua carreira internacional a partir de uma temporada em Paris.

Os três fizeram de suas temporadas na França momentos cruciais em suas obras. Os três são os personagens da minha tese, que, escrita longe do meu país, me tem feito aprender tanto sobre como nós somos e como somos percebidos. O que, com um pouco de ufanismo confesso, me faz sentir um grande orgulho.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Teses musicais 2 - Villa-Lobos


Continuando o projeto Teses Musicais, inaugurado semana passada, dessa vez o texto pensado durante a audição de uma música foi feito na região das Cévénnes, na França, onde deveria estar aproveitando do verão e não enfiado em mundos de livros e artigos a ler e uma tese a escrever.

Então, ramolá.

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Choro nº 1, de Villa-Lobos (clique no player abaixo para escutá-la)



Aperto o play no iPod. Essa música faz parte dos choros de Villa-Lobos. É o primeiro, e o meu preferido. Nas leituras para minha tese, descobri que o compositor decidiu chamar choros uma série de músicas que havia composto simplesmente pelo fato de o nome soar bem aos ouvidos franceses, pois ele morava em Paris na época. Do ponto de vista musical, algumas dessas obras nem choro de verdade são. Já do ponto de vista publicitário, ele foi perfeito.

Ao longe, uma criança chora. Da mesa da varanda, de onde não levanto há 3 dias, vejo a velha da casa da frente passar pela porta, atravessando a cortina de cordas. Ela olha pra mim e retorna para onde saiu.

O sino da igreja soa oito badaladas e insiste em concorrer com a música. De madrugada, ele insiste em concorrer com o meu sono, pois continua a bater de hora em hora. Na noite passada, ganhou.

O sol bate no pico da montanha que tomba por detrás de uma casa. Essa região é muito bonita, com morros por todos os lados. Ispagnac, a cidade onde estou, fica em um vale verde de impressionar. Saco a câmera para registrar o momento e faço a foto ao lado.

Nessa pausa da vida, o violão também concede um segundo de silêncio. No mesmo instante, ambos retomam seu ritmo irregular, que faz a beleza da existência e desse choro.

Villa-Lobos é o primeiro músico brasileiro conhecido no mundo inteiro. Assim que ele chegou a Paris pela primeira vez, a imprensa francesa não sabia como tratar sua música. Para descrevê-la, passou a usar comparações com a natureza do Brasil, da qual só havia ouvido falar, como "forte", "gradiosa" e "primitiva". Espero, o próprio compositor se aproveitou desse deslumbre como fonte de promoção e se descrevia como "selvagem, mas um bom selvagem".

Intrigada com sei lá o quê, a vizinha dá as caras novamente, e logo decide voltar e ligar a televisão.

E eu? Eu retorno à minha tese.

sábado, 7 de agosto de 2010

Teses musicais 1 - Baden Powell


Teses de mestrado e procrastinação brasileira são duas coisas que não combinam. Eu sou a prova (semi) viva disso. Quando a tese deve ser escrita em outra língua, o treco piora muito. E quando é pra daqui a 30 dias e só a introdução está pronta, o modo "pânico" é imediatamente ativado.

Tudo isso pra dizer que até a minha vida voltar ao normal, esse blog vai passar por uma fase diferente. As crônicas semanais de sexta-feira continuam pontuais, como essa publicada no sábado. Mas serão vapt-vupt, escritas enquanto escuto uma, e apenas uma, música de Villa-Lobos, Baden Powell ou Hamilton de Holanda, os compositores de quem falo na minha tese.

Voilà la première, escrita no trajeto Paris-Marseille em TGV.

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Tributo ao amigo Pedro Santos, de Baden Powell
(clique no player abaixo para escutá-la).





Solto a música, parte do ao vivo Baden Powell à Paris. Adoro viajar de TGV no verão, por volta das nove da noite. Ainda tem muita luz, e ela vai baixando devagar, pegando tons dourados. É a luz mais bonita do dia.

Pela janela, vejo as linhas elétricas que acompanham a linha do trem. De um poste a outro, os fios baixam e levantam, conforme a máquina avança. Desde criança gosto de observar esse movimento, me lembra as ondas do mar.

Passamos por um campo vazio, parece que a colheita foi feita há pouco tempo. Não há mais plantação, apenas o solo marcado, algumas árvores ao longe e um trator parado perto de uma casa.

Um pouco mais e atravessamos uma vila, parecida com tantas outras que existem na França. Pequena e toda arrumada, com casas, igreja, praça e poucas ruas. Sempre que passo por uma cidade dessas a imagino como cenário de um filme. A primeira sequência seria um sujeito de boina andando na rua com a baguete embaixo do braço. A última seria ele viajando a Paris para assistir a um jogo, no qual o Brasil derrotaria a França por 6 x 0, com dois gols contra do Henri.

Na pista paralela, outro TGV passa em direção contrária e dá pra sentir pelo balanço do nosso trem. Se somarmos a velocidade dos dois, dá mais de 600 quilômetros por hora. Fim do parágrafo "físico frustrado".

No iPod, Baden Powell começa seu solo infernal. Pra mim, trata-se do maior violonista de todos os tempos. Sabe aliar a técnica de um Paco de Lucia ou um Segóvia com um sentimento, feeling na linguagem de guitarrista, que só ele tem.

Rumo ao sul, a paisagem vai mudando rapidamente. Outros campos se sucedem, alguns têm rolos e rolos de feno empilhados, reserva de comida para os animais no inverno. A paisagem, só nesse instante, lembra os filmes de western.

Mais à frente, vejo as primeiras vacas do trajeto. Uma coisa bacana na França é a importância dada aos pequenos produtores rurais de queijos, salames, vinhos, frutas. Os franceses os apreciam e sabem valorizá-los.

O céu está azul e há poucas nuvens. Uma delas tem a forma de um zepelin e depois se transforma em baguete recheada. Passamos por um grande e verde vale, arborizado e muito bonito.

Nesse instante, Baden acaba sua grande prestação à música. No mesmo instante, o sujeito da poltrona ao lado retorna e tapa a minha visão da janela. Volto pra minha tese.