sexta-feira, 24 de abril de 2009

A França em torno do umbigo

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Para ler escutando: Eu sou o umbigo do mundo (Pato Fu)

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Eu sou o Daniel. Moro em Paris. Paris fica na França. A França é o país da torre Eiffel. A torre Eiffel foi construída para a exposição universal de 1889. A exposição universal de 1889 foi feita em homenagem aos 100 anos da queda da Bastilha. A Bastilha era uma prisão que foi destruída na Revolução Francesa. A Revolução Francesa foi quando os parisienses tomaram gosto pela trilogia de liberdade, igualdade e fraternidade, e também pela decapitação real. Na decapitação real dançaram feio o rei Luis XVI e sua esposa Maria Antonieta. Maria Antonieta foi aquela que falou ao povo: "já que não há pão, comam brioches". O brioche nasceu na região da Normandia. A Normandia tem ótimos crepes e foi o local do desembarque das tropas aliadas, decisivo para o fim da II Guerra Mundial. Na II Guerra Mundial a França do Marechal Petáin colaborou com o bigodudo Hitler e os alemães. Os alemães disputaram e perderam para os franceses, no século XIX, o controle de Estrasbourgo. Em Estrasbourgo moraram Mozart, Pasteur, Gutemberg e Calvino, este um dos líderes da reforma da igreja católica. A igreja católica é aquela que fala sobre desprendimento, mas nunca deixou de cobrar o dízimo. O dízimo também era exigido por muitos reis da antiguidade. A antiguidade é um tempo que passou há muito tempo. O tempo, dizia o francês Nostradamus, é apenas a decomposição da matéria. Entre as matérias da escola, eu detestava biologia vegetal, mas adorava geometria. A geometria deve muito a René Descartes, um dos pais da filosofia moderna. A modernidade é um tempo que ainda está passando. Quem passa as roupas na casa dos meus pais é a Dona Evandete, toda 5a feira. 5a feira em francês se diz jeudi, que significa "dia de Júpiter", em latim. O latim é a língua que deu origem, entre outros, ao português, ao espanhol, ao romeno, ao catalão, ao francês e ao italiano. Franceses e italianos não se cansam de se agredir mutuamente. Uma agressão recente foi a cabeçada de Zidane no zagueiro Materazzi. Materazzi foi um dos destaques da seleção italiana campeã de 2006. 2006 foi o ano do rato. O francês Blek, o Rato usa estêncil para fazer incríveis grafites na rua. A rua é o lado de fora da casa. Minha casa é um apartamento, mas antes era um "apertamento". Um "apertamento" é uma piada sem graça. Outra piada sem graça é a do "não, nem eu". Eu sou o Daniel. Moro em Paris.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Voilà, é a primavera!

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A partir dessa semana, sempre que possível indicarei músicas para serem escutadas enquanto se lê o texto (de preferência abrindo-as em uma outra janela, claro). Começo com as seguintes:

. Moon after berceuse (Fredo Viola)
. I Love Paris (Ella Fitzgerald)

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A primavera é a redenção dos parisienses. É quando eles deixam para trás todas aquelas camadas, que protegem tanto o corpo do frio quanto as almas de um contato tornado difícil pelo inverno. E ao dizer "parisienses", estou me incluindo também. Afinal, parisiense é quem mora em Paris, e não apenas quem nasceu na cidade. E assim como todos os outros, também me livro das couraças de roupas e das carapaças da irritabilidade que ergui em torno de mim mesmo ao longo dos últimos meses. Aquela coisa que te leva a atitudes meio estranhas, como a de se controlar para não morder o sujeito ao seu lado no metrô, só porque ele tem alguma coisa parecida com um sorriso no rosto. Verdadeira ofensa à instituição do mau humor francês, oras.

Nesse último mês, tenho escutado muito o Fredo Viola - homem orquestra inglês e minha nova descoberta musical -, que multiplica-se em suas próprias canções. Ele é tenor, soprano, contralto e baixo, tudo ao mesmo tempo. E mostra que podemos nos transformar em vários, mas sendo sempre nós mesmos (afinal, todas aquelas notas angelicais vêm da mesma pessoa). Vivemos um pouco esse processo quando passamos as quatro estações em um país onde realmente faz frio. No outono, como acontece com as folhas das árvores, nosso moral cai. No inverno, recolhemo-nos e economizamos energia, até no contato humano. Na primavera, florimos em gentilezas e sorrisos. E, no verão, brilhamos e vivemos o auge pelo qual esperamos tanto tempo, e que merecemos bem.

Os franceses, esses seres curiosos, dizem gostar do fato de terem as estações bem definidas, pois "ajuda a se localizar no tempo". E isso é verdade. Se você quer se lembrar de quando foi àquele determinado restaurante, por exemplo, é só pensar na roupa que usava no dia. Saiu de casa disfarçado de esquimó? Era inverno. Vestindo bermuda? Verão. Mas se usava apenas um casaco, há duas opções: se estava meio puto, devia ser outono; mas, se ria, provavelmente era porque a primavera havia chegado. Essas do casaco são colaborações empíricas minhas à teoria, vale ressaltar.

O curioso é que para mim, um brasiliense, o normal mesmo é o ano dividir-se em duas estações: quando chove pacas e quando não chove nada. É verdade que em Brasília no mês de julho existe algo parecido com o frio, e os termômetros podem marcar 10ºC. Mas, acredite, eu já comemorei 10ºC em Paris, ligando pra um amigo pra festejar o tempo agradável, querendo fazer até piquenique. Minha mãe vai se arrepiar só de ler isso.

Mas agora, como o mutante Fredo Viola, Paris está transformando-se, e assume sua agradável personalidade primaveril. As varandas dos cafés estão cheias. Os gramados dos parques foram liberados. As vélibs tomam o espaço dos carros nas ruas. As flores estão coloridas. As mulheres já ousam os primeiros vestidos. A cerveja ficou mais gelada. Os amigos encontram-se com maior frequência. Acho que a cidade merecia um pouco mais de primavera. Eu também, d'ailleurs.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Os ídolos de Mané le coiffeur

Mané le coiffeur, o engenheiro capilar baiano que chegou a Paris em 1969 - "pra entrar de cabeças no desbunde da época" -, nunca mais voltou ao Brasil. Ele ainda guarda na lembrança a imagem do país que deixou há quarenta anos. Tanto é que no seu bureau d'esthétique, que é como ele chama o salão no bairro de Montmartre, as paredes recebem fotos de personalidades dos anos 60 e 70, das quais fala com reverência. E não admite atitude contrária dos clientes. Como a de um brasileiro com seus 20 e poucos anos, de passagem por Paris, que foi aparar as madeixas.

- Véio, quem é aquele cabeludo ali?
- Não reconhece? É o maior roqueiro brasileiro, um símbolo de contestação, o eterno rebelde Roberto Carlos.
- Roberto Carlos rebelde? Maluco, a maior indisciplina que ele fez nos últimos 30 anos foi deixar de atender um telefonema da mãe.

E o Mané foi ficando bravo.

- Você fala isso porque nunca o viu com o seu parceiro, o Tremendão.
- Tremendão é o meu bisavô com parkinson.
- Cuidado com o que você fala, rapaz. Eles são da pesada. C'est de la braise, tu copies?
- Hein?
- Eu disse "É uma brasa, mora?".
- O quê?
- Mas você não entende nada mesmo. Vou te mandar um papo firme...
- Brother, não peguei nada desse teu caô. Pra mim é tudo grego. Mas vou contar um segredo: o Brasil evoluiu desde que você zarpou de lá. A língua portuguesa também, sacou?
- O que não evoluiu muito foi essa língua aqui, ó - E Mané le coiffeur abriu a navalha - Dá o pira!
- Hã?
- Some, pirralho.

Outra vez aconteceu quando uma senhora da alta sociedade francesa, atrasada para um jantar beneficente, precisou fazer uma escova de última hora.

- Como vai ser, madame?
- Uma escova, rápido.
- Calma. Chez moi não é tão simples. Escovas aqui existem aos montes. A mais pedida da casa é o Escargot à la mer. Mas, no seu caso, eu aconselho a BB toujours.
- BB toujours?
- Oui, madame. BB é Brigitte Bardot. Brigitte para sempre. Eu deixo seu cabelo i-gual-zi-nho ao dela naquela foto ali, tirada na praia de Búzios.
- Não tem nada mais moderno não?
- Madame, a Brigitte Bardot é sempre moderna.
- Era na sua época. Agora ficou horrorosa.

Mané sai um instante e volta com um pequeno espelho na mão.

- Olha aqui.
- Comment?
- Olha aqui no espelho. O que você vê?
- Meu reflexo.
- Pois eu não. Eu vejo uma pessoa, essa sim, hor-ro-ro-sa. A Brigitte Bardot será sempre a Brigitte Bardot. E você será sempre essa mocréia descabelada. Na sua época ou em qualquer outra.

Sem escolha, a mulher saiu, com os cabelos ainda mais arrepiados do que quando chegou. E Mané le coiffeur respirou aliviado. Atrás do pequeno espelho de mão leu uma frase que escrevera há anos, em francês e em português, e que norteia (ou desnorteia, dependendo do ponto de vista) seu trabalho.

"Je peux perdre mes clients mais pas le déhanchement"
"Eu posso perder os clientes, mas jamais o rebolado"

E foi correndo ligar pro JP.

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Conheça a origem de Mané le coiffeur.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Atrasado

- Pronto, cheguei.
- E atrasado.
- ?
- Atrasado, como sempre.
- Dessa vez nem foi tão tarde assim.
- Claro que não. Afinal, o que é esperar 83 minutos por alguém?
- Não exagera. Foram 82.
- Por que vocês brasileiros nunca conseguem chegar na hora?
- É o fuso que atrapalha.
- O fuso? Mas você já está aqui há 2 anos.
- Rapaz, e ainda não consegui me habituar com esse horário francês. Incrível, né?
- Incrível é a sua cara de pau. Me deixar aqui plantado.
- Sabe o que é? Falta criatividade pra você.
- Do que você está falando?
- Poderia ter aproveitado enquanto eu não chegava para escrever uma poesia sobre a fugacidade do tempo.
- Não tenho nada de poeta.
- Uma música, então. Sobre perdoar os amigos, ótimo tema.
- Tenho menos ainda de músico. E você não tá merecendo perdão.
- Deveria ter aproveitado então para se iniciar numa dessas carreiras. Daria pra escrever uns 3 hits nesses 80 minutos.
- Foram 83. E não muda de assunto não. Você é que poderia ter chegado mais cedo.
- Não deu.
- Deveria ter avisado que não dava.
- Não deu pra avisar que não dava. Outro dia me atrasei pra pagar a conta do telefone, e ele foi cortado.
- Pelo menos você não perde tempo na hora de inventar desculpas.
- Vou te contar um segredo: o problema do brasileiro são os 5 minutos.
- 5 minutos?
- A gente sempre dá aquela enroladinha de 5 minutos antes de sair de casa.
- Que eu saiba, 5 minutos não são 83.
- Você tem que se informar melhor. Einstein já dizia que o tempo é elástico. E eu apenas provo que sua teoria é verdadeira.
- Tudo isso pra justificar mais uma vez a sua falta de pontualidade.
- Mas agora você não precisa mais se preocupar, eu mudei. Comprei até um relógio, ó.
- Mas ele tá parado!
- Eu sei. Marca sempre 10h.
- E pra que serve um relógio que marca sempre 10h?
- Ora, pelo menos duas vezes por dia eu vou estar na hora certa.