sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Bico chato




- C'est "chiant".
- Chi...
- Chiant! A boca fica meio fechada.
- Chien?
- Não, não. Chien é cachorro. Chato é chiant.
- É difícil.
- Nada. Olha quando eu falo.
- Tô olhando.
- Chiant.
- Fala o outro agora.
- Chien.
- Pra mim é igual.
- É diferente, bem diferente.
- Sei, como dois japoneses.
- Hein?
- Nada.
- Vamos lá, tente de novo.
- Chient.
- Melhorou, mas ainda não tá lá.
- É esse diabo desse biquinho que eu não consigo fazer.
- Biquinho?
- É, o biquinho que vocês fazem quando falam.
- Que biquinho?
- Ué, todo mundo sabe que francês faz biquinho pra falar.
- Não estou entendendo.
- Fala a palavra de novo.
- Qual?
- A que você tava me dizendo há pouco.
- Chiant?
- Isso! Vai falando devagar.
- Chi...
- Deixa a boca parada quando disser a última sílaba.
- ...ant.
- Pára! Tá vendo o biquinho?
- Não!
- Olha no espelho ali.
- ?
- Olha.
- !
- Tá vendo o biquinho? A boca um pouco pra frente, meio fechada, como você disse.
- C'est normal. Vocês não fazem isso?
- Não.
- E por que não?
- Porque a gente não precisa em português.
- Mas pra falar francês tem que fazer esse... como é mesmo?
- Biquinho?
- Biquinho!
- É por isso que eu digo que aprender francês é chiant!
- Viu? Viu? Agora foi perfeito!

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

É fogo


Além do cachorro, o parisiense também não vive longe do seu segundo melhor amigo: o cigarro. O fumacê é barra pesada e invade bares, lares e demais ares da capital francesa. Impossível sair à noite e não voltar pra casa com aquela incômoda sensação de ser um queijo roquefort ambulante, plenamente consciente da própria fedentina.

Mesmo que um maço custe cerca de 5 euros, o preço de um prato de comida, isso parece não inibir os habitantes da cidade-luz. A diferença é que muitos agora preferem carregar seus kits filosoficamente punks, estilo "do it yourself" - ou seja, "enrole você mesmo" -, compostos de um pacote de tabaco e um bloquinho de papel pra cigarros, e saem tragando seus próprios cones por todos os cantos.

Às vezes alguém se sensibiliza.

- Incomoda se eu fumar?

Mas essa é uma pergunta apenas retórica. Porque mesmo que você diga "sim" pra um, os outros 236 fumantes do lugar não dão a menor bola pra sua rinite alérgica. E menos ainda pro fato de que aquela fumaça vai direto pro seu belo prato de salada, que passa automaticamente a ganhar o adjetivo "defumada".

Só que a partir de 1º de janeiro isso vai mudar. É quando começa a vigorar a lei que proíbe cigarro em locais públicos. Pitadinha no restaurante? Não mais. Tragada na boate? Necas. Teoricamente não vai mais poder. Teoricamente, já que eles trataram de inventar um "jeitinho francês" pra resolver a situação. Agora o bofe que não conseguir abrir mão (com trocadilho, por favor) do cigarro, deverá se associar a uma espécie de clube fechado, e pagar caro por isso.

No fundo, é apenas uma parte do restaurante ou do bar, reservada para os amantes da fumaça. Pode ser um pouco um olhar de índio sobre o colonizador, mas eu acho muito estranha essa história de pagar pra freqüentar um fumódromo. Se bem que eu conheço pessoas que pagam pra fazer aulas de aeróbica, o que, em termos de esquisitice, pra mim está bem próximo.

O fato é que com essa restrição eu devo conseguir resolver a questão Tostines que me persegue há algum tempo: afinal, os franceses fumam mais porque fazem biquinho ou fazem biquinho porque fumam mais?

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

É fria


As Vélibs' são as bicicletas públicas de Paris. Você assina um serviço e pode usar o quanto quiser, sendo a primeira meia hora gratuita. Basta pegar em uma estação e devolver em qualquer outra.

Acontece que nessa semana os transportes públicos da cidade estão em greve. Metrôs e ônibus escassos e engarrafamentos dignos de São Paulo fizeram os parisienses lotarem as ruas de bicicletas. Eu incluso.

Saindo do curso de francês, resolvi usar uma delas pra ir pra casa. Tava chuviscando, mas nada muito sério. O pior mesmo é o frio. O inverno oficialmente ainda não começou. Mas para mim, que morei dois anos no Rio de Janeiro, já estamos na nova era glacial.

Fiz o check list da roupa que usava pra ver se dava pra encarar o pedal.

. Camiseta por baixo - ok.
. Camisa de manga longa - ok.
. Calça por baixo - ok.
. Calça por cima - ok (essa era meio evidente, não precisava checar).
. Duas meias, sendo uma de lã - ok.
. Casaco - ok.
. Sobretudo - ok.
. Cachecol - ok.
. Gorro - ok.
. Luvas - ok.

Achei que tava de bom tamanho e montei na bike, tomando cuidado pra desviar das pequenas poças no caminho. Tudo perfeito, fora um pouquinho de água que entrou no tênis.

- Bom, ça va... Tô quase lá. É só tomar um banho quente depois.


Cheguei à estação do lado de casa. Lotada. A chuva tinha apertado. E um cara aguardava, ensopado, que alguém pegasse uma bicicleta, para liberar espaço pra dele.

- Monsieur, tem outra estação logo ali. Se quiser me seguir, sei como chegar lá.
- Merci.


Nada adiantou. Lotada também. E aí percebi que na verdade meu tênis estava encharcado. Pra piorar, as duas meias faziam um efeito de gelatina, e meu pé dançava dentro do calçado. Precisava me mexer para ele não congelar.

- Vou até uma outra estação.
- Eu fico,
respondeu.

A água que caia do céu mudou de categoria, virou toró. O jornal dizia que a temperatura chegaria perto dos 5 graus. E pra piorar ainda tinha o vento. Como quando você passa de fase no video-game, tudo ficou mais difícil. A luva e da parte de baixo da calça estavam encharcadas. Com isso, minhas mãos já não obedeciam muito bem, e eu tinha que mordê-las pra que voltassem à vida. Enquanto uma segurava o guidom, a outra era levada à boca.

Cheguei à 3a estação. Nenhum lugar livre. Logo depois aparece meu companheiro de infortúnio, molhado e descabelado como um pinto. Como se olhasse para um espelho, entendi que eu não deveria estar muito melhor do que aquilo.

Aí ferrou. Bateu uma rajada mais forte de vento, e doeu até o dedinho do pé. Eu acho que era o dedinho, mas não tinha certeza. Podia ser o joelho. Ou a orelha. Tava tudo semi-congelado mesmo.

Logo chegou a vez dos lábios paralisarem. Já não dava mais pra morder a mão. Minha fala começou a se limitar aos fonemas pronunciáveis de boca aberta, porque a articulação era impossível.

- ...amos ocurar ôtra?

Como dois soldados em missão suicida, encaramos a tempestade (até porque era muito pior ficar parado). Achei que não desse pra ficar mais molhado, mas percebi meu erro ao passar por uma poça maior. A água entrou por baixo do sobretudo, fazendo da minha barriga uma filial do Pólo Norte.

Depois de rodar um pouco mais, finalmente encontramos vagas. O sujeito que ia comigo tinha uma cara horrível, mistura de frio, tristeza e pânico. Mas ele ainda estava em melhor situação, já que conseguiu falar.

- Lição aprendida: nunca pegar uma velib' quando estiver chovendo.
- ...erdade. ...em azão.


Pensei em fazer a óbvia piada do "é... acho que entramos numa fria", mas minha boca e meu cérebro estavam congelados demais pra articular em francês. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Salamaleque!

















Depois de 8 meses aqui, achei que já falava francês razoavelmente. Conseguia me comunicar sem problemas e entendia tudo o que as pessoas diziam. Mas um dia percebi que ainda tinha um longo caminho a percorrer.

No saguão do meu prédio, dei de cara com o sexagenário dono de um pequeno comércio de "alimentation générale" da minha rua. Ele estava vestido em disdasha, a tradicional roupa árabe, e levava as mãos à cabeça, afoito, enquanto checava os nomes nas caixas de correio e no interfone.

A minha comunicação com ele, até então, ocorria apenas quando eu ia à sua loja, e limitava-se a perguntar se tinha tal produto.

- Tem ovos frescos?
- Oui monsieur.
- Dá pra cozinhá-los
à la coque?
- Oui monsieur.


Mas nesse dia o bicho pegou. Ao me ver saindo do elevador, reconheceu-me e veio pedir ajuda.

- Bonjour monsieur.
- Bonjour.


Totalmente irrequieto, andando para lá e para cá, ele começou a falar o francês mais cheio de 'r' que já ouvi. Eu não compreendi absolutamente nada. Nadica de nada.

- Désolé. Eu não entendi.

Alheio ao meu estado flutuante naquela suposta conversa, ele coçava a barba, falava à beça e colocava um 'r' onde podia e onde não podia. Eu virei mero espectador da cena, restando-me apenas pedir ajuda a Maomé. Eis que um minuto depois consegui ajustar um pouco o ouvido pra aquela nova freqüência e pesquei umas palavras. Duas na mesma frase: motocicleta e Edith. Juntei isso ao fato de ele apertar sem parar o interfone da minha vizinha e deduzi que ela devia ter guardado a chave da moto do cidadão, sei lá por que diabos. Mesmo que a história não fizesse nenhum sentido, decidi levar a conversa como se essa fosse a verdade. E entramos num jogo de doidos: cada um falava o que queria.

- Bra bra bra Edith bra bra bra bra bra?
- Não, senhor. Faz tempo que não a encontro.
- Bra bra bra bra bra motocicleta bra?
- De que cor ela é?


Ele foi se empolgando.

- Bra bra bra domingo bra bra.
- Nossa! Já tem quase uma semana?
- Viagem bra bra bra bra?
- Não sei se ela saiu de Paris esses dias. Mas por que o senhor não volta depois do feriado?

Como por milagre, o sujeito acalmou-se um pouco e parou de saracotear pelo saguão. Ainda apertou umas quinze vezes o interfone, mas logo depois desistiu. Veio lamentar-se comigo, com cara de bebê chorão.

- Bra bra bra minha mulher bra bra bra bra.
- Eu sei, eu sei. Também acharia estranho o fato de a moto sumir.
- Bra bra bra bra bra loja.
- Entendo que você precise dela pro seu comércio, mas o melhor a fazer é esperar a Edith aparecer.
- Gentil bra bra.
- Que isso... Precisando é só chamar.


Outro dia passei em frente à sua loja. Ele estava na porta e sorriu discretamente pra mim. Ou os meus conselhos realmente serviram de alguma coisa ou ele ainda achava graça nossa conversa de malucos. Retribuí, mas pelo segundo motivo.