sexta-feira, 28 de agosto de 2009

San Giovanni a Piro

Começada em Paris, a caravana dos Cariello passou por Marseille e depois chegou a Roma, a partir de onde veio a ser reforçada com a presença do meu pai. O rumo seguinte e de onde escrevo nesse instante, a pequena San Giovanni a Piro, no sul da Itália, é uma espécie de Meca da família. Foi daqui que partiram meu bisavô e minha bisavó, há um século, em direção ao Brasil. Chegaram a São Paulo e depois instalaram-se no Rio de Janeiro, onde nasceu meu avô paterno. E mais tarde mudaram-se para Vitória, terra natal do meu pai.

San Giovanni a Piro é um vilarejo do qual ouço falar desde pequeno. E no meu universo infantil construí a imagem de um lugar velho e escuro. Afinal, se meus antepassados o abandonaram é porque devia haver algo errado. Mais velho descobri que esse "algo errado" era a forte crise pela qual a Itália passava na época, causa de um enorme êxodo populacional, principalmente em direção ao Brasil e aos Estados Unidos. Mas a pintura construída na infância permaneceu na minha mente.

Nossa chegada ao vilarejo, perto da meia-noite, ajudou a reforçar essa impressão de abandono. Poucos dos cerca de dois mil habitantes estavam na rua, o que é bem compreensível em um lugar desse tamanho.

Na manhã seguinte, o sol brilhava. E os rostos e espíritos foram se mostrando aos poucos. Como na casa de Francesco Cariello, um primo distante. Meus pais já haviam estado um par de vezes na cidade, com dois dos meus três irmãos, e conhecem muitos endereços e pessoas. É meu pai quem toca a campainha. Vincenza, esposa de Francesco, atende. Ela abre a porta e um enorme sorriso.

- Orlando!
- Vincenza!
- Comme stai?
- Tutto benne. E voi?
- Tutto benne. Há quanto tempo... Francesco não está, mas volta logo.

No mesmo instante, nosso primo vira a esquina em seu velho carro. Nem bem acabamos os cumprimentos e já haviam chegado mais parentes. E logo outros mais. Não sei como ou de onde vieram. Em poucos minutos éramos quinze Cariellos conversando (ou tentando) animadamente, como velhos conhecidos. Ou como a família que somos. Fomos embora deixando abraços efusivos e a promessa de voltarmos a nos encontrar.

Depois do almoço, instalamo-nos na varanda do Albergo La Pergola, o maior (senão único) hotel local. E as visitas, de surpresa ou não, sucederam-se em perfeita sincronia. Vincenzo, que está aprendendo português para falar com o ramo brasileiro da família. Rosalia, a moça simpática que não é prima, mas é como se fosse. Filippo e sua esposa Maria, famosos no nosso núcleo familiar por terem oferecido uma refeição de 7 pratos na primeira visita dos meus pais, em 2003.

Entre uma aparição e outra, Charlotte e eu decidimos dar uma volta de reconhecimento da cidade, fundada em torno do ano 900, em uma área elevada (a Piro significa "no alto") e perto do Mediterrâneo. A vista para o belo Golfo de Policastro é de emocionar. Ainda mais quando penso que desse mesmo mar meus bisavôs partiram para o Brasil, há mais de 100 anos. E neste país distante e desconhecido fundaram uma família. A minha família.

Embrenhamo-nos nas ruelas de San Giovanni a Piro, entre escadas, pequenos becos e varais com roupas secando. Entre velhos conversando e crianças brincando. Entre cachorros e gatos aparentemente sem donos. Entre grandes sobrados e pequenas moradas, todos com as portas abertas. E cumprimentando os que cruzávamos.

- Buona sera!
- Buona sera!

Um pouco ao longe, avistei uma pequena família. Os pais sentados no batente em frente a uma casa. O filho divertindo-se com seu carrinho.

- Buona sera!
- Buona sera!

Na hora, pensei nos meus bisavós, nunca mais retornados à terra natal, e principalmente no meu avô, que morreu sem ter conhecido suas origens. Se tivessem permanecido em San Giovanni a Piro, talvez se parecessem com aqueles ali. E não é que havia mesmo uma semelhança daquele bambino com as antigas fotos do pai do meu pai?

Olhei para trás, para vê-los mais uma vez. O menino parou de brincar e passou a me fitar. Também fixei a vista nele, que sorriu pra mim e piscou com o canto do olho, em uma cumplicidade ancestral. Virei pra frente e continuei meu caminho, sorrindo.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Um pateta na Eurodisney

Tá bom, eu confesso: fui à Eurodisney. Se os franceses, que se orgulham de um suposto antiamericanismo, podem, eu posso também. Não é bem um programa que eu tenha planejado fazer. Mas aconteceu de a família vir me visitar, e a Gabriela, minha sobrinha, veio também. No alto de seus quase 3 anos, ela decidiu sozinha e antecipadamente o roteiro do primeiro passeio coletivo: "eu quero visitar a casa do Mickey!". Ninguém ousou discutir.

Despencamos então rumo à filial européia do reino de Walt Disney. E, olhem que legal!, outras 50 mil pessoas fizeram o mesmo, compartilhando conosco um dos dias mais quentes dos últimos anos em Paris, quando os termômetros beiravam os 40 graus. Se o sol a pino garantia a temperatura alta, todos os milhares de amigos do Pluto e do Pinóquio asseguravam um pouco mais de calor, dessa vez humano.

Ali, todos os detalhes remetem a um mundo de magia e de sonho. Mas as filas, essas, são bem reais. Uma volta nas orelhas do Dumbo, por exemplo, exige 60 minutos em pé. A rodada nas xícaras do Chapeleiro Maluco requer outros 45, além de um estômago forte. E se um visitante mais aventureiro desejar explorar as cavernas de Indiana Jones a bordo de uma montanha russa, precisará antes encontrar o Santo Graal da paciência, pois a sentada no carrinho que sobe, desce e dá loop não ocorre antes de uma hora e meia de espera. "Quatre-vingt-dix minutes, monsieur".

A porta da Fantasy Land, a terra da fantasia e ala dos brinquedos infantis, é o castelo da Bela Adormecida. Aquele que a gente vê soltando fogos de artifício nos programas de tevê. Só que enquanto a perua dorminhoca fica lá dentro, roncando por 100 anos, a patetada toda se acotovela do lado de fora. A quantidade de gente amontoada é tão grande que levaria um desavisado a pensar tratar-se da distribuição do sopão comunitário. Mais do que "pagar um mico", quem se aventura por ali acaba mesmo por "pagar um Mickey".

Mas o mais bacana é o lado democrático daquela parada toda. Qualquer um pode levar para casa um pouco da atmosfera onírica lá encontrada. Basta dizer "alakazumba" e abrir a carteira para sacar o cartão de crédito. Aí o sujeito compra para o filho aquela fantasia bacana do Peter Pan, por módicos 70 euros, que vai pinicar o moleque e acabar os dias mofada no fundo de uma gaveta. Mas se o cidadão possuir economias mais modestas, ainda assim terá a chance de presentear o pimpolho com uma lembrança. Como uma miniatura esquecida da Clarabela, em promoção por menos de 20 euros. E não importa se o coitado não conhece a Clarabela. "Não reclama, pirralho, é da Disney!".

Todo esse ambiente vai te inebriando, tomando conta de você, até chegar a hora do clímax: o show com os personagens criados pelo honorável senhor Walt. Eles cantam, eles dançam, eles falam em francês e em inglês, e eles são apenas... eles. Isso mesmo. Não há sinal de Minie, Margarida ou qualquer figura feminina. Apenas o macho adulto branco (ou o rato adulto preto e branco) no comando. Se na França as mulheres conquistaram direitos iguais aos dos homens há algumas décadas, no país Disney, sem fronteiras físicas, a revolução ainda não chegou.

No fim da jornada, a Gabriela exibia um sorriso lindo de felicidade, que fez tudo valer a pena. Mesmo assim, na terra do rato Mickey, tive a impressão de que o pato era eu.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A impressionante Edith

Nas nossas conversas, quase monólogos, a Edith costumava abrir o hypertexto "imprimantes".

- Daniel, você conhece um pouco sobre impressoras?
- Sim, eu...
- Ótimo. Poderia me ajudar a escolher uma?
- É claro. Basta a gente...
- Que bom! Sabia que podia contar com você. Quando estaria disponível?
- Me liga quando você...
- Tu es un gentil garçon. Isso me fez lembrar de uma história que não te contei ainda. Tem tempo pra um café?

O "tem tempo para um café" é uma senha que significa, por baixo, mais uns 30 minutos de papo. A não ser que a minha vizinha faça uma improvável pausa no meio, onde dê para encaixar um "pardon, preciso ir agora, estou atrasadíssimo". Geralmente não dá.

O curioso é que, apesar de sempre mencionar a necessidade de uma impressora, ela acabou nunca me telefonando. Então eu acreditava ser esse apenas mais um dos assuntos do seu repertório, vasto repertório.

Se tagarelar é a atividade preferida da Edith, a segunda é sem dúvidas cuidar para que o mundo funcione bem. Isso inclui participar de forma engajada da associação do bairro, onde ajuda a organizar refeições slow food, projeções seguidas de debates ou ateliers de pintura abstrata. Marcar presença em todas as manifestações possíveis, pois, "a gente tem que protestar contra esse governo, contra a tirania americana, contra a exploração do povo, contra esses políticos corruptos, contra...". E ainda assumir a administração sindical do prédio no qual mora, onde morei também, mesmo que não seja paga para isso. Afinal "esse síndico é um banana, não faz nada, bla bla bla".

Ela é a única pessoa a ter as chaves do quadro de avisos do imóvel, e constantemente há novas mensagens, sempre manuscritas. Por ela, claro. Coisas como "Por favor, separe adequadamente o lixo. O gari não é pago para fazer o serviço que VOCÊ deveria fazer" ou "Não atire objetos pela janela. Se alguém se ferir, você será responsabilizado".

Eis q'um dia precisei voltar ao meu antigo prédio, a apenas 100 metros de onde moro atualmente, para aguar as plantas de uma amiga em viagem. E deparei-me com um enorme recado, desta vez fixado dentro do elevador. Mas a principal diferença é que estava impresso e em cores.

O conteúdo era algo sobre não deixar os objetos velhos nas partes comuns do edifício, visto que no verão muita gente aproveita para comprar móveis novos e acaba largando os antigos na garagem. A mensagem terminava com "Não nos deixe seus móveis de lembrança. Ligue para o serviço da Prefeitura de Paris. É fácil e gratuito". Assim mesmo, gratuito em destaque.

Dias depois cruzei com a minha vizinha na rua.

- Edith, você comprou enfim uma impressora?
- Comprei. Como você sabe?
- Palpite.
- A propósito, Daniel, tem tempo pra um café?
- Um café? É que hoje...
- Ótimo. Vamos lá no Omar. É por minha conta. Tenho mesmo várias coisas pra conversar com você. Não sei se já te contei que uma vez provei Guaraná Antártica, que minha avó era brasileira, que adoraria conhecer o Rio...

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Agosto em Paris

É agosto em Paris. Estranhamente, é agosto em todo canto do mundo. Em Brasília, época da seca de rachar lábios. No Rio, fim de um inverno de poucos dias. Aqui, período da diáspora, quando grande parte dos parisienses faz as malas e parte rumo ao sul.

As ruas estão vazias. O marché d'Aligre conta com metade dos feirantes, e estes gritam ainda mais forte na disputa pelos clientes que ficaram. O vendedor de frutas exóticas - exóticas para eles - como mamão e manga dirige-se a mim em um português simpático e carregado de sotaque e de esforço.

- Tudo bom?
- Tudo. E você?
- Um manga hoje? Muito bom o manga.
- Não, obrigado. Outro dia.
- Comment?
- Un autre jour. Merci e um abraço.
- Um abraço!

Andando pelo Faubourg St. Antoine, rumo à Bastilha, há espaço de sobra nas calçadas normalmente disputadas. Pedestres caminham despreocupadamente. O sol, outrora fugido e agora fúlgido, garante a temperatura de 31ºC. A maioria escolhe o lado do passeio abrigado pela sombra. Eu e mais alguns poucos preferimos receber seus raios diretamente no rosto. Duas amigas, na casa dos 70 anos, atravessam aflitas e cansadas em busca de um refúgio contra o calor, e deixam um pouco de seu lamento pelo caminho.

- Vamos entrar naquele café. Todo esse sol me cansa.
- Concordo. Eu prefiro o inverno.
- O inverno também me cansa.

A metade das lojas está fechada e exibe um singelo manuscrito afixado na parte de dentro da vitrine: "Estamos de férias. Voltamos no fim de agosto. Cordialmente". No verão a França divide-se perante uma questão existencialista. De um lado os juilletistes, que viajam em juillet, julho. Do outro os aoutiens, que preferem partir em août, o mês de agosto. Não há dúvidas, os aoutiens são maioria. Com a curta duração da estação, há uma fuga em massa das grandes cidades e de seus engarrafamentos nos bulevares, metrôs lotados e filas no Franprix. E como todo mundo partiu para as mesmas praias, lá criam novos engarrafamentos nas avenidas costeiras, superlotam os metrôs e ônibus e se font chier com as filas no Franprix.

Os franceses das mais diversas regiões adoram dizer que Paris é muito melhor em agosto, quando os parisienses não estão na cidade. Eu também gosto dessa época, principalmente porque a vida acontece nas ruas, nos parques, em Paris Plages, nos festivais diversos e gratuitos, no cinema ao ar livre, nos passeios descompromissados de Vélib', num almoço na varanda, em dias com luz até 10 da noite.

- O que a gente faz hoje?
- Sugiro irmos à esquina dar um alô pro verão.
- Ótima pedida!

Até o fim do mês a cidade continua assim. Muitas empresas e órgãos públicos trabalham em sistema de meia jornada. Cinemas estão vazios. Netos partem para ver os avós. Políticos e ladrões diversos saem de recesso. Ônibus circulam com menos frequência. Imigrantes vão visitar as famílias em seus países de origem.

Se em um certo país da América do Sul o ano, dizem, começa depois do carnaval, na França, la rentrée de estudantes, padeiros, chômeurs, presidente, médicos, professores de matemática, ministros de estado, pintores de paredes e de quadros, músicos, feirantes e biscateiros só ocorre em setembro, depois de uma pausa de dois meses para aproveitar do verão.

Sim, é verdade: somos todos iguais sob o sol.