sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Le Marché D'aligre


Na minha rua tem uma feira. Tá lá todo dia, menos segunda. E é um dos mais conhecidos lugares de Paris para se comprar frutas, verduras, flores, peixes e tudo mais que se encontra em uma feira de rua.

O Marché D'aligre é uma aula de sociologia. Das dezenas de bancas, só uma pequena parte é de franceses. O resto é de senegaleses, argelinos e de outros povos por eles colonizados. E é curioso observar as diferenças.

À procura por legumes, passei pelo estande de um marroquino que se esganiçava para anunciar o preço único de seus produtos. Uma versão velho mundo do nosso "é tudo um real". O sujeito atendia dez pessoas ao mesmo tempo. Um caos que o fazia repetir sintomaticamente a mesma sentença.

- Bonjour monsieur.
- Deux euros! Deux euros!
- O senhor tem abobrinha?
- Oui. Deux euros!
- Estão boas?
- Deux euros!


Ele apontava que nem um louco para o produto, enquanto pesava as compras de outro cliente.

- Quero meio quilo.
- Um quilo é deux euros, deux euros!.


A comunicação dele era simplória, mas funcionava. Dizendo apenas "deux euros" se entendia com todos à sua volta.

- E aqueles pêssegos?
- Deux euros!
- Quero saber se são bons.
- Ótimos. Só deux euros.
- Vou escolher alguns.

Esse foi o único momento em que olhou na minha cara.

- Non, non. C'est pas possible. Não pode escolher.
- Não pode?
- Não. Mas pode comprar um quilo por deux euros. DEUX EUROS! TOUT EST DEUX EUROS!!!


Disse isso e voltou aos seus afazeres múltiplos. Daí até o momento em que paguei, cerca de um minuto depois, devo ter escutado "deux euros" mais umas 37 vezes.

Satisfeito com o preço mas um pouco contrariado pelo atendimento, passei em uma banca capitaneada por uma francesa. Ao contrário da anterior, tinha uma fila grande, e a dona conversava com uma pessoa por vez, calmamente, levasse o tempo que levasse.

- Bonjour madame. A senhora tem champignons frescos?
- Oui monsieur. Eles estão ótimos. Olhe como são bonitos.
- É verdade.
- O senhor pode prepará-los na manteiga ou colocar numa salada.
- Fica bom?
- Fica delicioso. Mas não se esqueça de lavá-los muito bem antes.
- E essas cerejas?
- Acabaram de chegar.
- Estão doces?
- Prove uma.
- Merci beaucoup. Quero essas aqui.
- Très bien.
- Quanto dá?
- Alors... 200g de champignons e 200g de cereja. Algo mais?
- Non. C'est tout. Merci.


A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a gastronomia é coisa séria para os franceses, a hora de apresentar a conta não é diferente. E ela responde sem o menor constrangimento.

- Fica 8 euros.


Oito euros por um punhado de fungo e umas frutinhas vermelhas. Vinte reais! "Minha senhora, com vinte reais no Brasil eu compro metade de uma frutaria", pensei em voz alta, morrendo de vontade de largar o pacote ali e sair correndo.

- Pardon?
- Nada, nada. Embrulha
- Merci monsieur. Tenha um bom dia e uma ótima refeição.


Minha porção Paul Bocuse se sentia feliz com as iguarias adquiridas. Mas o lado Tio Patinhas estava semi-deprimido pela facada no bolso. Súbito, tive a idéia de passar em um outro estande.

- Quanto tá a banana?
- 80 centavos o quilo.


Comprei logo três quilos. Não sabia se ia comer aquilo tudo, mas agora estava certo de que faria uma refeição balanceada. Pelo menos no critério financeiro.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Efeito Paris


Uma das coisas mais interessantes de morar em Paris e visitar o Brasil é observar os diversos efeitos que isso causa nas pessoas. Alguns conhecidos passaram a me ver como se, de repente, eu tivesse ganho mais uma perna.

- Lembra do Daniel? Ele agora mora em Paris.
- Nossa! Em Paris?
Aí a pessoa vinha me tocar pra ver se ainda era eu. Me olhava, pegava no cabelo, no nariz.

Mas o mais curioso aconteceu em duas ocasiões: em um médico e em um dentista. A primeira foi quando fiz meu exame de renovação de carteira de motorista.

- Telefone de contato?


Passei o de casa, em Brasília.

- Tem um celular?
- Tenho, mas não vou mais usar, pois não moro mais aqui.
- Mora onde?
- Em Paris.


O cidadão arregalou os olhos, meio deslumbrado.

- Mais ça c'est très chique! J'aime Paris. Conheço um pouco o idioma.

E aí continuou a consulta falando apenas francês. Chegou a hora do exame de vista.

- Quelle couleur?
- Amarelo.
- Non! En français!!!
- Jaune.
- Très bien!
- Quels caractères?
- A, cê, agá
- Non, non, non! Pas de portugais.
- Pardon. A, cê, ache.


Depois que contei um pouco da minha vida na capital francesa, ele deu o veredito.

- Seu francês está muito bom. Mas sua vista pode melhorar um pouco. Recomendo que você use óculos pelo menos à noite.
- Obrigado.
- Hein?
- Merci...


E pegou um lenço branco e acenou pra mim. Uma cena meio melancólica.

- Au revoir! Au revoir! Embrasse Paris...


Sai de lá direto pro dentista. O mesmo que me atendeu a vida inteira. Ao chegar, lembrei-me porquê sempre tive pavor do sujeito.

- Olá, Daniel. Tá sumido. Senta.

Acomodei-me na cadeira e abri a boca. Ele deu uma olhada. E já ligou aquele motorzinho que me assombra desde a infância.

- Sua mãe falou que você tá morando em Paris. Encostou o motor no meu dente.
- Aahhhhh.
- Tá gostando?
E começou a raspar. Doeu pacas.
- Aaaaaahhhhh.

O carniceiro não dava trégua. E logo trocou o aparelho de tortura. Pegou uma espécie de foice pequena, pra limpar entre os dentes. Com a metade da mão na minha boca, sobrava pouco espaço pra articular as palavras.

- E o que você faz lá?
- Eu ...abalho ...uma ...evista.
- Hein?
- ...uma ...evistaaaahhhh.
- Olha. Não dá pra fazer bem feito se você continuar falando.


Ele não queria que eu falasse, mas também não parava de perguntar.

- Onde você mora lá?
- ...astilha.
- Não entendi nada.
E forçou tanto com o aparelho que me machucou a gengiva.
- ...as-ti-lhaaaai ai ai ai...
- Ah, Bastilha.


Balancei a cabeça afirmativamente, enquanto uma lágrima corria. Não tentei mais emitir nenhum som. Era mais seguro.

Terminada a sessão de maldades, meu dentista me fez lembrar de um outro trauma que adquiri na infância: as suas brincadeiras totalmente sem graça.

- Voilà. Agora é seu teste final de francês: quero ver você fazer o biquinho com toda essa anestesia na boca.


É claro que não consegui. Ele se divertiu à beça com isso. Eu me satisfiz em sair vivo de lá.

Na manhã seguinte, ainda sob o efeito de tantos choques emocionais, não conseguia mais fazer o biquinho direito. Pensei em procurar um psicólogo pra me ajudar. Francês, claro.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Como falar francês sem falar francês II - Provérbios


Segundo a Wikipedia, um provérbio é "uma sentença de caráter prático e popular, que expressa em forma sucinta, e não raramente figurativa, uma idéia ou pensamento."

É verdade que é complicado traduzir provérbios. Ainda mais incluí-los no meio de uma conversa em outra língua. Mas se você seguiu as dicas anteriores, já está apto a empregá-los e, com isso, dar um novo passo rumo ao domínio do idioma de Victor Hugo.

Para ilustrar o emprego dessas pérolas vertidas do português, criei algumas situações hipotéticas, mas bem reais: uma paquera no meio de uma balada, uma fofoca sobre a vida dos outros e uma ida ao restaurante.

Mais uma vez, você não precisa falar francês. Mas como a lição é mais avançada, é necessário que você entenda um pouco do que estão falando. Lembre-se que a sua comunicação será feita apenas por provérbios, o que lhe dará um status de semi-intelectual, muito valorizado na França. Por isso é fundamental decorar bem cada uma das frases a seguir.

É importante frisar que os exemplos aqui descritos podem - e devem - ser utilizados em outras oportunidades. Experimente e descubra novas maneiras de empregá-los.


Cantando a gatinha


Essa lição pode ser empregada em uma festa, uma boate, um bar ou em qualquer outro agito. Para valorizar mais o seu ar intelectual, tenha sempre um copo de vinho na mão. E solte as frases quase ao pé do ouvido do seu alvo.

- Bon soir.
- Bon soir.


Quebrado o gelo inicial, chega a hora da verdade. De dizer aquela frase mágica, capaz de mover o mundo. De encantá-la com todo o seu conhecimento do francês e do universo feminino.

- Tu sais que chaque pot à son couvercle? (Você sabe que cada panela tem sua tampa?)
- Pardon?
- Je te dire que tu es la belle fille dont maman a toujours revée.
(Tô te dizendo que você é a nora que mamãe pediu a Deus.)
- Você acha que essa conversa mole me convence?
- Bah oui... Qui ne pleure pas, ne tete pas.
(Acho. Quem não chora não mama.)

Agora tem duas possibilidades. A primeira, mais provável, é ela não gostar muito.

- Que grosseria!
- Je le savais. Le pain du pauvre tombe toujours du côté du beurre...
(Eu sabia. Pão de pobre cai sempre com a manteiga para baixo...)

A outra é ela rir e cair no seu papo-aranha.

- Gostei do seu bom humor. Vamos tomar alguma coisa em outro lugar?

E você solta o grand finale. Depois, contenha-se para não abrir mais a boca e não estragar tudo.

- Oui! C'est l'heure de la panthère boire de l'eau. (Vamos! Chegou a hora de a onça beber água).


Falando da vida dos outros

Não é só no Brasil que a fofoca é um esporte nacional. Falar da vida dos outros é uma atividade praticada nos quatro cantos do mundo. E nada como uma boa festa para botar esse velho hábito em dia. Pode até ser a mesma citada acima, na qual você tentou azarar - sem sucesso - a menina.

O procedimento consiste em chegar de mansinho em uma roda onde haja conhecidos. É batata: logo alguém vai contar um episódio de corno.

- Eu não acredito o Jacques traía a Florence há tanto tempo.
- Moi non plus. Mais trahir et gratter ce n'est que commencer.
(Eu também não. Mas trair e coçar é só começar).
- Todo mundo sabia, menos a pobre coitada.
- C'est comme ça... le cocu est toujours le dernier à savoir.
(É assim... o corno é sempre o último a saber).
- Ele falou que está pensando em separação.
- Mieux vaut être seul que mal accompagné.
(Antes só do que mal acompanhado).

Agora cuidado! As pessoas vão começar a prestar atenção no que você está falando. É a hora de preparar a saída estratégica, antes que você tenha que entrar em conversas mais profundas.

- Ela ainda vai se arrepender disso.
- Oui. Un jour de la chasse, l'autre du chasseur.
(Vai sim. Um dia é da caça, o outro é do caçador).

Certamente alguém vai se dirigir a você.

- E você, o que acha disso tudo?
- Moi?
- Sim, você.


Pausa dramática. Respire fundo.

- Qui se marie ne pense pas. Et qui pense ne se marie pas.
(Quem casa não pensa. E quem pensa não casa.)

Hora da retirada.


No restaurante

Em Paris, no verão, conseguir uma mesa na varanda pode ser uma tarefa difícil. Mas você vê uma vazia, que pega exatamente aquele solzinho bom. Nada mais natural do que sentar-se ali. Depois de 5 minutos, acomodado, pedido já feito, descobre que a mesa estava ocupada. Quem estava ali antes tinha apenas ido ao banheiro.

- Monsieur, eu estava aí.
- C'est dommage mais qui va à la chasse perd sa place.
(É uma pena, mas quem vai ao ar perde o lugar).
- Eu gostaria de pegar meu lugar de volta.
- Il faut mieux sortir le petit cheval de la pluie.
(É melhor tirar o cavalinho da chuva).
- Eu só tinha ido ao banheiro.
- Je vois... Mais l'excuse d'handicapés est une béquille.
(Sei... Mas desculpa de aleijado é muleta).
- Olha, estou ficando nervoso!

Aí você faz cara de impaciente e bate na mesa.

- Moi aussi. Le cobra va fumer! (Eu também. A cobra vai fumar!)

Reze para que nessa hora a "turma do deixa disso" resolva agir para impedir que a confusão aumente. Ou então para que o antigo ocupante desista de vez da mesa.

- Chega. Vou procurar outro lugar.
- Oui. Chaque singe sur sa branche.
(Isso. Cada macaco no seu galho)

Quando o sujeito estiver saindo, solte a última.

- Attention! Pour mourrir il suffit de vivre.
(Cuidado! Para morrer basta estar vivo).

Pronto! O lugar é seu e o cara não vai mais te incomodar.


Viu como é fácil? Com um pouco de treino você vai soltar provérbios e pensamentos com a maior naturalidade do mundo, causando espanto em todos ao redor.


Colaboraram: Henriette Gallo e Constance Boutrolle

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Carga pesada


Seis meses depois de chegar em Paris, voltei para visitar o Brasil. Em Brasília ficou grande parte das minhas roupas. Uma coisa prática, pois quando viesse à minha cidade-natal poderia viajar com uma mala não muito grande, sem parecer um retirante que coloca toda a casa em cima de um burro.

Semanas antes de partir já sabia o que levar: umas camisas, dois casacos, três calças, três pares de tênis e alguns pequenos presentes. Tudo deveria caber numa valise de tamanho médio.

Mas a visita do meu caro amigo DJ começou a desmontar meus planos. Marinheiro de primeira viagem, ele foi pra Europa com duas malas tamanho monstro. Ao chegar em Paris, não aguentava mais tanto peso.

- Posso deixar aqui algumas poucas peças de roupa pra você levar pra mim quando for ao Brasil?
- Pode, claro.
- Já está até separado ali no canto.


As "poucas peças de roupa" a que ele se referia se tratavam de três sacolas esturricadas de bermudas, camisas, cuecas, meias e calças em um estado tal que fogueira seria pouco pra tirar a nhaca acumulada.

Esse imprevisto me fez mudar de estratégia, que passou a incluir uma segunda valise. E foi aí que tudo degringolou de vez.

Agora com espaço sobrando, pensei que poderia levar mais presentes, algumas Brazucas e ainda aceitar encomendas de amigos. Um dia antes de fazer a mala, me sentia um muambeiro do Paraguai. Minha sala estava tomada por 3 chaleiras elétricas, um moderno filtro de aquário (e eu nem sabia que existiam modernos filtros de aquário), 5 vidros de perfume, roupas para todos os bebês da família e de agregados, 15 sabonetes de Marseille, 2 garrafas de vinho, 2 geléias, 2 salames, 3 sacos de vestimentos fétidos do meu amigo e, pra fechar com chave de ouro, 50 revistas Brazuca.

Separei duas malas gigantes pra caber tudo. Em uma acomodei os pútridos trajes do sujeito e as bugigangas elétricas, esperando que não derretessem com a fedentina. Na outra coloquei todo o resto e as revistas. Como moro perto da Gare de Lyon, de onde sai o ônibus pro aeroporto, acreditava que a missão não seria das mais difíceis.

- Acho que vai dar pra levar.

Uma das valises ainda estava num estado razoável. Mas a outra já merecia ter sido aposentada há alguns anos. E o pior: a alça estava a um triz de arrebentar.

Em frente do meu prédio tem uma feira de rua, sempre movimentada. Quando saí, me vi no inferno. Centenas de pessoas e eu querendo passar por elas com toda a bagagem e ainda uma mochila nas costas.

- Pardon Monsieur.
- Olha por onde anda, rapaz.
- Pardon Madame.
- Vê se não vai jogar essas malas em cima de alguém.


Pra piorar, só faltava arrebentar a alça. Mas isso logo se resolveu. Dei um passo em falso, a maldita rompeu-se de um lado. Fui então puxando devagarinho, pra tentar administrar o problema. Mas não adiantou, pois ela partiu-se totalmente antes de eu conseguir atravessar a feira.

Se carregar duas malas grandes e lotadas já é uma tarefa ingrata, carregar uma sem alça é uma experiência desastrosa. O caminho até a Gare de Lyon, normalmente vencido em menos de dez minutos a pé, nunca pareceu tão longo.

Respirei fundo e tentei seguir em frente. As pessoas passavam por mim olhando com um misto de pena e preocupação. Eu estava com a cara tão vermelha - de esforço e de raiva - que deviam pensar que iria implodir a qualquer momento.

Eu rezava para que um transeunte se propusesse a me ajudar. Mas o máximo que consegui foi um apoio verbal de um velhinho que caminhava a passos de escargot.

- Não desista, meu jovem.


Apesar do incentivo, quase já não conseguia mais andar. E ainda faltava um tanto pra chegar ao objetivo. Tracei uma nova tática: passei a alternar a mão com a qual carregava a mala mais pesada, que deveria ser invariavelmente levantada para poder sair do lugar.

Pega com a mão direita, levanta, anda vinte e poucos metros. Pára. Descansa. Respira. Pega com a mão esquerda, levanta, anda mais um tanto. Pára. Descansa. Respira, respira. Pega com a direita, prende o fôlego e avança. E assim foi durante minutos que pareciam sem fim.

A coisa ia devagar, mas ia. Ao avistar o ponto de ônibus, fiquei tão feliz que distraí. Foi fatal. A mala pesada escorregou e num esforço idiota para segurá-la no ar dei um baita mau jeito no ombro. Enquanto doía pacas, a outra saiu rolando em direção à rua. Com o ombro latejando, corri para evitar o atropelamento da minha bagagem. Mas a vontade mesmo era jogar as duas embaixo do primeiro caminhão que passasse.

Exausto, descabelado, suado e de péssimo humor, cheguei à parada e coloquei tudo no bagageiro. Desci no Aeroporto Charles de Gaulle e fui ao balcão da Air France fazer o check-in. A mala-sem-alça (em todos os sentidos) pesava 28 quilos. A rebelde das rodinhas, 21. O atendente fez um comentário infeliz.

- Pesadas, hein? Ainda bem que essas malas mais novas são fáceis de carregar.


Olhei com a cara mais séria do mundo e levantei o canto direito da boca, num esforço para ser simpático. Mas naquela hora tava difícil.